Capítulo 1: Mia

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- Mia – repetiu a psicóloga mais de uma vez, enquanto anotava algo em sua agenda. – Mia? Como está se sentindo?

Fingi que não era comigo.

Eu encarava os pulsos, que continuavam enfaixados, e me perguntava o por quê? Mas não parecia haver nenhum.

Eles doíam! Mesmo depois de 7 meses, eles ainda doíam, e coçavam. Os cortes, que iam do pulso subindo uns cinco centímetros pelo braço, agora estavam cicatrizando, e eu não conseguia classificar aquilo como bom ou ruim.

Tudo parecia está errado. Eu não conseguia entender porque ainda estava aqui.

- Tem algo a me dizer sobre isso? – perguntou a doutora Sarah, agora encarando os meus pulsos enfaixados.

- Não tenho mais nada a falar sobre isso – digo, minha voz sai tão baixa que me pergunto se ela escutou.

Olho para ela, e parece anotar mais alguma na sua maldita agenda. Ela franzi os lábios e balança a cabeça para cima e para baixo, várias e várias vezes.

- Eles te incomodam? – pergunta ela depois de alguns segundos.

- Não – ironizo – nos tornamos melhores amigos.

Ela solta uma risadinha e rola os olhos. Eu prendo o riso.

- Conseguiu fazer algum amigo aqui? – pergunta ela, ainda anotando coisas.

- Ah, mas é claro – respondo no mesmo tom de voz irônico – Patrícia, a louca da ala sul sempre me acompanha nas caminhadas pelo jardim, e conversamos sobre as novas técnicas suicidas. Aprendi muito com ela.

- Você não deveria falar dessa forma! – ela me repreende. Termina de anotar algo e olha para mim me encarando.

Ela tinha razão, é claro. Patrícia não era louca, mas deu entrada no centro psiquiátrico algumas semanas depois de mim, com um quadro grave de esquizofrenia. Hoje com medicação e tratamento adequados, ela está muito bem.

- Ah e também tem o Bob do quarto ao lado do meu, ele me pediu em casamento, e estamos planejando fugir para nos casar. – eu falo ainda na brincadeira.

Bob era uma excêntrico, mas não era má pessoa, ainda assim, eu não conseguia parar de usá-lo, assim como a Patrícia, para desviar o foco dessa conversa.

Mas que raio que pergunta era aquela? Eu não tinha amigos, pelo menos não mais. Aquele lugar até tinha algumas pessoas divertidas, mas a grande maioria de nós só tentar sobreviver a mais um dia. Não que isso fosse um problema, eu só não tenho muita coisa sobre o que conversar com eles.

- Mia – ela me repreende. Eu cruzo os braços sobre o peito e me encosto na poltrona.

- De que forma eu deveria falar?- rebato irritada – Que espécie de amigos espera que eu consiga fazer nesse lugar? Como deseja que eu não tenha pensamentos negativos se vocês me mantem trancada aqui, por sei lá quanto tempo?

Na verdade eu sabia exatamente quanto tempo havia passado naquele lugar. Eram exatamente 204 dias.

- Você sabe que isso é para o seu bem.

- Para o meu bem? Você tem certeza disso?

- Mia, você deu entrada nesse lugar com um corte de lâmina no pulso, e só está viva porque uma força maior quer dessa forma. E aqui dentro você tentou duas overdoses por medicamento. – ela fez uma pausa e olhou para mim, como viu que eu não tinha nada a dizer, continuou. – Eu levei quase três semanas para conseguir arrancar alguma coisa de você, alguma coisa que fizesse sentido.

- Acha que meus motivos não são suficientes? Acha que faço isso por capricho? É isso que está tentando me dizer? - eu disse, tentando engolir as lágrimas que ameaçavam cair.

- Eu não falei nada disso. – disse ela, agora parecendo muito cansada. Eu também me sentia exausta. – metade dos seus motivos seria demais para qualquer pessoa, Mia. O que quero que você entenda é que nada, simplesmente nada, vale a sua vida.

