Luanda, aos 15 de Abril de 2015.
-O sino tocou, são doze horas e trinta minutos, mas hoje é um dia diferente, eu sinto-o, porque simplesmente não me apetece passar o resto da tarde afogado em pesquisas exaustivas na biblioteca, desenvolvendo teorias que ao menos por agora soam demasiado utópicas para ser reais, lendo o "Príncipe" de Maquiavel pela enésima vez em forma de diversão ou orquestrando qualquer um outro culto de adoração ao Deus da 'Nerdolândia', o que eu quero hoje é sair e ver lugares cobertos principalmente de gente com quem não cruze diariamente nos corredores da universidade.
-Felizmente tal tarefa não seria assim tão dura, afinal, tenho um shopping praticamente ao pé da minha universidade, então levantei-me da carteira, coloquei 'Sugar' de Marroon 5 a tocar para começar a caminhada de cinco, dez minutos até ao local de destino, rezando obviamente que a empolgação que o som me causa, não se evidenciasse ao ponto de meio que instintivamente experimentar um dos meus assumidos passos esquizitóides de dança em público, e consequentemente perder a minha fama de moço sério.
-Chegando ao local, sentei-me, abri "O Príncipe"(Ah, é realmente mais forte do que eu) e tentei ler enquanto enquanto à espaços ia avaliando o ambiente à minha volta, o que durou até ao momento em que uma jovem sentou-se quase que sem notar ao pé de mim, pudera, tamanha era a cumplicidade que parecia ter com o ecrã táctil do seu telefone. Ela era linda, o que foi possível notar passados dez segundos em contacto visual com as suas feições finas, aquele Ninna Ricci que aposto ser tão doce quanto o seu néctar, e aquelas curvas que faziam dela uma espécie de manual humano das milhentas formas de se ter uma erecção, mas a bactéria pornográfica da minha mente seria facilmente aniquilada naquele momento, porque o que realmente prendeu a minha atenção não foi a beleza da jovem, até porque ao menos segundo os filtros fotográficos que vão sendo inventados em redes sociais e as famosas make-up hoje todas são lindas na minha terra, o que me cativou foi aquele sorriso 'borboletado', as brincadeirinhas que ela fazia instintivamente com os cachos do seu crespo, as pernas cruzadas abanando um dos pés em sinal de ansiedade pela próxima resposta, presumo que profunda, que lhe faria mais uma vez revirar os olhos, provavelmente mais brilhantes na altura do que o habitual e abanar a cabeça como gesto de confirmação da admiração que nutria pela outra pessoa, por fim, notei que ela ouvia I'll never break your heart dos Backstreet Boys, som que só podia ter sido sugerido pela pessoa com quem falava, pensou o tipo armado em vidente que habita em mim.
-Avaliando esses 'sintomas', dei por mim logo de seguida num debate entre a curiosidade e a educação, ainda que a vencedora já fosse de fácil previsão, então eu estava nos instantes seguintes 'assaltando' a conversa de whatsapp da moça, mas nisso não demorei tanto tempo assim a consolidar as minhas suspeitas, porque a moça resolveu perguntar ao jovem por que cargas d'água à queria como namorada, e nessa altura esperava-se obviamente um "Porque gosto de ti" ou "Porque te amo"(afinal as pessoas agora dizem isso como quem diz um 'oi'), mas a resposta foi qualquer coisa como:
"Porque se o sol tem a lua, a poeira em Angola tem a rua e a minha alma nesse momento está nua, então a minha felicidade se deve revestir na tua"
-Era oficial, ela estava apaixonada por um escritor, mas por outro lado eu cá me vi tão envolvido na onda da minha curiosidade, que nem notei que tinha sido pego em flagrante 'delito'. A jovem perguntou-me se tinha perdido alguma coisa no seu telefone, sabe lá Deus porquê, mas naquele momento só soube levantar-me, olhar seriamente para ela e sair dali, mas enquanto caminhava para a paragem de táxis, ia perguntando à mim mesmo a razão de não ter respondido à sua questão, aquele zumbido no ouvido já ia sendo chato, então abri a pasta à procura dos meus auriculares, nisso acabei dando de caras com o meu diário e percebi que realmente tinha perdido uma coisa, a oportunidade de dizer algo tão simples quanto:
"Não namore um escritor"
