Congestionamento

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8km/h, essa a minha velocidade no exato momento. Bem, depende do referencial. Digamos que, se você estiver parado na mesma rua que eu, estarei a 8km/h em relação a você. Mas estou parada em relação ao grupo de meninas que conversa a minha frente. Estou parada no ônibus lotado que agora está a menos de 5km/h em relação a você. Fazem algumas horas que estou nessa inconstância de velocidade em relação a você e nessa constância em relação às meninas.
Gastei algumas dessas horas lendo. Gastei não, aproveitei. É um livro triste. Não aquela tristeza dos romances ou dos finais inesperados dos  livros de mistérios, que tornam culpado o personagem mais mocinho. Não. É uma tristeza da realidade, é uma tristeza de um grupo de garotos que não têm ninguém no mundo e vivem como homens. São apenas crianças, entretanto, são adultos.
Esse livro foi escrito antes de minha avó nascer, antes da Segunda Guerra, antes de colocarem cores nas TVs, mas a história dele acontece hoje, com minha avó velhinha, com a dor dos que sofreram na Guerra e com as TVs de led.
As outras horas passei pensando. Pensando nessas crianças que passam a meninice como homens. Pensando na infância que lhes é roubada.
O grupo de garotas a minha frente ri. São todas tão bonitas. A mulher ao meu lado pegou meu lugar. Gosto de ficar na janela para ver as estrelas. Na estrada há alguns trechos escuros e consigo ver as constelações das quais sinto tanta falta. Mas a mulher parece gostar de estar na janela e o céu está negro.
O céu negro também é bonito porque, quando estamos chegando na cidade, algumas luzes brilham e vemos que não estamos perdidos na escuridão. Tenho ganas de dizer a mulher tudo isso, de cuspir um mundo de palavras. Quero contar a ela sobre os meninos homens, sobre as estrelas, sobre a escuridão. Quero que ela conte tudo isso aos outros, quero que os outros contem aos demais e que os meninos homens escutem as histórias sobre eles, que olhem para o céu e vejam todos os mistérios que são tão belos, que olhem para as luzes das cidades e vejam a esperança de acabar com a escuridão. Quero que sejam apenas meninos, quero abraçá-los e cantar aquela velha canção de ninar. Quero que saibam que a vida é boa e que tudo pode melhorar. Quero seus sorrisos nos rostos magros e suas lágrimas sendo enxutas na barra da minha camisa. Quero tantas coisas...
A mulher ao meu lado desliga o celular, chegamos em um trecho sem sinal.
"Não acha bonito quando a cidade vai chegando assim de mansinho e as luzes aparecem uma a uma?"
"Ah menina, eu só queria estar em casa. Vou dormir, mas pode acender a luz se quiser"
Ela fecha os olhos e seus sonhos a levam para longe, para onde não posso alcançá-la.
As meninas a minha frente ainda riem. E o ônibus lotado de repente me parece vazio. Sou só eu e a escuridão. Fecho os olhos e vejo sorrindo um menino homem, ele pula de prédio em prédio e eu reparo que ele tem uma estrela no lugar do coração. Todo meu céu se ilumina com os corações dos meninos sorridentes que, nos meus sonhos, são apenas meninos.
Abro os olhos no ônibus lotado e tão vazio. O céu continua negro e as crianças ainda choram, magras e sedentas nos becos, levando suas vidas de homens.
A mulher ao meu lado dorme.
As meninas a frente riem.
Minha cabeça dói e o mundo me parece um lugar horrível.

ÍntimoWhere stories live. Discover now