Considero aquele dia, como o dia que nasci. Lembro-me de tão pouco. Lembro-me de acordar assustado, da dor descomunal que me tomava, era uma dor intensa, profunda, lacerante, que engasgava meu grito de agonia, fazendo-me contorcer o corpo, como nunca imaginei que pudesse. Lembro-me da sede. Uma sede que ardia em minha garganta e secava minha boca deixando o puro amargor de fel e isso era tudo que me importava. Estava demasiadamente fraco, me rastejava pelo chão arenoso e seco como um verme ao sol. A claridade doía na pele, nos olhos e nas feridas abertas espalhadas por meu corpo. Sentia como os raios solares me afetavam, diante de meu estado, pareciam ferro em brasa, perfurando e queimando cada necrose. Mesmo sendo apenas o sol fraco de fim de tarde. Sabe Deus há quantas horas fiquei exposto a seus raios aqui. Mas pelo grau das queimaduras, imagino que estive sob o sol do meio dia, talvez, por mais de uma vez.
Rastejei-me por muitos metros aumentando minhas lacerações, sentindo olhos vorazes sobre mim, até encontrar a sombra falha de uma pequena árvore seca e morta, fora o único sinal que encontrei, de que um dia houve vida por aqui. Sentia-me seguido por fantasmas silenciosos e só depois de me esconder na sombra do tronco seco, avistei as agourentas aves que me seguiam. Isso de alguma forma me deixou furioso, mas estava cansado e sedento demais para gastar minhas energias. Logo anoiteceria e eu precisaria de minhas forças para suprir meu corpo de alguma forma. Forçava-me a relaxar, como se fosse possível. Meus sentidos estavam estranhos, minha vista turva, minha audição me pregava peças. Ouvi de repente o uivo de um cão selvagem, um cachorro do mato. Abri meus olhos espantado, mas não havia nada além daqueles malditos urubus. Talvez fosse apenas uma alucinação devido a meu estado deplorável. Ou talvez fosse a morte vindo me buscar.
Sentia-me imundo... Estava imundo, qualquer criatura era capaz de sentir meu odor a quilômetros. Não me admirava que mais urubus estivessem se chegando. Olhei para cima apenas para ter certeza que ainda estava vivo, pois eles continuavam lá, me secando com seus olhos famintos, de maneira descarada. Mas então percebi pelo canto do olho, que um atrevido se aproximava sorrateiramente pela lateral, com aquele andar meio de lado, se aproximava cada vez mais, querendo me dar um bote, ou melhor, uma bicada. Pareciam tê-lo escolhido, o tal que faria o trabalho sujo e perigoso. Esperei ele se aproximar e permaneci quieto, senti seu bico cutucar uma ferida em minha mão me causando dor, pois tinha me levado um belisco de pele. Maldito, de repente senti que os outros se encheram de coragem e alguns saltaram dos galhos para o chão. Desgraçados, esperei que o mais próximo viesse me tirar outro pedaço e no reflexo o agarrei pelo pescoço. Suas garras eram afiadas e me causaram cortes profundos, o bicho se debatia e os outros corvejaram ariscos para mim afastando-se receosos. De repente saí de mim e não me reconheci mais.
Foi apenas uma questão de exatos três segundos e quando voltei a mim, estava confuso, como se tivesse me ausentado de meu próprio copo. Os bichos estavam distantes, sentia um gosto horrível na boca, senti algo macio e firme entre os dentes e apertei um pouco mais para ter certeza. Tinha o pescoço quebrado do urubu preso aos meus dentes. O bicho estava imóvel agora, simplesmente fiquei sem ação. Senti aquele sangue de gosto horrível tocar minha língua, então o cuspi e o joguei de lado me apoiando de quatro tão rápido quanto o mordi. Vomitei aquele pouco sangue que se quer cheguei a ingerir e em seguida uma coisa escura, negra e espessa, que saia de meu estômago. O mau cheiro me fazia vomitar ainda mais, não tinha controle sobre meu abdômen que já doía tanto, devido às convulsões.
-HAAA!... QUE MERDA! (gritei)... SAIAM DAQUI!
Os enxotei com fúria, mas aqueles bichos burros ainda ficavam ali por perto, na expectativa. Se já me achava imundo agora nem comento. Fiquei ajoelhado diante daquela poça anormal de vomito, tentando imaginar de que abismo veio isso. Senti meu estômago doer de novo e a garganta secar naquela sede infernal, senti fúria, não sei do que ou por que. Mas era intensa assim como minha sede. Tentei limpar minha boca que ainda tinha vestígio daquela secreção negra, mas assim como fétida era pegajosa e só se espalhou por meu rosto e minhas mãos como uma cola fraca. Em minha camisa encardida, sangue, terra e agora vômito se misturavam piorando meu estado, principalmente psicológico. Levantei-me para arriscar uns passos, a dor no estômago era forte fazendo-me curvar. Mas do sol havia somente o tom alaranjado flamejante, oque me causava certo conforto.