-Não namore um escritor, pois quimicamente cargas semelhantes tendem a repelir-se, e como se sabe o seu 'modus operandi' amoroso é tão estranho e nebuloso quanto o universo feminino, não namore um escritor, porque ele sabe bem querer e não querer, forjar frieza e embeber a sua personalidade em mistérios sem fim, por nascer com a noção de que aquilo que não gera curiosidade, não apaixona qualquer leitor, ou no caso, a pobre coitada que o chama de amor, não namore um escritor, ele vai apresentar-te um universo de músicas eternas que invés de servirem de álibi para a continuidade da vossa estória, só vão na verdade servir de motivo para que o sacana com medo da seriedade, do 'grude' e do jogo de cedências sentimentais duma relação se mantenha impregnado na tua mente e no teu coração mesmo após a sua mal justificada partida, não namore um escritor, ele sorri quando está triste e também o faz quando feliz, não por falta de domínio das suas próprias emoções, mas por acreditar que entre a tristeza e a felicidade existe uma linha ténue chamada inspiração, logo, não te metas em euforias, pois às tantas o homenzinho ainda pode vir a trabalhar com mais afinco no seu próximo livro que no teu próximo sorriso, não namore um escritor, ele varia de tal modo entre os extremos que vai ser inteligente o suficiente para inventar vidas que nunca viveu, falar como poucos do que nunca sequer ouviu, encantar com gestos cheios de cortesia aqueles que de si não sabem a missa-metade, mas ainda assim tolo para não perceber que a diferença entre o passado e o presente reside no facto dum ter partido sem deixar sequer lágrimas de saudade, enquanto o outro traz você em forma do raríssimo amor de verdade, não namore escritor, ele é tão 'engraçado' que te vai masturbar o coração e não vai querer que te venhas toda com sentimentos.
- Não namore um escritor, ele tem malícia na sua eloquência, razão pela qual nem se vai importar de ser aquele tipo com moral de dizer que vai te amar para sempre mesmo sabendo que o para sempre não passa dum hoje demasiado eufórico e tagarelas, se julgando conhecedor das malambas do amanhã, não namore um escritor, ele pode já ter amado uma 'iluminada' que escolheu trocar os então abundantes sentimentos do seu hoje oco coração pela poesia que te encanta, não namore um escritor, ele é tão fiel à hipocrisia que vai escrever aquele texto, livro, carta, ou seja lá o que for a criticiar o homem vulgar, que automaticamente cativou a tua atenção para ele e nocauteou a tua preguiça para a leitura, mas não será capaz de te dizer que às tantas é o sósia desse moço, daí tê-lo descrito tão bem, não namore um escritor, ele vai apreciar como mais ninguém o teu jeito de ser e de estar, o tom de pecado nas tuas curvas, a inocência no teu sorriso, mas saiba que ainda assim irá sempre procurar mais um 'mas' para não ter mais você na vida dele e poder usar aquela sua velha e adorada supostamente sensata ladainha do "Espero que entendas que o problema não és tu, sou eu".
-Não namore um escritor, ele define manipulação no seu jeito pausado mas sempre calculista de existir, hipnose na sua hábil variação entre o troglodita e o 'gentleman' que te confunde ao ponto de dares por ti a ver nos seus defeitos qualidades para subjugar o bom senso que te alertaria do erro que é deixar o pouco que te resta de amor e pureza à mercê dum sujeito que vive deambulando preferencialmente mais pela fantasia do que pela realidade, não namore um escritor, ele vai saber as vossas datas melhor que tu, saber que rosas vermelhas sempre têm mais significado numa segunda-feira aborrecida e menstruada do que após uma discussão motivada por mais outra falha dele, ou no super original dia dos namorados, vai saber que se egoísmo não vale no jogo do amor, então três vezes são necessárias quando duas não são suficientes para gerar o famoso 'sono da vitória', vai saber te gerir de tal modo que suas falhas serão repudiadas em segredo enquanto as qualidades serão enaltecidas em público, resumindo, o escritor vai basicamente desmistificar os enigmas que compõem o acesso à tua sensibilidade, mas hey, não te enganes em pensar que te caiu às mãos o famoso homem perfeito, porque na verdade essa é só a forma dele de te mostrar que só encontra o real domínio dos pequenos detalhes, aquele que se perdeu no caminho para as coisas grandes e que realmente importam.
"Não namore um escritor"
-Sabe moça, eu só lhe peço que antes de tomar nota dessa frase e de qualquer coisa que nos minutos anteriores fora relacionada à ela, tome algum do seu tempo para respirar, analisar e perceber que a mesma bem pode ter sido dita por um moço que de tão absurdamente sensível, é capaz de escrever uma carta mencionando uma série de podres que se calhar nem são seus por temer entregar-se até ao famoso "Na saúde e na doença", para alguém que não o saiba querer além das suas qualidades.
-Abraços chifrudos, caso um dia me leias.