O vermelho escarlate da morte do presente

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Dias são uma sucessão de horas, que são uma sucessão de minutos, que, por sua vez, são uma sucessão de segundos. Dias são uma sucessão de acontecimentos. Bons, ruins, nulos.
Uma sucessão de frames que passam rápido e nos fazem ver os movimentos.
Movimentos os quais acontecem tão depressa que não temos tempo de acompanhar. Bom, ao menos eu não tenho. O tempo mostra-se fugaz para comigo e não consigo reagir veloz o suficiente.
Rotina. É isso o que garante que eu continue na linha, que não enlouqueça com o tic-tac incessante dos meus relógios invisíveis. É também o que me prende, o que tira a graça dos dias, tornando-os maçantes, idênticos, irritantes, mas suportáveis.
Fuga. É isso o que me mantém viva. Cozinhar no meio da semana, assistir a um filme, chutar os cadernos e ler um livro que eu queira, tomar um café com muita canela, sair de fininho de casa já tarde da noite para ver quem é capaz de me fazer sorrir, conversar com o porteiro do colégio, tomar um banho longo e quente, desenhar.... Fugir.
Fugir do mundo, de Cronos, da rotina que me salva e me mata, da velocidade que me enlouquece, da cidade que me aprisiona, claustrofóbica.
O céu é o mesmo para todos nós, mas aqui ele me parece diferente. Os dias são pálidos e as noites amareladas. Os sons sempre tão mecânicos, tão urbanos. A noite chega e todos continuam a fazer barulho, a cidade nunca dorme. Eu, no silêncio do meu quarto, posso ouví-la, posso vê-la. Fico então imaginando suas histórias, o passado que a cerca. Mas talvez o passado não seja tão importante, talvez seja esse o porquê de tudo passar tão rápido. Talvez o presente tenha mais valor. "Viva o presente" sempre dizem.
Talvez o agora seja realmente o mais importante. Mas "agora" dura uma fração de segundos e, ao ler essa palavra, a anterior já é passado. Os tempos se misturam, nos misturam, tudo se torna um turbilhão de cores e de horas. Os relógios invisíveis escorrem tal qual estivessem em uma das obras de Dalí e, de repente, sou um de seus elefantes surrealistas, equilibrando-me sobre pernas finas, prestes a desmoronar. Não é isso o presente? A constante sensação de desabamento? A fração de segundos em que deixa de ser?
A borboleta preta morta no peitoril da janela não era azul. Não nascera azul e jamais o seria. Se o fosse, talvez também estivesse sem vida, serviria para divertimento dos olhos. A borboleta preta é dispensada com um piparote e, veja, vêm sobre ela as formigas. Seria melhor que tivesse nascido azul.
Fosse eu borboleta, decerto seria preta, valeria-me do azul do céu e do verde das folhas, valeria-me do presente, aproveitando a vida que é tão curta para as borboletas. Quando o fim chegasse, seriam meus restos levados pelas formigas, fazendo funcionar o ciclo da vida. Porém, sinto-me azul. A desfalecida borboleta azul presa por alfinetes para embelezar a vista. Apontada com curiosidade pelos pequenos e explicada com arrogância pelos mais velhos. A borboleta azul que passou a curta vida camuflando-se ao azul do céu, sem contraste algum, sendo apenas bela mas tão triste em sua beleza. Seria melhor que fosse preta.
Minhas finas pernas de elefante se quebraram quando pousou sobre minha cabeça uma borboleta que não era azul e nem preta, era vermelho escarlate como o sangue que jorrou de minhas pernas destroçadas. E assim meu presente acabou.
Juntei meus pedaços e equilibrei-me sobre minhas pernas ensanguentadas, já tão doloridas. Pronta para começar de novo. Porque o presente nunca acaba até que pouse sobre ele uma borboleta vermelho escarlate que o mata na fração de segundo em que ele deixa de ser.

ÍntimoWhere stories live. Discover now