Eu, meus genes e o chifrudo

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-Luanda, aos 7 de Fevereiro de 2018.
-Hoje fui convidado á assistir um culto numa igreja situada algures no coração do Cazenga, sinceramente, depois da última carta que recebi de Londres, decidi buscar também no imensurável poder de Deus uma forma de paraíso que não fosse tão incestuosa quanto a anterior, aliás, é exatamente sobre isso que me tenho perguntado nos últimos meses, o que é afinal o paraíso?!
-Será o paraíso o mural que vejo desenhado no púlpito do templo em que me encontro, com um infindável verde, animais selvagens que quase partilham gargalhadas com humanos de tão dóceis que parecem ser nas imagens e gente adulta sem temor pela sua nudez, será o paraíso ter uma conta cheia de dinheiro e um coração vazio de amor, ou ser o dono duma alma sonhadora num mundo absurdamente capitalista, será o paraíso namorar alguém pela sua beleza física e no final do dia 'só' ter de explicar que sarcasmo não é sobrenome de amante nenhuma, será o paraíso uma ereção saudável depois dos 50, uma montanha de diplomas sem chance de rimar com sabedoria ou felicidade, dois segundos do orgasmo mais intenso que a carne nos pode oferecer, três filhos bonitos, dois carros e uma casa, não sei, a ordem 'numérica' do ideal varia de acordo á carapuça de cada um, o que eu cá sei é que depois do capítulo passado, não existe conceito mais indubitável de inferno que um filho que cresce sem saber quem é ou foi de facto o seu pai.
-E hoje eu deixo para trás os chifres, o abandono paternal, qualquer drama da minha vida para escrever ao meu filho que ainda não nasceu, porque quero que ele saiba, quero que meu filho saiba que ainda que um tio qualquer mais 'homem' que eu lhe faça crer no oposto, os homens também choram, o que justifica os trechos menos legíveis nalgumas páginas desse diário, pois eram marcas deixadas pela dor em estado mais líquido do seu pai, quero que saiba que o pai foi um cidadão das hipóteses futuras, escreveu cartas ao amor, ao tempo, á morte e se hoje me estiver a ler na pele do meu filho, então também devo ter escrevido uma para a sorte, quero que saiba que não precisa temer a dor ou os infortúnios, pois o pai aprendeu com a veia artística do destino, que quanto mais fundos os buracos em que mergulhamos, maiores as probabilidades de cruzar com petróleo ou gás natural, quero que saiba que a semântica da vida sentimental pode ser irónica ao ponto de fazer com que o homem que descobre a cura para a Sida, seja o mesmo que escolha amar em ingénuo acaso alguém que o magoe propositadamente, quero que seja um homem que luta pelos seus sonhos e encare as adversidades como um verdadeiro mártir, mas que nunca perca a habilidade de tal como uma criança, aceitar que lágrimas que molham o seu rosto com ajuda da força de gravidade, não precisam secar seu coração para a eternidade, quero que saiba que o pai foi um homem que falava do amor de forma grotesca, e de política com uma paixão que talvez nunca tenha sentido pela mamã, e que se um dia ler essa carta á bordo dum lar feliz, não será certamente de todo por mim, mas sim porque sua mãe foi uma mulher com atitude suficiente para queimar o sol em defesa dos seus objetivos, quero que venda seu perfume ao mundo á peso de ouro, desde que entenda que nada vale a sua essência, quero que saiba que o amor não é um cálculo matemático, que nem tudo assenta necessariamente na frieza dum porquê e que por vezes perder o equilíbrio por alguém faz parte do processo para se viver uma vida equilibrada, quero que saiba que terá de mim apoio para adorar á Deus, ao diabo, aos unicórnios ou em qualquer outra coisa que acredite, desde que tenha o amor como sua única e verdadeira religião, quero que saiba que ser adulto é fazer depilação mesmo solteiro, pagar contas sem intervalo, ter insónias por problemas que noutrora alguém resolvia por nós, sorrir por falsa cortesia, e nos piores dias da coisa, dizer adeus á alguém que pedimos á Deus, durinho pá, quero que saiba que o lado medíocre dos demais não nos deve reduzir, porque para os verdadeiros homens a grandeza é um hábito, não uma reação, quero que aprenda fazer o bem sem aguardar por uma vitória seja de que natureza for, porque diferente do que se vê nos filmes, na vida adulta os vilões também vencem (os políticos da minha banda que te contem, filho), injusto, talvez, mas no final do dia é só o mundo nos lembrando que a justiça como tal é mais uma questão de semântica do poder do que de equilíbrio da balança, quero que saiba que na vida terá o conflito inevitável entre a sua realidade e os sonhos de consumo, e nisso só precisa ter em conta que a sua realidade é para a vida, ao passo que sonhos de consumo são um mero momento de intimidade entre o seu ego e a luxúria.
-Sabe, a verdade que não importa mesmo quantas coisas queira para ou do meu filho que ainda não nasceu, talvez esteja só a comprar um choque desnecessário de adolescência com essa carta, e talvez esteja a tentar moldar um ser inevitavelmente diferente ao meu muito particular conceito certo ou errado de sabedoria, o que me importa mesmo é que meu filho saiba que caso um dia venha a herdar do seu pai o gene chifrudo, entenda que nunca ninguém fez a diferença sendo igual á todos outros, digo, existem sempre pessoas com ideias á oferecer quando somos traídos, gente que diz que mataria no nosso lugar, gente que diz que agrediria, gente que diz qualquer absurdo que com facilidade podia influenciar um ego já gravemente ferido a cair num mar de atitudes idiotas, então o que eu peço é que entendas que a passagem nessa vida não é válida se não á vivermos na primeira pessoa, porque eu particularmente, aquando da minha experiência me senti tentado a seguir pelo senso comum e matar ou agredir alguém, mas no final decidi tomar as rédeas da minha própria decepção e agir como mandou o meu eu, eu escolhi descobrir entre a dor, o amor, e o rancor motivos mais do que suficientes para ser escritor, e partindo do princípio que o meu filho não é eu, aconselho-o a tornar-se homicida, agressor, escritor, gay, qualquer coisa ao reagir á uma decepção, desde que seja ele, desde que seja a plenitude do seu coração, desde que o ego não tenha lugar na equação, desde que perceba que o senso comum não é lei, é só uma tentativa falhada de homens naturalmente imperfeitos serem o oposto disso mesmo.
-Papá já te ama muito, filho.
"Traição não é vergonha, é falta de carácter"

Diário de um chifrudoOnde histórias criam vida. Descubra agora