A Enviada

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E de repente você descobre que a sua vida não passou de uma mentira. Que os namorados que teve não eram de fato alguém com que pudesse se relacionar. Que está prometida a um estranho que pode até ser um velho gagá de fraldas. Que tudo que já fez acontecer não era fruto da sua imaginação. E que o futuro de uma terra está em suas mãos.

- Ou eu sou muito burra, ou você é uma mentirosa fantástica- falei para Grech antes de ela cheirar a pasta de dente.

- Eu já disse. A magia de Quartenália retornou em você. E você sabe, por isso é fácil acreditar.

Eu dei três petelecos na testa e vi que ela mexia na minha prateleira. Ela estava com o meu secador de cabelos na mão, ele ainda estava ligado na tomada.

- E pra que serve isso?- Ela perguntou antes de apontar para a própria face e apertar o botão.

O vento morno lhe assustou, levando seu cabelo laranja e lhe forçando a fazer careta.

- Uau!- Ela exclamou surpresa- É aqui que vocês concentram os ventos da sua terra?

Eu a olhei de canto e sorri ironicamente ao confirmar com a cabeça.

Nem toda adolescente de dezessete anos costuma acordar de madrugada e receber uma mulher de outro mundo que tem uma história absurdamente verdadeira que explica quase tudo de estranho que aconteceu durante sua vida.

Mas eu tinha uma vida. Escola, amigos, parente e sonhos. Eu não podia abandonar tudo para ir pra uma terra que até um dia atrás eu não conhecia sobre a existência.

- Quando você volta para o tal colégio?- Ela me perguntou, ainda mexendo nas minhas coisas.

- Vamos nos reunir na praça principal hoje à meia noite e de lá vamos sair- respondi.

- Então eu tenho que vir aqui umas dez horas terráquias para informar a decisão dos regentes.

- Olha, não existe essa “decisão”- quase gritei com ela, depois me arrependendo pela grosseria - Eu não posso parar minha vida por causa da Terra Quadrada.

Ela estreitou os olhos e fez biquinho ao explicar:

- É Quartenália.

Dei de ombros, não ligando muito.

Eu estava fazendo as malas para voltar ao internato no qual estudava desde que meus pais morreram num acidente de carro. Dessa vez seria mais difícil esconder que eu consigo fazer coisas estranhas acontecerem, pois antes eu só desconfiava. Antes eu chegava a imaginar que eu era diferente dos meus amigos, mas agora eu já sabia. E algo me fazia ter certeza. Talvez a magia que eu não sabia usar.

Resolvi que era hora de fazer meu almoço. Grech apertou uma bolinha de um material transparente- que me lembrou silicone- e logo sumiu no ar vazio do meu quarto.

Quando chequei meu celular, imaginei que nele continha mais mensagens que os serviços de correio. Meus amigos querendo saber como minhas férias terminaram, se eu iria voltar às aulas no período certo e muitas outras perguntas.

Eu ri ao imaginar como seria se Grech se deparasse com meus aparelhos eletrônicos.

Depois de um demorado banho, vesti uma bermuda jeans quadriculada e uma regata bege que não destacava na minha pele pouco bronzeada.

Fiquei sentada no chão. No cantinho da salinha do meu apartamento. Fiquei ali pensando em tudo que se conciliaria na minha vida. Colégio, Quartenália, amigos e eu ainda pretendia arranjar um emprego até a faculdade para parar de depender do meu tio. Não era um turbilhão de preocupações já que eu não estava preocupada. Era um turbilhão de novidades que me assustavam.

Depois de uma tarde pensativa e um começo de noite monótono, Grech apareceu exatamente às dez horas em ponto.

- Você é bem pontual!- afirmei.

Ela fez uma reverência.

- Os regentes disseram que ainda não encontraram o seu noivo- ela falou.

- Ótimo- eu respondi- Agora é só dar tempo ao tempo. Enquanto isso eu fico na minha vida normal.

- Eles disseram que você pode estar correndo perigo- Grech insistiu com o olhar preocupado- A magia que ele carrega em si é magia negra.

Dei de ombros para parecer despreocupada e depois de procurar as palavras, eu falei:

- Então é bom você pintar a magia dele antes que aconteça algo ruim.

- Não posso- ela respondeu tão rápido que pareceu que já contava com o que eu fosse dizer- Não tenho poderes, só sou guardiã do portal. Você é quem deve fazer isso.

Assustada, me virei rapidamente pra ela.

- Como eu vou fazer isso? Não faz nem vinte e quatro horas que eu sei que tenho poderes e agora eu tenho que procurar um cara que pode ser qualquer pessoa no mundo e transformar a magia negra dele em magia do bem?

Ela balançou a cabeça calmamente, olhou-me de baixo e falou com a voz fraquinha:

- Sim, alteza.

- Como eu faço isso?

- Os regentes disseram que, para que a magia negra do futuro rei se torne inofensiva, a pessoa prometida a ele deve retornar à Quartenália, mata-lo...

- Quê?- me assustei.

- Calma- ela falou- Ele vai ressuscitar com a magia da luz.

Eu respirei aliviada.

- Se...- Ela começou.

- Se o quê?

- Se você quebrar o medalhão do elfo.

- Que medalhão é esse?

- O medalhão que segura o portal. Se for quebrado, o portal não poderá mais transportar magia. E a magia ficará lá para sempre.

Eu estreitei os olhos. Algo havia me intrigado. Pensei se seria melhor deixar pra lá, mas quando vi já havia perguntado:

- Mas isso não é ruim? Se a magia ficar presa lá pra sempre, o que acontecerá se Quartenália for vítima de uma rebelião novamente?

- Mas quem iria se voltar contra Quartenália?- ela perguntou- Todos nós vivemos felizes lá. Só houve uma rebelião porque Margareth II não se casou com quem ela havia de casar.

- Tá!- falei- Mas onde está o medalhão?

Ela olhou-me com dúvida e um pouco de culpa.

- Esse é o único problema.

Quartenália- Era Da AscendênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora