"Lembranças mortas"

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O cheiro de caramelo tomou conta da cozinha. O sol brilhava radiante iluminando a fachada do prédio. Ela espiou pela fresta da porta e viu ali de pé, ao lado do antigo fogão industrial – agora coberto de fuligem e com grama crescendo por todos os lados – a figura de uma mulher. Seu rosto estava encoberto pelo sol forte que entrava pelo buraco na parede. Remexia o melaço no fundo da panela amassada e a cada nuvem de vapor que se desfazia no teto da cozinha, a garotinha sorria.

Alguém corria pelo salão do apartamento, fazendo o taco do piso deteriorado vibrar a cada passada. Ela foi até a quina da porta e viu seu irmãozinho disparado vindo para cima dela, com os braços abertos tentando imitar um avião. Girava de um lado para o outro e fazia um ruído engraçado com a boca, mais parecendo um miado do que um motor. Novamente a pequena sorriu.

Passou pelo irmão, mas antes lhe deu um abraço forte, do tipo que levanta a pessoa alguns centímetros do chão, sem se esquecer de bagunçar o cabelo liso do menino com um cafuné desajeitado. Cruzou o salão com cuidado para não escorregar nas centenas de capsulas de balas deflagradas espalhadas ao redor, passou pela parede esburacada onde desenhou com giz seu coelho de estimação para enfim chegar até o outro lado do apartamento. Lá estava ele. Sentado no sofá velho, com as molas aparentes e o tecido já desbotado, rodeado por meia dúzia de crianças, que escutavam com atenção o que o velho homem tinha a dizer. Ela se aproximou devagar e sentou no tapete em frente a ele. Observou com todo o cuidado o olhar sereno do idoso, as tatuagens simétricas no rosto, os olhos amendoados já quase consumidos pela catarata e o sorriso desdentado que nunca o abandonava. Sob a luz do sol que passava pelos furos de bala na parede, a pele amadeirada do ancião reluzia. Uma aura de sabedoria emanava do velho pajé dos Mura.

Ela apoiou o rosto com as mãos e se pôs a ouvir a história do avô, sobre um tempo antes da guerra, onde tudo era diferente e todos eram mais felizes e nada faltava a ninguém. Contou sobre um passado mais distante, quando seus antepassados era donos de florestas muito além das linhas das fronteiras e a natureza era absoluta e intocada.

O cheiro do caramelo invadiu o cômodo e ao se virar para trás viu seu irmãozinho sorrindo de orelha a orelha, agarrando a barra do avental esfarrapado da mulher que segurava a panela com o doce. Mas ao olhar para seu rosto a garota se desesperou.

Não haviam olhos, apenas buracos irregulares, contorcidos e deformados, toda a face estava afundada para dentro, uma espécie de cratera de carne e sangue. Uma distorção macabra do que um dia fora o rosto de sua mãe.

Ela virou-se para o avô e o velho estava berrando, ardendo em chamas, assim como as crianças em volta. O som de tiros e granadas, gritos de ordens e berros suplicantes se misturavam ao som crepitante das labaredas que tomavam conta do prédio. A luminosidade do fogo tingiu de laranja e vermelho todo o cenário enquanto as paredes desabavam devido o calor. A garotinha não viu mais seu irmão, a mulher continuava parada segurando a panela, indiferente ao fogo que a consumia. Saiu correndo em direção a escadaria. Pulava os lances de escada berrando e clamando por ajuda, mas todos por quem passava estavam mutilados e carbonizados. Saiu do prédio pela porta principal, chegando a uma praça circular onde mais dois blocos idênticos ao seu, desmoronavam lentamente em uma nuvem de fumaça negra e chamas. Os monges da grande fé e os pajés rezavam enquanto os tiros soavam, formando uma barreira humana tentando proteger os feridos. Todos eles gritavam um nome em uníssono: Kiraigami, Kiraigami!

Ela tampava o nariz com as mãos tentando não inalar a fumaça que queimava os pulmões. A todo instante homens armados, com metralhadoras e facões passavam correndo em direção a alguma coisa entre as nuvens negras. Mulheres, crianças, velhos... todos estavam sendo queimados vivos. O desespero se instalara por completo, e os gritos não cessavam nem por um minuto. Um estrondo alto vindo de suas costas alertou que o prédio onde estava sua família, começara a desabar. Ela correu o mais que pode para escapar da avalanche de escombros, mas suas pernas eram tão pequenas...

A REDENÇÃO DOS MALDITOS  | A Cidade dos Santos EnforcadosOnde histórias criam vida. Descubra agora