Quatro

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P.O.V. Jimin

Entro em casa, pego uma garrafa de água na geladeira e subo direto para o quarto, uma vez que não preciso perambular pelos cômodos para saber que Hwasa ainda está trabalhando. Hwasa está sempre no trabalho, o que significa que este casarão está quase sempre a meu inteiro dispor, ainda que eu raramente saia do quarto. Sinto pena da Hwasa, a vida que ela construiu para si mesma, à custa de tanta sacrifício, foi brutalmente alterada quando caí de paraquedas sobre ela. Por outro lado, como mamãe era filha única e todos os meus avós já haviam morrido antes que eu completasse dois anos, ela não teria muita escolha. Isto é, ou me botavam num orfanato até
eu completar dezoito anos ou me entregavam para tia Hwasa, irmã gêmea e única de papai. Embora ela nunca tivesse tido filhos, não sabendo nada do assunto, sequer esperou que eu saísse do hospital para vender seu apartamento, comprar esta casa e contratar um dos melhores decoradores de Seul para arrumar meu quarto.
Quer dizer, tenho todas as coisas que todo mundo geralmente tem: uma cama, uma cômoda e uma escrivaninha. Mas também tenho uma TV de tela plana, um closet, um banheiro enorme com jacuzzi e boxe de chuveiro separados, uma varanda com uma vista maravilhosa para o resto da cidade, além de uma sala de estudos/jogos só para mim, com sofás, mesas, pufes, aparelho de som, mais uma TV de tela plana e uma minicozinha com micro-ondas e frigobar. Engraçado como antes eu daria qualquer coisa por um quarto como este. Hoje, porém, daria o mesmo só para voltar ao que já foi um dia. Sei lá. Como Hwasa passa a maior parte do tempo com outros advogados ou com os figurões endinheirados que ela representa, talvez tenha achado necessário me cercar de toda essa tralha. Além disso, nunca soube direito se ela não teve filhos por falta de tempo -em função do trabalho - porque não encontrou o cara certo ou simplesmente porque nunca quis ter. Ou, quem sabe, uma combinação desses três fatores? Uma pessoa com minha mediunidade talvez tivesse a obrigação de saber isso tudo.
Raramente, porém, consigo enxergar a motivação das pessoas. Quase sempre vejo fatos: uma sucessão de imagens que descrevem a vida delas como se formassem o trailer de um
filme. Às vezes, no entanto, vejo apenas símbolos, que preciso decifrar para saber o que significam. Feito cartas de tarô, ou as metáforas daquele livro que a gente teve de ler ano passado, A revolução dos bichos.

Mas estou longe de ser infalível, e muitas vezes me atrapalho todo. Por outro lado, quando isso acontece, a culpa é sempre minha. Ou, então, da multiplicidade de significados que alguns símbolos podem ter. Certa vez, por exemplo, interpretei um coração partido ao meio como símbolo de uma desilusão amorosa - até que a mulher em questão caiu dura depois de um infarto. Às vezes, fico bastante confuso na hora de fazer minhas interpretações. Mas os símbolos e as imagens nunca mentem. De qualquer modo, ninguém precisa ser médium para saber que, quando sonham em
ter filhos, as pessoas geralmente pensam num bebezinho embrulhadinho numa manta azul ou rosa, e não num adolecente de 1,75 de altura, com olhos escuros, cabelos laranjas, poderes sobrenaturais e todo um passado de vivências e emoções. Portanto, no que me diz respeito, procuro sempre ficar na minha e não atrapalhar a vida da minha tia. Tenho todo o respeito por ela. Mas não a ponto de contar que converso com minha irmã morta quase todo santo dia.

Na primeira vez que apareceu para mim, Yeri estava diante de minha cama no hospital, no meio da noite, segurando uma flor com uma das mãos e acenando com a outra. Até hoje não sei direito o que me despertou, pois minha irmã nada falou, nem fez qualquer ruído. Acho que senti a presença dela ou algo assim, uma mudança no quarto, a eletricidade no ar.
Primeiro achei que fosse alucinação - mais um efeito colateral dos analgésicos que eu estava tomando. Mas depois de piscar um milhão de vezes e de esfregar os olhos continuei vendo Yeri à minha frente, por algum motivo, em nenhum momento me ocorreu gritar ou pedir a ajuda de alguém.
Observei-a indo para o lado da cama, apontou para os gessos que cobriam meus dois braços e uma das pernas e começou a rir. Quer dizer, uma risada silenciosa, mas ainda assim uma risada. Tão logo notou minha cara de poucos amigos, parou de rir e fez um
gesto, como se estivesse perguntando se doía. Dei de ombros, ainda um tantinho irritado com a risada dela e um tantão assustado com o que estava acontecendo. E mesmo duvidando de que era realmente minha irmã quem estava ali, não me furtei de perguntar:

- Onde estão a mamãe, o papai e a Buttercup?

