O mundo não acaba

116 7 1
                                    

Luanda, aos 7 de Outubro de 2016.
-Mais um dia de aulas, estou à caminho da escola ouvindo o que a segunda-feira pede, uma carrada de André Mingas, Raul Midon, Stevie Wonder e tantos outros génios que me sabem abstrair da lucrativa tortura que é levantar cedo para correr atrás dos meus sonhos, era só mais um dia na rotina em que existo, até ao momento em que cruzei com alguém que se dirigiu para mim dizendo:
"Pidimo, é como, gira ainda aí um ngüesso"
-Sinceramente, não percebi grande coisa na frase, mas deduzindo que me estava a pedir algo que dificilmente  não estaria ligado á dinheiro e rapidamente analisando o facto de te tresandar ao 'famoso' cocktail de álcool e Canabis, decidi ignorar o mesmo por achar que a minha ajuda só contribuiria para a sua perdição, conclusão rápida, assunto resolvido, então a vida podia continuar, mas após uns 30 metros de caminhada, senti um certo peso de consciência apossar-se de mim. Decidi então voltar, tentando dizer à mim mesmo que só o fazia porque sim, mas lá no fundo bem sabia que o fazia por admitir à minha consciência naqueles 30 metros que não é o mau proveito daqueles que ajudamos que deve inibir as nossas boas acções.
-Ao sentir a minha aproximação, o jovem, algo surpreso, inicia um diálogo perguntando porquê que voltei quando ninguém o faz.
-Tentando disfarçar a vergonha pela atitude anterior, resolvi dizer que regressei por curiosidade, pois não percebi o significado da palavra 'ngüesso'.
"Ngüesso é uma palavra popular,  usada mormente por jovens residentes nas periferias da capital  angolana para referir-se à nota de 50 kwanzas"
-Hum, que definição mais eloquente, pensei para comigo mesmo, e de seguida, cativado pela sua resposta resolvi fazer mais perguntas à seu respeito, que foram sempre respondidas com muita eloquência e coesão, até ao momento em que resolvi dizer algo tão simples quanto:
"Perdoe a minha falta de educação, cheguei aqui, comecei a falar consigo e nem sequer me apresentei , sou Rui Jorge Oliveira, tu és o?
-Caso perdido.
-Caso perdido, que mãe dá esse nome ao filho?!
-A Dona Vida, disse ele num tom ainda mais calmo.
-Explica-te melhor, não te consigo perceber, disse eu.
-Prometo fazê-lo amanhã, agora faça-me o favor de seguir o caminho para a escola, falta apenas um quarto para as 8 e não gostava nada de ser a razão do teu atraso, senhor doutor, prometo explicar-te com mais calma amanhã, ou noutra ocasião qualquer, até porque já conheces em que avenida fica o meu palácio de papelão, disse ele.
-Concordei com a sua opinião e segui para às aulas naturalmente ansioso pela manhã seguinte.
-Chegada a manhã seguinte, decidi sair mais cedo de casa, abdicando inclusive do pequeno-almoço, afinal, me interessava saber por que razão alguém teria aquele nome, bem como uma mãe chamada vida. Posto no local, vi os carros, vi o frio de Julho arrepiar-me a pele, vi o 'castelo' de papelão, só não vi o caso perdido. Pensei em esperar pela sua volta, mas estava demasiado curioso para tal, decidi então me aproximar lentamente do seu castelo, onde acabei encontrando um bilhete em meu nome:

"-Olá, engomadinho, hoje, eu escrevo-te uma carta, ou melhor, escrevo-a ao mundo e os seus tantos habitantes, pois de tanto que os ouvi tratarem-me como um caso perdido, senti-me na necessidade de agredir o silêncio e gritar bem alto dos confins da minha alma, o que acha ou como se define um caso perdido numa carta direccionada aos que de mim, só insinuam.
-Então, só para que saibam, eu sou a insensata fome que insiste em bater a porta com cobranças todos infernais dias, num mundo que nunca me sorriu nem por clemência ou cortesia,  sou o cigarro acompanhado da cerveja que uma 'perdoada' julgou certo degustar enquanto me carregava nas escuras paredes do seu abdómen, sou o poeta que rema e rima contra a maré numa realidade que ouve o que quer e manipula o que vê, eu sou poeira, sou zero, sou nada, sou a nulidade no que toca aos extractos ou, cá entre nós, injustos sociais, eu sou um delinquente juvenil, e bem, bem menos do que esse termo bonito e eloquente, sou o chão que o pessoal lá do Colégio Angolano De Talatona ousa cuspir e pisar, sem sequer olhar...
-Eu, sou o que sou, sou a estrela privada de um céu para brilhar, sou o coqueiro que segue os passos e vontades dos ventos da vida, sou a amarga sombra das doces e iluminadas promessas que o Todo-Poderoso tinha para mim, sou o amor órfão de um coracão, sou a droga que invade as veias e rasga a alma de norte á sul na esperança de me fazer esquecer que o destino foi demasiado padrasto para me presentear com um sangue 'azul', eu sou o culpado pela morte dos ente-queridos de quem me lê, mas como não o seria, se deambulei pelas ruas de Luanda com quem nasceu sortudo ao ponto de poder disparar uma arma contra o próximo e ainda ter um pai com o 'dom' de abafar o som de casos de  barulhentos e polémicos, bem como presentear com vistas grossas os que me julgam só por ser filho duma existência dura que na minha opinião, não precisa durar muito mais.
-Eu sou o ícone dos sonhos sem realização, a lágrima que de tanto que escorreu, morreu sugada pela língua daquele que nem mais se lembra da última vez que uma água digna do nome bebeu, sou o filho pelo pai abandonado, pela mãe mal-criado, e o caso perdido para os supostamente mais entendidos dos meus medos e demónios, eu sou a multiplicação do que quer que seja por zero, a soma do azar á pouca sorte, eu sou só um número sem qualquer destaque no censo duma sociedade de Patrícios e Plebeus que nunca me deu sequer a oportunidade de escolher quem seriam os meus...
-Sabem, a verdade é que ainda que vocês me descrevam como o assado, o frito ou o cozido, nada será o suficiente para apagar o facto de eu continuar sendo ao fim do dia apenas uma criança, um 'kandenguê', um puto infeliz e assustado na dura esquina de uma ocasião que fez de si ladrão...espero que ao menos me possam perdoar pelo tamanho da carta.
-Já agora, antes que a tua mente artística comece a desenhar finais dramáticos, saiba que estou bem, não morri, não fui atropelado por um camião ou coisa parecida, apenas tive de sair para 'trabalhar' durante a madrugada, porque já sabes como é, os delinquentes também sentem fome.
-Abraços do 'dono' das vossas jóias e telefones"

-Que intenso, pensei eu depois de alguns minutos sem saber como reagir áquilo que li, mas vendo bem, a situação não me pedia que reagisse, antes que entendesse quão injustos por vezes somos, digo, por vezes gritamos, chorámos, esperneamos, magoamos pessoas inocentes, nalguns casos temos moral de blasfemar contra Deus, noutros dedicamos músicas, livros ou qualquer outra forma de arte embebida em lamentações por conta de maus momentos, resumindo agimos como se fôssemos os seres mais azarados de sempre, quando existe gente nesse mesmo mundo que comendo hoje nunca está certo de que poderá comer amanhã, que havendo chuva, só pode usar as gotas que caiem do céu como cobertor, que protagoniza um filme de terror desde que se conhece por si mesmo, mas ainda assim, mantém um sorriso bonito nos lábios, não por serem insensíveis, por serem melhores que nós, ou por qualquer outra razão que não me ocorre no momento, apenas porque diferente de nós, têm sabedoria suficiente para entender que:
"O mundo não acaba numa decepção"

Diário de um chifrudoOnde histórias criam vida. Descubra agora