Capítulo três

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Na cozinha da vó cabia pelo menos metade da minha casa. Ou um terço da minha casa. O cômodo era tão grande que sobrava espaço vazio, mesmo com todos os eletrodomésticos e móveis de cozinha, uma mesa com oito lugares, uma poltrona para duas pessoas, uma televisão tão grande quanto a da minha sala e uma cristaleira que ninguém podia chegar perto (a lenda contava que existia louças ali mais velhas que a mãe e eu juntas).

Aquele também era meu lugar favorito da casa - e não apenas porque ali nasciam comidas deliciosas. Vó Glória também parecia concordar, pois passava boa parte do dia no cômodo, quando não estava no jardim (acarinhando suas preciosas hortênsias) ou na casa das amigas, claro.

- Eu tô com fome, vó - falei, prolongando na "fome" para combinar com meu estômago roncando.

O cheiro de alho dourado era um convite, me lembrando de que passei o dia sobrevivendo a base de frutas e chá. Não que tivesse sido difícil. Depois de consertar o rosto da montanha desconhecida, meu cérebro estava alerta demais para dormir. Ou seja, fui para cama tarde, acordei ainda mais tarde e, quando dei por mim (após uma leve maratona na Netflix), já eram oito horas da noite.

- Se você tivesse com fome mesmo, já teria comido alguma coisa - disse a vó, sem se virar para a poltrona em que eu estava sentada. - E você só está com fome porque eles estão comendo na tevê, e bolo de cenoura é seu favorito.

A colher de madeira da vó apontou para trás, na direção da televisão. As personagens da novela estavam comendo um bolo de cenoura tão maravilhoso que só podia ser mentira.

- É de mentira - falei.

Prontamente vó Glória virou o corpo para tevê, abandonando o fogão. Desde sempre, assistir a novelas era uma de nossas formas de passar o tempo juntas. Assistir a novelas, preparar o jantar, comer e depois descansar. Tudo isso tendo como pano de fundos nós duas apontando defeitos (como bolo ou comidas que só podiam ser de plástico) no cenário e expressando nossa raiva com protagonistas, gritando o máximo que podíamos para ver se eles nos ouviam.

Ainda não havia funcionado, mas nós tínhamos esperanças.

- Tá molhadinho demais para ser de mentira - declarou a vó, quando o bolo voltou a aparecer. - É que as luzes do cenário estão iluminando a calda de chocolate, aí parece de mentira.

Ela tinha razão. A atriz mordeu um pedaço tão grande do bolo que me fez gemer.

- Tô com fome, vó - grunhi. Dessa vez, a ênfase foi em "vó".

- Mari, se você me falar outra vez que tá com fome, eu vou dar a janta pros vizinhos! - disse a vó, toda firmeza e promessas.

Eu mordi a boca, me proibindo de qualquer nova queixa. A promessa já foi cumprida mais vezes do que eu podia contar. Vó Glória não fazia nada sob pressão, mesmo que nos jogássemos no chão implorando por qualquer migalha que fosse. Ela fazia apenas o que estava com vontade, e não porquê tinha uma neta esfomeada esperando ansiosamente pela janta.

Salvando MarianaOnde histórias criam vida. Descubra agora