Capítulo oito

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Eu acordei deitada no sofá da minha casa. Dei um salto quando lembrei que o João ainda poderia estar ali, mas o primeiro rosto que vi a minha frente foi o do Arthur, um alívio tão grande me invadiu que eu quase chorei. Ele havia chegado no momento certo, acertando alguma coisa na cabeça do João, salvando a minha vida. Do outro lado da sala a porta da entrada se abriu e dois policias municipais entraram, o algemaram e o levaram dali. Meu Deus, eu teria um ataque cardíaco ali mesmo. Alguns instantes eu estava assustada e nesse momento seguinte estou eufórica, aliviada. Olhei para minha mãe, havia uma expressão indefinida em seu rosto. Ela estava de pé com os braços caídos ao longo do corpo, olhando vagamente para o João sendo levado pelos policiais. Logo em seguida ela ficou abalada, assustada e perdida naquela confusão. Porém agora ela surgia, de uma maneira mais normal, e sua raiva, afinal, se revelou. Eu a observei partir para o seu quarto, sem dar nenhuma palavra. Uma porta bateu, e em seguida, o silêncio.

Sentada silenciosamente, com um copo de água nas mãos, eu prestei depoimento ali mesmo ao delegado da cidade. Eu repeti exatamente a mesma história que contara a Arthur horas antes. Para mim, tudo aquilo não passava de mais uma tortura e eles ficaram estarrecidos ao perceberem a profundidade dos fatos da história. Eles ficaram ali cerca de meia hora, e no final, perguntou como eu havia conseguido guardar um segredo como aquele durante tanto tempo. Eu não soube explicar, não porque não sabia, de fato, mas por me sentir mentalmente cansada demais para aquilo. Quando eles partiram, o Arthur se aproximou novamente. Tinha no rosto uma expressão tranquila e feliz.

— Você está bem mesmo? – Balancei a cabeça afirmando. Tinha muito o que conversar, eu tinha muito o que dizer a ele como forma de agradecimento por tudo o que havia feito por mim, mas não seria sensato dizer essas coisas agora. Então nos despedimos com um abraço caloroso e ele partiu.

Observei a sala bagunçada e meus olhos encheram-se de lágrimas ao me dar conta de que Elisabeth não esteve comigo no depoimento. Talvez fosse duro demais para ela ouvir cada detalhe. Tentei compreendê-la, por que sabia que aquela dor, no final, nunca foi só minha, eu sempre a dividiria com a minha mãe. Então me levantei e fui para o seu quarto. Abri a porta, o ambiente estava escuro, mas pude ver claramente ela deitada sobre a cama. Um gemido levemente baixo ecoava. Eu fechei a porta atrás de mim, liguei o interruptor e caminhei até a beira da sua cama. Eu tinha consciência que eu não era boa com as palavras, que não sabia me expressar, tampouco soava coerente ou tinha bons argumentos, mas era necessário dizer algo, Elisabeth precisava disso, eu ainda mais.

— Mãe – Eu sussurrei, com cautela – Eu sinto muito ter escondido isso por tanto tempo, não sabe como eu sinto.

Mas não havia jeito de descrever o tamanho daquele sentimento. Nem que eu passasse minha vida inteira tentando, talvez jamais conseguisse. O fim é assim, eu pensei, enquanto as lágrimas voltavam a descer com força pelo meu rosto. Apenas a observei se levantar e me olhar com uma grande tristeza. Então surgiu um rosto vermelho, molhado pela dor. É tão deprimente vê-la assim. É tão devastador saber que talvez o que a machuque mais seja o fato do meu silêncio. Por não ter confiado nela. Por não ter pedido ajuda quando eu podia. Esses pensamentos me davam um nó no estômago. Então ela se levantou e caminhou em minha direção me abraçando. Eu engoli em seco, sentindo um aperto na garganta pior do que o que o João causara. Ouvi o seu gemido, sentir o calor das suas lágrimas.

— Meu amor, escute – A voz dela soou grave, trêmula – Eu deveria ter percebido isso. Deveria ter prestado mais atenção em você. Nem sei como permitir que isso acontecesse debaixo do meu próprio teto.

— A culpa não é sua – Eu jamais me atreveria a pensar que a culpa seria dela.

— Sim. Fui eu quem colocou aquele monstro dentro da nossa casa, fui eu... fui eu...

Eu jamais acreditaria nisso, mas precisava convencê-la que estava errada, que não havia culpados além do João.

— Por que não me contou, Zoe?

— Tive medo.

Quando ela se afastou meu rosto estava molhado e tudo o que eu conseguia pensar era: Pelo amor de Deus, mãe, não chora. Eu não consigo explicar nada a ninguém, imagine então para a senhora. Ninguém tem culpa, a não ser o próprio João. Vamos prosseguir e superar juntar, mas por favor não chore mais. Ela então pede para que eu conte como tudo aconteceu, enquanto isso sinto as palavras flutuarem, disparando das minhas órbitas, como imagem de um projetor. Minha mãe pode ver tudo isso em mim. Pode ver a dor, o trauma, o medo e enfim, pode compreender o meu silêncio, enfim, pode respirar por saber que mesmo diante da monstruosidade, o João pagaria por cada lágrima derramada até aqui.

— Está tudo bem agora – ela me abraça – A partir de hoje seremos apenas eu e você.

Essa cobrança era desnecessária para uma mulher tão jovem e linda como Elisabeth, porém eu no meu cansaço mental não me aprofundei em mais uma discussão que naquele momento não nos levaria a lugar algum. Eu sabia que esse desejo de não ter mais ninguém não duraria por muito tempo, ela merecia um amor verdadeiro que mostrasse a ela que a vida tem também o seu lado bom e cedo ou tarde ela logo perceberia isso. Adormeci nos seus braços. Não havia mais medo, nem ameaças. Agora era somente eu e Elisabeth.

Não queria acordar aquela manhã. Aliás foi assim por quase todos os dias em que se passaram. Eu percebi que logo, toda a cidade saberia do primeiro caso de estupro depois de dez longos anos sem nenhuma queixa parecida com essa. A última havia ocorrido em uma pequena fazenda nas proximidades do Colorado, com um turista que violentou uma garotinha de apenas três anos de idade. Estupros no Brasil não eram novidades para ninguém, podiam se ver relatos como esse todos os dias pela televisão, de todas as formas, com crianças, jovens, adultos e idosos, o mais revoltante era que mais da metade dos casos de violência sexuais registradas no Brasil era com pessoas conhecidas ou da própria família. Me tornei mais um número nessa triste estatística. "Jovem de dezoito anos foi violentada pelo padrasto dentro da própria casa". As cicatrizes ficavam para sempre.

Cerca de dez dias depois de ter emergido das trevas, tentei expressivamente seguir com a minha vida. Elisabeth estava disposta a mudar tudo em nossa casa. Fez planos de pintar as paredes, mudar os móveis, reformar o meu quarto, tudo o que pudesse me fazer esquecer o que eu havia vivido ali. Mudar daquela casa não estava em nossos planos, aquele era o nosso lar. Foi ali que minha mãe cresceu, viu os seus pais morrerem, me viu crescer e não seria pela monstruosidade de um homem que toda a nossa história seria mudada. Vê-la fazer tantos planos me devolveu a tranquilidade e a certeza que tudo seria diferente agora.

Minha Obsessão - Livro 1 COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora