-Luanda, aos 7 De Outubro De 2017.
-Fazia imenso tempo que não escrevia, olhando para trás, não consigo lembrar dum período mais longo de desamor entre o eu sensível de mim e minha arte, mas tudo bem, depois da última experiência nem eu teria coração para ser artista, aliás, quem teria?
-Quem teria pela segunda vez hipocrisia suficiente para ser o tipo que descreve, transpira, ou canta uma decepção como epopéia quando na realidade à viveu como uma verdadeira tragédia, quem estaria novamente disposto a ser o desajuste de sentir dor na primeira pessoa para poder falar com profundidade do famoso amor à terceiras pessoas, quem teria ainda forças para carregar o fardo duma dor eterna só para produzir qualquer demonstração artística que se tanto alimentaria a mais efémera das euforias dos seguidores da sua arte, quem, talvez seja eu amanhã, depois, algures num sopro de vida, mas hoje não.
-Hoje não, hoje eu tenho de ser sincero e admitir que ainda dói que se farta, porque fazia algum tempo desde que me tornei refém do medo de amar, razão pela qual minhas relações todas estavam condenadas a terminar por culpa minha ou da minha falta de bolas para desistir de escrever e viver nas entrelinhas dum passado em que nunca sequer tive destaque, e tal prática se foi repetindo de tal forma que já parecia uma lei, que definia o princípio como paixão, o meio como rotina e o final como o álibi para voltar às vestes de escritor solitário, insensato, e chifrudo, mas, sem mais nem quê surgiu ela, a tal que me provou que depois de Romeu e Julieta, ainda existem em tempos modernos felizes para sempre que podem terminar com ou por sangue, trágico, mas ainda pode ser mais, porque faz uma semana que recebi uma carta de Londres com a assinatura da minha 'mana' mais nova, Helena Oliveira, faltou-me coragem para abrir, mas vou aproveitar o momento de fraqueza para fazê-lo, pior não pode ficar...
"Olá, meu maninho mais velho, primeiro espero que recebas as minhas saudações de acordo à hora do dia, segundo que estejas bem, terceiro, espero que tenhas noção de que te tratar por 'maninho' foi de longe a tirada sarcástica mais dolorosa da minha vida, o que acaba por ser ainda mais irónico quando penso que toda vida usei o sarcasmo para retirar alguma acidez às respostas que com tanta destreza dou às pessoas, mas tudo bem, existem coisas bem mais dolorosas que isso, como por exemplo nós, o nosso nós acabou, Rui Jorge Oliveira. Repito diariamente essa frase de fronte ao espelho esperando que de repente meu coração possa escutá-la, ou que a inocência que costumava ter antes de te conhecer me possa ofertar um recomeço longe desse drama, longe do facto de odiar te amar, e no meio de tudo isso, imagino-te dando um daqueles raros sorrisos enquanto de forma muito charmosa me acusas de ser uma preta controversamente apaixonada por ti, mas a realidade sempre acaba batendo a porta do toilette para me lembrar que o felizes para sempre escreveu "FIM" em letras e sentimentos grandes há 10 meses e uns quantos dias difíceis.
-Sabes, essa não é a primeira carta que escrevo para ti, na verdade são 60 as que escrevi nos últimos meses, sem nunca ter coragem de enviar e perder consequentemente o lugar de menina dos olhos do papá, mas hoje sei lá, foi mais forte do que eu, hoje eu só queria poder simular demência e acreditar que és forte o suficiente para aguentar com a ideia de encontrar uma rima saudável entre o primeiro filho do meu pai e o meu último amante, mas como fazê-lo com um tipo que não consegue sequer dormir na noite anterior à um jogo no campeonato de futebol do bairro em que vive, um tipo que não consegue fazer a ginástica de dar um gole à cada trinta minutos quando compra uma bebida num restaurante caro, um tipo cujos instintos carnais são tão intensos que às tantas podia ser tarefa bem mais simples ensinar falsetes à um leão cantor do que ensiná-lo a ter limites na abordagem ao meu corpo, a verdade é que eu bem podia reduzir essa carta à um simples "ainda te amo", mas como fazê-lo numa altura em que aprendo diariamente que o amor como tal pode ser definido na mescla da loba em mim com tudo, menos você...
-Nesse momento estou num lugar em que me dizem que quando é realmente amor, não acontece simplesmente, não flui necessariamente como 'nós', mas vai me querer como nunca na vida quiseste e independentemente de quem o crucifique, quando é amor, existirá sempre na outra parte alguém que tenha em si a mesma facilidade de perdoar que eu cá tenho de cometer erros absurdos, quando é amor existirá alguém que conheça e valorize a sensibilidade que forçosamente escondo nos dias que correm, alguém que me enamore com palavras melhores que as tuas, me entenda com o silêncio mais oportuno alguma vez visto, alguém que me acalente quando o mundo à minha volta tentar trazer ao de cima o mais frívolo eu de mim, alguém por quem me ajoelhe sem que o orgulho tenha algo à dizer, alguém que me acabe, me recomece, ou invente qualquer gesto que impeça um coração partido de dominar o hemisfério esquerdo do meu peito, alguém que escreva corretamente os seus sentimentos por mim mesmo que em linhas tortas, quando é amor, é o absurdo da diferença, é alguém que me leve a falar em línguas desconhecidas, baile com a minha intimidade, descreva na plenitude minha alma, e me mostre a linha ténue que separa o céu da terra sem pornografia, só ternura e a chama do transcendente.
-Já lá se vão muitos meses desde a última vez que nos vimos, e penso que atento como és, já deves ter percebido por tudo dito nas frases anteriores, que descrevo um amor cristão, porque foi basicamente isso que o nosso pai fez, tirar alguns dólares da sua conta bancária gorda para enviar-me para um convento em Londres, esperando que de repente passe a te ver como uma mera demonstração longínqua de amor desperdiçado, mas o efeito foi totalmente contrário, porque depois de tanto tempo meditando a Bíblia e o amor de Cristo, acabei percebendo que amor para mim, se não for você, só Deus...
"Te ter em inocência incestuosa foi a forma de amor com que mais me familiarizei"
-Beijos proibidos da maninha.