Capítulo vinte e dois

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Era como tomar um tapa

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Era como tomar um tapa. Um tapa de novela no rosto, todo estalido e orgulho ferido, sem força suficiente para deixar marca. O único vestígio era invisível, entranhado no desdém de um olhar desviado, de um desprezo velado e um sorriso de despedida aliviado — nada mais de isso por perto.

Eu dormi na cama emprestada, a mesma de sempre, no quarto de sempre. Esse cômodo não havia mudado, um dos poucos. Acordei cedo, tomei café e anunciei o horário do meu voo. O pai discordou, dizendo que não era o que eu disse antes, mas insisti que havia me enganado no e-mail. Era nove e quinze da manhã o voo, não duas e quinze da tarde.

Esperei cinco horas no aeroporto observando pessoas, tomando cafés superfaturados e vendo aviões decolarem através de paredes de vidro.

Tudo muito apressado, tudo muito certo.

Voltei para casa no horário marcado, céu azul e viagem tranquila. Sem malas para apanhar, sem vizinhos sonoramente altos sentados ao lado. Uma benção de Darwin diante de meu estado de espírito.

Abri a porta do meu carro quase me arrependendo do preço da diária que pagaria. Eu estava meio sem rumo, meio querendo voltar para casa e esperar a mãe chegar apenas para abraçá-la durante um minuto inteiro. Ou uma hora. Eu sentia tanto sua falta.

Mas eu havia prometido a mim mesma que não voltaria enquanto não estivesse pronta. Então pensei em buscar o colo de Alice, mas lembrei de Flávio, que poderia estar por perto. Por tudo isso, liguei o carro, paguei o assalto que era o preço da diária no estacionamento do aeroporto e dirigi duas horas até minha nova casa temporária.

Dona Fátima estava cochilando no balcão enquanto seu marido assistia a um programa de calouros na tevê. Subi para o segundo (e único) andar da pousada, abri o quarto com a chave número cento e cinco, tirei a roupa e tomei o banho mais longo do ano. Quinze minutos, cabelos lavados, músculos relaxados devido ao calor abafado do banheiro, cheiro de sabonete e xampu para cabelos tingidos impregnando o quartinho.

Nem corpo nem mente queriam estar ali. Não com aquela cama bem-feita, tão diferente da minha em casa, não com aquele armário descascado nos cantos, não com aquela televisão de tubo sobre uma escrivaninha tão pequena que um fichário aberto não caberia ali. Meus livros e apostilas se empilhavam no chão.

Vesti um tênis, casaco e saí de casa. Andei meia hora até chegar ao cinema mais próximo, assisti a filmes com pipoca e refrigerante, comprei doces para mim e para uma menina que não conseguia escolher entre M&M e Batom (sempre o primeiro, disparado) e me deixei ser embalada pelos sons das pessoas na sala escura, comendo, sussurrando, seguindo satisfeitas com suas vidas. Não chorei nas partes tristes, quase ri com as felizes.

No fim, ainda não estava pronta para ir voltar. Fiz o percurso de volta em uma hora, a passos de tartaruga. A cidade morria aos domingos à noite. Luzes e vozes saíam de casas e apartamentos, mas nenhum comércio sobrevivia. Nem mesmo para lanches.

Voltei para casa, casa temporária, conversei com Dona Fátima sobre o final de semana sem entrar em detalhes. Ela me deu biscoitos de água e sal e um copo alto de achocolatado. "Você está estranha, Mari, está se sentindo bem?", perguntou, cheia de preocupação. Eu disse que não ficava doente, que acumulava experiência. Ela não riu e mediu minha temperatura com a palma da mão.

Dormi no sofá da recepção.

No dia seguinte, dormi outra vez.

Dona Fátima tentou me puxar para o quarto, "você não está pagando para ficar com dor no pescoço, Mari", mas respondi que não me importava, virei pro lado e voltei a dormir.

Foram noites péssimas.

Passei a terceira noite em outro sofá, a quase um quilômetro dali, rodeada pelo médico emergencista e uma outra médica de plantão. Passei uma semana assim.

Veja, eu sabia o que estava acontecendo. Já li livros e fui interna de psiquiatria, já conversei com pacientes, já assisti a filmes e séries, já observei pessoas, inclusive minha própria melhor amiga. Por tudo isso, eu sabia que meu estado não era grave. Eu só precisava de tempo, alimentação saudável e exercício. Em pouco tempo estaria me sentindo como eu mesma... Seja lá o que isso fosse.

E funcionou. Depois de algum tempo, tomada pela repulsa patética ao meu próprio comportamento, me forcei a parar de dormir em todo meu tempo livre, substituindo de bom grado o sofá por resumos e exercícios para prova de residência. Me tornei a produtividade em pessoa.

— O que você ainda está fazendo aqui? — perguntou uma voz à minha direita, me forçando a sair do mar de questões que estava fazendo.

Bom, mesmo duas semanas após ter voltado da casa do pai, eu não havia decidido o que faria da vida, mas parar de estudar não parecia era uma opção válida. Era um hábito difícil de largar completamente e sempre cercado de culpa. Me virei para meu interlocutor, incapaz de não retribuir um terço de seu sorriso aberto.

— Esperando meu plantão começar — respondi.

— Mas o plantão de agora já começou.

— O próximo — expliquei, dando de ombros.

— Você vai passar o dia aqui, raio de luz? Não tem nada melhor pra fazer?

Balancei a cabeça negativamente. De fato, não tinha nada melhor para fazer. Eu estava passando cada vez mais tempo no hospital. Mesmo quando não precisava estar lá, eu acabava estendendo minha estadia, apenas porque não queria voltar para casa. Temporária.

Heitor se sentou à mesa, me encarou durante longos segundos, avaliando cada pinta em meu rosto como se fossem alienígenas.

— Amanhã você vai pro centro cirúrgico comigo — declarou ele.

— Eu não posso.

— Tenho cara de quem se importa? — perguntou ele, unindo as sobrancelhas grossas com alguns fios brancos. — Porque eu não me importo. Temos alguns internos para assistir a cirurgia amanhã e você vai estar lá também. Não se atrase.

— Eu trabalho — respondi. — Wesley iria pirar.

— Você sai do seu próximo plantão noturno mais cedo, arranja alguém pra te cobrir, se vira, raio de luz. Caso contrário, você não vai ter mais plantões nesse hospital.

Eu duvidava muito que ele fosse capaz de despedir a pessoa que pegava todos os plantões possíveis. Inclusive aceitava até o mesmo plantão duas vezes e acabava sozinha do pronto socorro. Mesmo assim, aquelas sobrancelhas expressivas me diziam que cumpririam sua palavra de uma forma ou de outra.

Heitor se levantou, deu um tapinha em minha testa, quase um empurrão, que provocou um grunhido de revolta em minha garganta. Com uma gargalhada baixa e rouca, ele saiu da sala me ameaçando em sua melhor voz intimidadora:

— E se chegar atrasada vai ter mais.

Salvando MarianaOnde histórias criam vida. Descubra agora