O mundo não acaba 2

98 2 4
                                    

Luanda, aos 26 de Novembro de 2016.
-Faz hoje mais um ano do meu rompimento com Bruna e por ironia do destino, comemoro hoje o primeiro aniversário de namoro com Helena (sim, esse é o seu nome e lamento que to tenha ocultado por tanto tempo, fiel amigo), a rapariga que conheci no natal passado numa casual ida ao supermercado, como já disse. Se tiver de falar do meu último ano amoroso, sei que o termo 'atípico' roubará o destaque à qualquer outro termo que escolha usar na sua descrição, uma vez que estar com Helena não me lembra nada que tenha vivido num desses tantos algures da minha história, porque a verdade é que nessa altura, 365 dias depois, ainda consigo dizer que Helena não é a melhor mulher com quem já estive, não é a pior, não é a primeira, mas não ouso dizer que não é a última pela habitual treta céptica que defendo de que o futuro não cabe no meu bolso, logo não sei se resulta, coisa e tal, só mesmo porque em 365 dias na sua companhia aprendi que a vida é divertida quando visitamos vários lugares, mas só ganha sentido quando descobrimos aquele à que pertencemos em sentimento, verdade e poesia, sendo assim, me dispo de qualquer detalhe ou análise mais lógica, e admito diante de ti, meu amigo, que o teu Chifrudo se apaixonou...por uma tipa que nunca sequer disse que não prestava!
-Mas o ponto de destaque do dia é outro, o nosso aniversário, primeiro porque fazia imenso tempo que não me deixava estar por tanto tempo assim num 'lugar', em condições normais o meu amor acabava se tanto ao fim de 180 dias, segundo porque nessa altura já teria perguntado à mim mesmo se sou o único, para quando estaria marcado o adeus, se valia tanto assim à pena abdicar da segurança na minha confortável solidão, mas nesse caso foi totalmente diferente, eu fiquei muito mais tempo do que o previsto numa relação que não é de perto nem de longe mais perfeita que as outras, até porque sinceramente falando, minha parceira nem sempre teve a bunda mais atraente da cidade, nem sempre teve a conversa mais interessante, nem sempre teve o sorriso mais brilhante da história das publicidades da colgate, eu nem sempre fui o Chifrudo mais leal, bem como ela nem sempre foi o meu primeiro pensamento do dia, mas diferente de qualquer outrora da minha vida, eu continuo aqui, entendendo à cada dia que passa que talvez o amor em versão adulta signifique interiorizar, mais do que sentimentos, a ideia de que não precisamos amar ou querer a pessoa todos dias na mesma intensidade se deixarmos claro ao nosso âmago que é dela que o nosso felizes para sempre, dure quanto tempo Deus permitir durar, precisa.
-‎Para o dia do nosso aniversário, já tenho tudo orquestrado, levantei cedo para passar na florista cá da zona, comprei os chocolates favoritos de Helena, pedi ao pessoal lá do hotel que faça uma decoração especial, preparei uma seleção musical que combine com a ocasião, e passei numa sex-shop indicada pela cozinheira do meu trabalho para comprar uma fantasia porque talvez minha namorada tenha de lidar com o meu lado mais sensual de sempre ao anoitecer, mas antes disso, vou escolher um traje decente, porque Helena decidiu que hoje seria o dia de conhecer a sua família, de modo a 'oficializar' a minha existência na sua vida.
-‎Até aí tudo bem, até porque estou apaixonado o suficiente para não me importar que o mundo me saiba parceiro de Helena, mas ainda assim sinto um alvoroço de emoções, estou feliz com o passo, estou apreensivo, estou com receio que não gostem de mim, enfim, sintomas típicos dum tipo que engoliu uma maratona de telenovelas mexicanas antes de dormir, nem combinam comigo!
-‎Helena sempre falou muito bem da família, dizia ter uma família bastante simpática, unida, acolhedora, e como ponto de destaque, dizia que tudo isso se devia ao facto de ter o melhor pai do mundo, facto que sempre ironizei dizendo que à invejava, visto que apesar de existir um nome nos meus documentos de identificação, entre o melhor e o pior, sempre fui obrigado à entender que tenho um pai no mínimo inexistente.
-‎Cheguei à casa de Helena, o momento tão aguardado está prestes a chegar, dou um toque na porta, e ela logo abre, como se já soubesse quem era, entro saúdo a mãe, os irmãos, e sou convidado a sentar-me no sofá enquanto aguardo para conhecer o pai de Helena, que se encontra no banho.
-‎O primeiro contacto com os demais familiares foi fácil e sem qualquer sobressalto, mas continuo apreensivo porque quero muito saber como poderá reagir o pai de Helena à minha presença na sua vida, partindo do princípio que os melhores pais costumam ser muito protetores com as suas 'crias'.
-‎Aguardei cerca de meia hora até ao momento em que se se ouviram passos no corredor, era o pai de Helena, Helena levantou-se de imediato aquando da sua chegada à sala e começou a apresentação, mas um silêncio absurdo se apoderou da sala, Helena falava, falava, mas nenhum de nós reagia às suas palavras, pensei em agir naturalmente e estender a mão para cumprimentar, mas quanto ganho eu para ser actor, depois dessa façanha do destino, quanta ironia mais me restaria, muito pouca certamente, se tanto para olhar para Helena durante a apresentação e esperar que pouco depois de dizer o nome do seu pai, me apresentar com o nome de 'ninguém', porque ao que tudo indica, passei meia hora da minha vida aguardando por um sogro que tinha uns olhos como os meus, um cabelo como o meu, um nariz como o meu, e inclusive um sangue como o meu, o que tornava desnecessária a apresentação, visto que estava mais do que claro que mais do que amor, me apaixonei por uma tipa com quem partilho o pai.
-
Nesse momento estou aos prantos, as lágrimas escorrem sem qualquer respeito pela minha vontade, a alma arde, e uma mescla terrível de tristeza e raiva domina o meu âmago, mas ainda assim não, eu não vou ligar pedindo que absurdamente embrulhemos o mundo em papel de 'foda-se' e fiquemos juntos independentemente de quanto 'sangue' já tenha e venha a passar por baixo da nossa ponte, não vou cortar os pulsos esperando que se esgote em mim qualquer incesto que conspire contra o nosso nós, numa altura em que já me soava tão familiar estar apaixonado por ela, nem tampouco me vou candidatar ao Nobel da hipocrisia dizendo que nesse ano aprendi a amá-la de tantas formas diferentes, que não me importava nada de abdicar duma delas só para mantê-la comigo, sinceramente, já me parece dramático o suficiente estar a escrever esse desabafo ou o que quer que seja nessa cama repleta de pétalas do hotel onde supostamente passaríamos a noite do nosso dia fazendo coisas nada familiares entre irmãos.
-A verdade é que por hoje eu vou chorar até desidratar, escrever 'depressão' quanto bastar, e esperar que ao amanhecer, quando o serviço de quartos trouxer o pequeno-almoço especial para os amantes, não se esqueça de arranjar nesse hotel quem possa escrever um bilhetinho ao meu coração explicando que no final do dia, o amor sempre será uma arte, razão pela qual, nem todos artistas poderão ser bem-sucedidos, mas que antes de voltar a fechar-se em copas e  privar o Chifrudo aqui em mais uma maré de solidão e azedume, lembre que como aprendemos juntos no último capítulo:
"O mundo não acaba numa decepção"

Diário de um chifrudoOnde histórias criam vida. Descubra agora