Ela inclinou a cabeça para o lado como se eles estivessem logo ali, mas nada vi além de um espaço vazio

- Não entendi

Mas Yeri simplesmente sorriu, juntou as palmas das mãos e, movendo a cabeça, sugeriu que eu voltasse a dormir. Então fechei os olhos, mesmo nunca tendo acatado ordens dela antes. Logo depois, no entanto, abri os olhos novamente e perguntei

- Ei, quem falou que você podia pegar meu suéter emprestado? - E de um segundo para o outro ela sumiu. Devo confessar, passei o restante daquela noite me remoendo por ter feito uma
pergunta tão estúpida, egoísta e superficial.

Tinha jogado no lixo a oportunidade de obter respostas para algumas das perguntas mais importantes da vida, de descobrir respostas que a humanidade especula há séculos. Em vez disso, preferi implicar com minha irmã morta, só porque ela havia invadido meu guarda-roupa. É como dizem, certos hábitos vão para o túmulo com a gente.

Na segunda vez que Yeri apareceu, eu estava tão aliviado e feliz por vê-la de novo que não disse absolutamente nada ao reparar que ela estava usando não só meu suéter predileto, mas também meus melhores jeans (tão compridos nela que a bainha embolava nos tornozelos) e a charmosa pulseira que eu havia ganhado no aniversário de treze anos, para a qual ela sempre havia espichado os olhos.
Simplesmente sorri, cumprimentei-a com a cabeça e agi como se não tivesse notado
nada. Erguendo-me na direção dela, perguntei:

-Então, cadê o papai e a mamãe? - Naquele momento, achei que bastaria firmar o pensamento para que eles aparecessem ali também. Mas Yeri apenas sorriu e sacudiu os braços como se estivesse batendo asas.

- Quer dizer que eles viraram anjos? - perguntei com os olhos arregalados.

Ela revirou os olhos e fez que não com a cabeça, plantando as mãos na cintura enquanto se dobrava de tanto rir.

- Tudo bem, deixe pra lá. - Esborrachei a cabeça no travesseiro, pensando que, apesar de morta, minha irmã estava brincando com fogo. - Então, como é do lado de lá? - perguntei, disposto a não brigar. - Quer dizer... Você está... vivendo no céu, não está?

Yeri fechou os olhos e estendeu a palma das mãos como se estivesse equilibrando algo. De repente, do nada, uma pintura se materializou ali, bege, desbotada, com uma elegante moldura dourada. Erguendo-me da cama outra vez, examinei de perto a paisagem retratada no quadro: uma praia de areia dourada e águas muito azuis, cercada por penhascos tortuosos e arvores florescendo, ao longe, a silhueta embaçada de uma pequena ilha.

-E por que você não está lá agora? - perguntei.

Ela não disse nada. Apenas sacudiu os ombros e sumiu, juntamente com a pintura. Por conta de muitos ossos quebrados, uma concussão, uma hemorragia interna, diversos hematomas e cortes, entre eles um talho bastante profundo na testa, fiquei hospitalizado por mais de um mês, todo engessado e quase sempre sedado. Portanto, coube a Hwasa toda a chatice de esvaziar nossa casa, providenciar os enterros e empacotar meus pertences para a mudança que estava por vir. Ela pediu que eu listasse tudo aquilo que queria levar comigo. Tudo o que deveria ser transplantado da vida perfeita que eu tinha em Busan para a vida nova e assustadora que passaria a ter em Seul. Mas, exceto por algumas roupas, eu não queria levar nada. Não seria capaz de suportar tantos lembretes de tudo o que havia perdido, além do mais, uma caixa idiota cheia de tralhas jamais traria minha familia de volta

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