L de Lace

5 1 0
                                    

Maio de 2014: presente.

Percebo agora que tenho a incrível capacidade de olhar a parede (ou qualquer outra coisa inanimada) e viajar em minhas lembranças.

Mas não posso mais perder tempo, preciso arrumar minhas malas.

Caminho até o quarto.

O forro da cama está bagunçado, uma bagunça parecida com a do meu armário, que abro para pegar a mala preta de rodinhas.

Jogo-a na cama e abro-a logo em seguida. Vou até as gavetas do guarda-roupa e pego as roupas que usarei durante a viagem e pós-viagem.

Para durante, usarei um moletom macio e calças confortáveis. Sei que parece casual demais, mas é preciso, pois estarei surtando de ansiedade e ninguém quer que eu me enforque com uma camisa social desconfortável, né?

Para o casamento, um smoking. Ele é bonito de morrer, mas espero que poucas pessoas o vejam.

Para depois da viagem, as roupas do dia-a-dia servirão.

Falando em pós- viagem, pra onde eu vou?

Se estiver com ela... Sorrio, eu quero que ela saia de lá comigo. Se estiver com ela nós poderíamos fugir para alguma ilha na América Central ou pra qualquer lugar que ela quisesse ir.

Mas, se estiver sem ela, eu realmente não sei pra onde eu vou. Provavelmente volto pra cá e tudo será como era antes, vazio e sem sentido.

No fundo da gaveta de meias encontro a minha caixinha preta. É uma caixa que guardo desde o ensino médio, está cheia de coisas que eu considerei importantes — ou não — por um tempo. Sorrio enquanto paro o que estou fazendo para pegá-la.

Sento na cama e abro a caixa devagar, ansioso pelo que vem dentro dela. Vejo meu dado da sorte, a embalagem de um chiclete antigo, a pulseira da amizade da Clear e, dobrado no fundo da caixa, um pedaço de papel.

É um desenho que Amie fizera quando estávamos na casa dos Slipers.

Amie não era uma artista fabulosa, ela desenha como qualquer pessoa que não sabe desenhar.

No desenho estamos nós dois e uma garotinha de cabelos escuros. O nome da garotinha é Lace e ela é a nossa filha.

Janeiro de 2013: primeiro ano do estágio.

— Quem fez aquele desenho na parede, Lana? — pergunto a ela, me referindo ao casal de palitinhos da parede de seu quarto.

— A pessoa mais talentosa que eu conheço: Kaique! — disse rindo, mas ao olhar para o desenho do garoto seus olhos brilharam um pouco mais.

— É uma graça uma artista como você ter deixado algo tão simples ali — Amie disse aconchegando-se no meio das minhas pernas.

— A beleza dele é simples... — sorriu — Além do mais, tem um significado especial pra gente.

Glória, a irmã mais velha de Lana, entrou no quarto bem na hora.

Glória tinha os cabelos na altura dos ombros, castanhos, muito bonitos. Ela tinha olhos escuros e uma pele clara, mas não clara o suficiente para ser demasiada clara. Ela se vestia como uma dama, mesmo parecendo ser o tipo de garota que adora preto.

— Desculpem atrapalhar a reunião sem mim, mas Pedro e Rolly estão lá em baixo — ela disse a Lana.

Lana sorriu de orelha a orelha e saiu, animada, parecia não vê-los há séculos, seja lá quem fossem.

— Você sabe que não atrapalha, Glória... — Amie disse esticando os braços. — Vem cá, me dá um abraço.

— Eu sei que não... — sorriu, um sorriso torto — Mas você sabe que não vou me agachar até aí, venha você.

Amie revirou os olhos e enquanto levantava, disse:

— Você continua o mesmo saco de preguiça!

Elas se abraçaram. Amie a segurou como quem procurava um lar e Glória se segurou nela como quem queria ser apenas uma casa de férias, passageira.

Glória e Amie têm a mesma idade e quando mais novas elas já foram bem mais próximas. O tempo foi passando e elas mudaram. Glória principalmente. A amizade não era a mesma, mas ainda existia muito carinho entre elas.

Lana saiu com Pedro e Rolly e nós passamos o resto daquele dia frio no quarto dela, que mais parecia um estúdio de pintura que um quarto.

Foi uma tarde de preguiça e o único som que se podia escutar eram as vozes de Amie e Glória se conversando enquanto a minha aparecia de vez em quando para dar algum comentário.

— Vocês dois estudaram na mesma faculdade, têm o mesmo círculo de amigos e moram perto... Vocês devem fazer muita coisa juntos! — Glória nos disse enquanto organizava os lápis da Lana. Ela era meio inquieta e passou a arrumá-los sem perceber.

— Sim, mas não é como se passássemos muito tempo nós dois. Nossos amigos são muito presentes, então estão sempre por perto. — Amie respondeu.

— Então estão acostumados com uma vida à três?

— Deixar os amigos de vela é o nosso lema! — falei, erguendo o braço em direção ao teto, como o Super Homem.

— Não é nada! — Amie disse rindo. — Mas sim, estamos acostumados a ter alguém conosco.

— Isso é bom. Quando tiverem filhos isso vai ser útil, sabe? Aprender a dividir o tempo.

— Nós pretendemos ter um só — falei abraçando Amie, que de novo estava no meio das minhas pernas. — Achamos que não vamos ter tempo para duas crianças.

— Jimmy vai ser um diretor de cinema e eu uma psicóloga que luta contra o desmatamento do planeta. Ou a criança cresce no Set de filmagens com o pai ou na floresta com a mãe.

Glória riu.

— Menina ou menino? — perguntou.

— Menina — respondemos juntos.

— Ela terá o cabelo escuro como o do Jimmy, mas os meus olhos — Amie falou acariciando minha mão, que repousava em sua barriga.

— E ela também terá tuas orelhas, mas o meu nariz.

— Sim! Ou então... Ou então ela vai ser bem diferente do que imaginamos e de algum jeito...

— Será perfeita — completei.

— Ou perfeito.

Sorrimos e nos olhamos com o mesmo olhar. O olhar de quem dizia: vamos fazer isso um dia.

— Vocês deveriam desenhar isso — Glória disse nos entregando um pedaço de papel e um dos lápis que ela tinha nas mãos.

— É... — Amie disse, pegando os materiais. — Deveríamos sim.

Maio de 2014: presente.

Eu acho que deveria estar triste por lembrar disso, mas de algum jeito eu sinto que está tudo bem.

Lace pode ser real um dia. E faz muito tempo que não tenho forças suficientes para acreditara nela de novo.

Devolvo o desenho à caixa preta, coloco a pulseira da Clear no braço e guardo a caixa onde estava.

Lace é um tipo de plano que a gente nunca descarta totalmente. É o tipo de plano que a gente guarda dentro de uma caixa e espera, um dia, poder tirar.

L de Lace, pois ela é o nosso sonho impossível mais bonito.

O ABC do AgoraOnde histórias criam vida. Descubra agora