Capítulo vinte e três

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 "Não abaixe as mãos, não encoste em nada", repetia a voz do professor ensinando paramentação cirúrgica, acompanhado por um coro de enfermeiros e técnicos ao longo da graduação

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 "Não abaixe as mãos, não encoste em nada", repetia a voz do professor ensinando paramentação cirúrgica, acompanhado por um coro de enfermeiros e técnicos ao longo da graduação. "Não encoste em nada".

Alguns colegas bufavam diante da precaução alheia, demonstrando que já sabiam, não eram imbecis, não contaminariam o ambiente, não sujeitariam o paciente a doenças e infecções. Mas eu sempre agradecia por esses lembretes.

"Não encoste em nada", insistia comigo mesma. "Você não tem cinco anos, não passe os dedos pela mesa, não encoste em pessoas, não toque nos instrumentos".

Era difícil. Sempre fui a criança que abraçava a professora, os colegas, os gatos e cachorros na rua. Sempre gostei de tocar em coisas, senti-las. Sentir texturas diferentes, lembranças diferentes. O pijama suave de seda que a mãe usava depois de um dia difícil no trabalho. O metal frio das peças de xadrez do meu vô. O plástico flexível no meu caderno de histórias. Tocar tornava a vida mais real.

"Não encoste em nada".

Eu lutava contra o instinto.

Foi assim que entrei na sala de cirurgia.

Algumas pessoas erguiam as palmas das mãos em uma prece. Outras cruzavam os dedos como alguém vestindo o paletó de madeira. Eu os unia em um triângulo, pressionando-os tão firmes uns contra os outros, que podia adivinhar sua cor pálida, sem circulação, sob as luvas. "Não encoste em nada".

Como Heitor havia prometido, dois internos estavam ao meu lado. No vestiário eu os ouvi sussurrar que estavam animados, mas também apavorados. Aquela seria sua primeira cirurgia abdominal. Eles discutiram sobre o paciente — não sobre o homem deitado na cama, mas sobre sua doença. Eu ensinei a mim mesma a odiar aquilo, a não me deixar levar pela praticidade. Assim surgiu o caderno, para me lembrar de que pessoas eram muito mais do que apenas suas doenças.

Meus dedos continuavam firmes, "não encoste, não abaixe", enquanto o abdômen estava aberto. Heitor e seu residente do terceiro ano, sempre chamado de R3, começaram o trabalho de verdade.

Agradeci a Darwin pelas máscaras cirúrgicas. Com elas ninguém poderia ver minha boca aberta, em completo estupor diante da cirurgia à minha frente. Aquilo não era novo, já perdi a conta de a quantas assisti, mas minha expressão sempre foi a mesma. Aquele momento era mágico, aquela era a magia da vida real.

Heitor entregou algum instrumento, em que eu não prestava atenção, para o enfermeiro e levantou os olhos para mim. Talvez estivesse falando algo, talvez explicando o que estava fazendo para seus alunos. Eu não me importava, pois assisti à operação várias outras vezes, o bastante para me deixar hipnotizar pelos movimentos precisos do cirurgião. Quase a regência de uma orquestra no ar. Se eu tentasse repeti-los em casa (o que tentei), meus dedos se moviam desprovidos da graça e destreza daqueles que executavam o mesmo procedimento dez vezes por semana — em uma semana calma.

— Raio de luz, você quer sentir coração? A aorta? — perguntou Heitor em tom de quem se repetia pela milésima vez.

Forcei minha atenção para longe dos órgãos internos, para longe dos meus pensamentos e lembranças. Os olhos de Maurício de Souza de Heitor sorriam.

— Tá zoando comigo? — perguntei, me arrependendo na mesma hora.

— Isso aqui não é zoação. — Apesar das palavras, seus olhos continuaram sorrindo.

Me aproximei da mesa devagar, os dois internos fizeram o mesmo, esperando que fossem os próximos na fila ou apenas querendo encontrar a aorta naquele pedaço descoberto de vermelho... que pertencia a um homem, quarenta anos, pai de dois meninos, viúvo, filho de pais com histórico de diabetes.

Heitor ergueu suas mãos do homem, cuja pele se abria feito um livro. Contrariando todos os anos de instintos reprimidos, meus dedos encostaram na curva de sua parede abdominal contra órgãos quentes e macios, e então eu encontrei.

O pulso firme de sua aorta despertou meus sentidos, lembranças, toda a vida que às vezes esquecemos. Não mais escondida sob camadas de pele, órgãos, ossos e músculos, eu podia sentir as ondas do sangue fluindo para todo o corpo daquele homem. Subindo e descendo com tanta vontade, com tanta gana de viver, quanto o próprio músculo em meu peito. Eu podia ouvi-lo tão claro quanto minha própria respiração.

Um som meio estarrecido, meio cheio de encanto me escapou.

Os olhos de Heitor sorriram ainda mais. Parecia impossível que alguém pudesse sorrir assim e continuar com olhos abertos.

— É isso — disse ele.

É isso.

A magia da medicina, aquilo que me fazia ficar horas sonhando com o futuro, a razão de eu cortar a barriga das minhas bonecas de pano. Tudo para poder chegar tão perto de lugares em que a vida se desnuda em nossos dedos, em áreas com as quais não se pode vacilar. Naquele momento, eu não precisava resistir a instintos.

Encoste.

As batidas do meu coração enchiam meus ouvidos de certeza sobre vida, sobre a minha e a daquele homem. Meus dedos enluvados cheios de sangue, ainda vibrando com a beleza de poder tocar em algo tão vital, saíram atordoados do abdômen.

Encoste.

O vermelho vivo brilhando em meus dedos já sentia saudades do calor abandonado. Em qualquer outro contexto, meus dedos seriam prova de uma falta de empatia, de uma falha na minha criação, de um problema social. Ali, o sangue na luva era o que me fazia médica.

Eu sorri. Eu sorri tanto que meus olhos fecharam com dor e alegria. Finalmente compreendi o que precisava fazer.

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⏰ Última atualização: Feb 07, 2022 ⏰

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