Caminhei por horas e não via sinal de civilização, nem um bicho à toa. A paisagem sempre a mesma, um vasto lavrado. Isso me deixava abatido, porque se não havia animal, não havia água por perto. Minha mente estava fraca e às vezes tinha a impressão de que minha alma caminhava por mim, pois não me lembrava de como tinha avançado tanto na caminhada. Já era noite quando ouvi latidos ao longe, um fio de esperança me fez apressas as passadas. Segui os latidos que levaram á beira de uma grande poça, me aproximei cego de sede, mergulhando meu rosto na água, enchi a boca para logo cuspir. Era lama. Você pode imaginar? Um moribundo sedento, desesperado por uma gota de água, quando a encontra é lama, lama barrenta.
Naquele minuto me perguntava se tinha jogado pedra na cruz. Como podia um ser ter tanto azar na face da terra. Terra, terra, terra e mais terra, seca, árida e quente. Ouvi um rosnado ás minhas costas e me virei cauteloso para encontrar um pequeno vira-lata. Ele era valente, mostrava seus dentes arisco, começou a latir feroz ameaçando avançar. Isso atiçou minha raiva e não sei exatamente oque fiz, mas o cão saiu chorando com o rabo entre as pernas, desaparecendo em meio uma plantação de milho. Só então me dei conta. Um plantio! Como pude estar tão perdido em minha cegueira e não perceber tais mudanças? O Milharal beirava algo que insinuava ser uma pequena estrada de terra, que era exatamente onde me encontrava. Isso significava que nas proximidades existia uma fazenda, uma casa, um casebre ou um barraco, não importava oque fosse, tinha ajuda.
Comecei a seguir o caminho que o cão tinha feito pelo milharal, mas percebi que em alguns pedaços faziam grandes círculos, entendi que estava perto de mais do bicho e ele acuado, tomava qualquer rumo para se ver livre de mim. Fiquei quieto por um momento e o deixei tomar distância. Esperava que me levasse a sua casa. Mas creio ter esperado de mais, pois perdi seu rastro. Enfurecido novamente quase gritei surtado. Resolvi que tomaria qualquer rumo e um dia eu encontraria alguma alma bondosa, disposta a ajudar um desconhecido fedorento e sujo de sangue, ou então morreria. Na verdade qualquer uma dessas opções servia naquele momento. Dei-me conta. Se tanto faz. Para que me dar ao trabalho? Porque simplesmente não esperar aqui mesmo pela morte?
Minha cegueira era tamanha que já não me importava. Levei às mãos a cabeça agarrando meus cabelos de ódio, arrancá-los-ia se não tivesse tropeçado em um maldito toco, quando aturdido dei três passos para trás, caindo com o traseiro no chão, estava alucinando de ira. Fui de quatro até o toco e tentei arranca-lo dali a força. Creio ter perdido alguns minutos em meu ataque, quando enfim levantei a cabeça para o céu estrelado para reclamar com o criador e ao fazê-lo percebi, diante de mim uma casa. Imagine. Senti-me a criatura mais burra do universo, começava a criar raiva da casa que tanto procurei. Levantei contrariado e ainda tentei um chute no toco, mas o errei me desequilibrando quase caindo.
Observei a casa sendo cauteloso ao me aproximar, o morador poderia ser hostil. Eu seria hostil se encontrasse alguém no meu estado em um lugar tão longínquo, poderia já ter uma espingarda apontada para mim naquele momento. Mas tive a impressão de que estava vazia. Mesmo assim por prevenção preferi me anunciar.
-Olá! (minha voz saiu fraca então fiz um esforço)... Olá! Eu preciso de ajuda!...Tem alguém ai!... Por favor! Me ajude.
Esperei alguns segundos antes de decidir avançar, era uma casa de madeira escura, simples e pequena, não aparentava ter luxo algum, havia uma janela aberta, mas nenhum sinal de iluminação. Cheguei a subir os degraus da varanda e me anunciei mais uma vez.-Tem alguém?! (Não tive resposta. Atrevi-me a abri-la causando um ruído alto de ranger)... Alguém! Preciso de ajuda! (falei com a cabeça dentro do cômodo).
A casa parecia abandonada, me afastei a procura de algum sinal e visualizei um poço, corri em sua direção desesperado. Joguei o balde esperando que enchesse e o puxei, foram os segundos mais longos da minha vida. A água tinha um cheiro forte e era pouca, somente meio balde e provavelmente me faria mal, mas não estava em posição de rejeita-la. Me molhei mais do que bebi, quase me afogando. Senti meu estômago dilatar pelo exagero do volume de água ingerido, joguei o balde no chão e caí de quatro. Meu estômago se contorcia me causando agonia, novamente pus todo seu conteúdo para fora, mas desta vez me senti mais fraco do que antes, era apenas água. Cheguei a apagar por segundos, não sabia oque fazer, minha sede não passava, minha cabeça rodava, estava ficando louco. Vi aquele cão acuado, que me observava em silencio debaixo de algumas toras de lenha e depois disso apaguei.
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O Estranho
VampirImagine despertar sem memória em um deserto seco e de sol escaldante, em condições mínimas de sobrevivência. Beirando a insanidade e a morte, a única lembrança certa é o pior dos sentimentos, o ódio. Um estranho chega a uma pequena cidade congelada...