Após a derradeira batalha da Aldeia, a rainha Kyrah foi declarada como chefe, numa decisão unânime que até espantou a própria. Afinal, naquela época, a uma mulher viúva e com dois filhos pequenos — Kadaj, de nove anos, e Safyrah com quatro — geralmente não era dada nem a palavra para decidir o seu próprio futuro, quanto mais de todos os habitantes daquela região, nas florestas da antiga Noruega.
Viver era algo que se tornara um dever para Kyrah. Ela se acostumara ao cargo e gostava de tomar suas próprias decisões, sem a interferência de seu finado urso, e, embora às vezes sentisse falta do apoio dele, era impelida pela vontade de ver seus rebentos crescerem em uma aldeia livre, para tomar as decisões corretas e guiar o seu povo, mesmo que ela própria não soubesse o que seria do seu destino.
De natureza fria e meticulosa ao analisar os problemas da Aldeia, conseguiu desincumbir-se satisfatoriamente daquela tarefa, utilizando dos vastos conhecimentos de liderança, que adquirira desde pequena: espiando as reuniões de seu pai, Heric Von Brandeburg, os ensinamentos do velho tutor grego Diômedes, os Conselhos do sheik Safir, o que aprendera na biblioteca de Habbib e as próprias reuniões de clãs que auxiliava pelas sombras, enquanto Beowulf era o chefe.
A rainha só ficara tranquila em seu cargo de governante, pois o seu povo eram muito mais civilizado do que o da antiga Aldeia — ainda existiam os típicos berserkers loucos por uma boa carnificina, mas somente saiam a guerrear quando era inevitável — e também recebeu o apoio da família que sobrara, embora a parte de Berna não fosse muito presente. Quando o filho mais novo desta, Cefas, mal completou um ano, a família de Tristan botou o pé na estrada, pois eles diziam que já estava na hora de levar suas ideias cristãs a outros lugares.
Agora, fazia exatamente oitenta e quatro semanas desde que recebera notícias de Berna, mais de um ano e meio sem saber por onde os Trüppendorf andavam. O inverno já estava acabando e Kyrah não duvidava de que, se dependesse dessa mania de viajante da irmã mais velha, só a veria quando tivesse completado aquele mesmo número de primaveras em sua vida — isso se fosse abençoada pelo deus de Berna a viver tanto assim.
Com vinte e sete anos, a então rainha era uma mulher adulta e, ignorando os costumes da época, era dona de si mesma e respeitada entre os seus. Kyrah não se importava em viver sozinha, mas sempre que via as amigas cuidando dos filhos pequenos com o auxílio dos maridos, sentia certo aperto no peito por não poder proporcionar aquilo à Kadaj e Safyrah. Por isso os amava em dobro, para que não sentissem falta de nada, e dava graças pela família da prima, seus amigos e o quase irmão, Bragi, a auxiliarem em seus deveres do lar.
Mas naquele inverno, algo se agitara dentro de Kyrah, deixando-a inquieta. E não foram raras as vezes que se pegou a olhar para o horizonte, entre as florestas e os campos que circundavam a aldeia, esperando que a família de Berna retornasse, desejando um milagre que trouxesse de volta sua irmã Una — que virara uma nômade do deserto — ou até mesmo a antiga paixão desaparecida, o Bardo Vermelho, para acalentar o seu coração saudoso por seus velhos amigos.
— Mãe, o que está olhando? — perguntou-lhe Kadaj. O rapazinho de onze anos apoiou a cabeça no ombro dela olhando na mesma direção, para a praça de chão batido que ficava em frente à varanda da grande casa dos Brandeburg.
— As folhinhas rolando, as corujas voando, a minha vida passando — respondeu Kyrah em tom suave, com um sorriso nostálgico para o filho.
— Isso fará uma boa ode, vou contar para o tio Bragi — declarou o menino esguio e cacheado, beijando a bochecha da mãe e correndo alegre pelas poças de neve que cobriam o chão, em direção à taba dos bardos.
Após o garoto sumir do seu campo de visão, Kyrah suspirou, ansiando por quem só encontraria fora daquele lugar. Embora quisesse ir atrás de Una, não poderia deixar suas responsabilidades e sair vagando pelo mundo como Berna, e seus filhos já tiveram sua cota de viagens traumatizantes — Kadaj mal se acostumara ao clima do norte, e ocasionalmente ainda tinha pesadelos com as lembranças do passado.
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O Destino da Rainha
Short Story♕ Conto relacionado a UMA HISTÓRIA BÁRBARA. Situado temporalmente anos depois da Parte III (final do livro), então contém SPOILERS! Leitura não aconselhada para quem ainda não terminou UHB! ♥ Já ficou comprovado que as mulheres dos povos...