Parada à porta de dona Sophia, Amora teve medo do que poderia ouvir - isso considerando que a mãe falaria algo de importante. Ela guardava poucas lembranças, e tinha apenas uma foto do pai, mas tinha uma imagem boa dele, bons sentimentos, e tinha medo que uma revelação bombástica pudesse mudar tudo! Ela respirou fundo, expirou deixando o ar sair lentamente enquanto criava coragem para tocar a campainha, e só depois de alguns minutos para à porta finalmente o fez. Logo que o ding dong soou ela ouviu o som vindo dos sapatos altos de dona Sophia. "Sempre no salto" Amora pensou. Ao abrir a porta a surpresa da mãe foi visível.
- Amora? - indagou ela, assustada - Aconteceu alguma coisa?
- Oi mãe! - respondeu Amora um pouco desconfortável com a reação da mãe. - Não, só quero conversar com você um pouco. Posso entrar?
- Claro! Entre! - disse ela, sem conseguir disfarçar a surpresa - Vou preparar um café para nós, vamos para a cozinha. Tenho aqueles biscoitos amanteigados que você gosta!
- Mas você odeia biscoito amanteigado! - exclamou Amora. Agora foi ela quem ficou surpresa.
- Sempre compro na esperança de você de você aparecer. - respondeu a mãe, sem olhar para Amora.
Essa resposta fez o coração de Amora murchar como uma bexiga estourada. Era algo duro de se ouvir, imagina então de se dizer e sentir! Ela então se sentiu culpada por estar ali para falar do pai, mas não queria desistir.
- Quer ajuda? - perguntou a moça, tentando quebrar o clima.
- Não, tudo bem. Obrigada! - respondeu dona Sophia, ainda sem olhar.
- Como você está, mãe? - perguntou enquanto sentava à mesa.
- Estou bem. Mas foi esse assunto que te trouxe aqui, foi? - questionou, se virando, e sentando-se de frente para a filha.
Amora pensou se não deveria esperar que o café ficasse pronto para entrar no assunto quando estivesse mais a vontade, mas a verdade é que ela não tinha mais o que dizer. Não tinha como enrolar para o tempo passar. Não conseguia pensar em nada casual para dizer, nenhum interesse em comum, elas eram muito diferentes, sempre foram. Não tinha outro jeito, teria que ser agora, sem rodeios, mas tentaria falar do jeito mais delicado possível.
- Bom, é, não foi só por isso que eu vim aqui. - disse ela, pausadamente, procurando as palavras certas - Eu sei que é um assunto delicado pra nós duas, mas eu preciso saber mãe... - respirou fundo e decidiu ir direto ao ponto - O que aconteceu antes do papai morrer?
O silêncio caiu pesado, de forma que era possível ouvir nitidamente o processo da cafeteira trabalhando, a respiração das duas, que se olhavam imóveis, até mesmo o vento fraco que balançava de leve as folhas das árvores na rua. Após uma longa pausa, dona Sophia finalmente se pronunciou, com a voz embargada por uma dor há muito adormecida.
- Qual é a sua última lembrança do seu pai? - quis saber, antes de dizer qualquer coisa.
- Não me lembro de quase nada. - confessou Amora, sentindo estranha por dizer aquilo - Mas essa noite eu sonhei com ele. Eu estava espiando por uma festa da porta do meu quarto, e ele me flagrou, entrou e brincou comigo.
- Ele foi um grande homem! - as lágrimas começavam a brotar nos olhos castanhos de dona Sophia - Era comum eu chegar no seu quarto, e ver vocês brincando de boneca, ou com os fantoches de bichinhos contando histórias. Eu era sempre a bruxa, que acabava com a brincadeira. - ela não conseguiu conter o sorriso ao dizer isso.
- Eu não me lembro de nada, só pequenos flashes. - a moça encarava as próprias mãos - Sinto que tem algo que eu preciso me lembrar, mas não consigo. É como as lembranças dele estivessem embaçadas.
- Por quê isso agora? - quis saber dona Sophia - Já passou tanto tempo. Por quê agora?
Amora não sabia como explicar para a mãe o real motivo. Como dizer que uma senhora apareceu num sonho, e que era a sua própria consciência, e que tinha algo importante pra ser lembrado naquela época? Isso não fazia muito sentido nem para ela mesmo, e falar aquilo tudo em voz alta faria dona Sophia achar que ela tinha enlouquecido de vez!
- Não sei, mãe. - mentiu - Acho que foi o sonho, me fez sentir saudades, só isso!
- Minha filha, eu não tenho nenhum segredo guardado, se é isso que quer saber. Eu amei profundamente seu pai, e ele me amou também; e então veio aquela doença maldita e o tirou de mim. O tirou de nós. - as lágrimas começavam a surgir novamente nos olhos de dona Sophia.
Naquele momento Amora entendeu que, realmente, não havia nada de impactante para descobrir ali; mas com certeza, ver sua mãe assim foi diferente de tudo que ela já viu. Não havia arrogância ali, apenas uma mulher sofrendo a ausência de um amor. Ela nunca tinha visto a mãe assim; pelo menos não que se lembrasse.
Aquela noite terminou sem que, de fato, Amora soubesse o havia de tão de importante para se lembrar. A dúvida perdurava, mas o assunto foi caindo aos poucos no esquecimento. Mas de uma coisa ela não esqueceria jamais: viu vulnerabilidade em sua mãe pela primeira vez!
•••
Hoje não há muito o que dizer né. Um momento mãe e filha que revelou dores escondidas. Dona Sophia pode até ser uma megera, mas é um megera com sentimentos!Quais serão os efeitos dessa conversa na convivência conturbada de mãe e filha?
Até a próxima!

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Amora
ChickLitCabelos longos, olhos redondos, um enorme coração, e um péssimo gosto para homens! Amora tenta se dar bem no amor, mas sempre mete os pés pelas mãos. Será que ela vai encontrar o amor verdadeiro? De repente, com uma ajudinha dos céus ela consiga en...