- Mas que vida? – pergunto tentando segurar as lágrimas e falhando.

- A gente ter problemas, está depressivo, não é vergonha nenhuma. O que jamais pode acontecer é você deixar essas coisas dominarem você. Te abaterem, você entende?

Faço um sinal negativo com a cabeça.

- O que acha que posso fazer depois que sair desse lugar? Eu simplesmente não posso esquecer e seguir como se nada tivesse acontecido. Ele ainda vai está lá, Sarah. Todos eles ainda vão está por ai, e nada será feito, porque as pessoas sempre têm coisas melhores para fazer, e ninguém se importa.

- Isso não é verdade. Eu me importo, a sua mãe...

- Mas não o suficiente – eu a interrompo. – Não o suficiente. Porque depois de tudo ele ainda está lá.

- Mia, eu tenho algo para te contar – começou ela, fazendo uma pausa logo em seguida.

- O que é? Vocês vão me manter aqui, é isso?

Ela fez que não com a cabeça.

- A direção resolveu assinar a sua alta. Você ainda terá acompanhamento psicológico, nos primeiros meses duas vezes por semana... Mas no geral eles acham que você se sentirá melhor voltando a sua rotina. Amigos, escola... essas coisas.

- Chegamos a conclusão de que conviver tempo demais com os outros internos não vai te apresentar nenhuma melhora. – ela continuou.

- Você só pode está brincando comigo? – pergunto. Me levanto da cadeira e começo a andar de um lado para o outro na sala. – vocês chegaram a essa conclusão? E nem pensaram em falar comigo? A minha opinião não é valida?

- Mia você sabe que não podemos discutir isso diretamente com você, mas a Linda está ciente e concordou conosco. - ela fez uma pausa antes de continuar.

- A gente não pode te manter aqui para sempre, isso te mataria. – acho que ela percebeu quão estupida foi a ultima frase, e rapidamente murmurou um pedido de desculpas. – De qualquer forma a sua mãe já assinou os papeis.

- Quando ela fez isso? – pergunto. Eu estava me sentindo traída.

- Hoje, pela manhã.

- Ela está aqui, não está?

- Sim, e suas coisas já estão prontas.

Soltei uma risadinha incrédula, e caminhei até a porta, afinal eles estavam praticamente me expulsando daquele lugar. Não que fosse o melhor lugar do mundo, mas pelo menos me mantinha afastada do inferno que era a minha casa.

- Sarah? – chamo por ela antes que girar a maçaneta.

- Sim, Mia. – ela responde.

- Nas nossas sessões, você sempre me aconselhou a encarar os meus demônios e tentar seguir em frente. Mas o que acontece se eu sair daqui e voltar direto para o inferno?

Ela me encara por um momento.

- Como eu imaginei. – falo e giro a maçaneta, abrindo a porta.

- Mia? – ela me chama antes que eu possa passar pela porta. – Você sabe quem foi que te socorreu?

Eu congelo! Porque ela está me perguntando isso?

De repente uma imagem invade a minha mente. Alguém está me pagando nos braços. Está correndo comigo. Meus pulsos doem, e ardem. Eu estou sangrando. Há sangue por todos os lados. Eu tento abrir os meus olhos, tento falar, dizer para que ele me deixe ir embora. Mas tudo o que escuto é uma voz que repete.

- Mia, por favor, não morra. Você não pode me deixar!

E eu vejo um rosto.

- Não – finalmente respondo. Ainda estou parada diante da porta entre aberta. – Eu não consigo lembrar de nada do que aconteceu naquele dia.

Aquilo é uma grande mentira.

- Tudo bem – ela diz – pode ir.

E eu vou embora, o mais depressa que consigo. Antes que ela possa perceber que eu estou mentindo.


Estilhaços - RepostandoOnde histórias criam vida. Descubra agora