Afinal é natal!

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Luanda, aos 25 de Dezembro de 2015.
-Olá, querido diário, antes de tudo quero que saibas que o chifrudo conheceu uma bela rapariga na ida ao supermercado.
-Bem, admito que numa primeira ocasião foi algo no mínimo embaraçoso para mim, pois nos conhecemos justo quando ia pegar os pensos absorventes que me tinham sido recomendados pela minha mãe. E o foi porque por mais que me esforce para ser um tipo para 'frentex' e livre de tabús, sempre existem aquelas coisas que não consigo encarar tão descontraídamente, e essa foi certamente uma delas, afinal, não costumo ser abordado por raparigas com um poder de atração do acima da média todos dias, para mais exibindo uma caixa de pensos absorventes na minha adorada canhota, mas enfim, já aconteceu.
-O que é certo é que à ter de arranjar uma moral para essa história, seria a de que o imprevisível e o incrível não estão juntos na família dos 'i' por mero acaso, pois a moça resolveu provar-me que se aqueles atributos físicos todos que podiam dar muito jeito caso um iluminado qualquer resolvesse lançar o 50 tons de cinza em versão 'mangope', ou muito facilmente fazer dela, de boca fechada, uma espécie de versão angolana da loira brasileira (silhueta grande, cérebro pequeno), ela era de boca aberta, tudo que de alguma forma simbolizasse o antónimo disso, facto que pude notar logo na troca das primeiras impressões.
-Sinceramente, não sou um tipo simpático nem tampouco acessível, muito por culpa da minha timidez(não será por acaso que te tenho como confidente), mas com ela foi diferente, eu senti que tivemos aquilo à que costumo chamar 'clique'. Ela era aquela pessoa que não deu espaço para essa ladainha do tímido, fechado, patati, patatá , nada disso, foi conhecer e passados cinco minutos, sentir que pela paz que a sua presença me transmitia talvez ela já andasse há cinco anos na minha lista de desejos.
-Ela era incrivelmente inteligente, detalhe que um sapiomaníaco como eu jamais deixaria perder-se em indiferença, e mais do que isso, parecia ter o poder de deixar-me de tal modo confortável, que não será por acaso que no pouco tempo de 'antena' que o destino nos concedeu, dei por mim a falar sobre arte, política, sociedade, e até...Sobre os meus chifres!
-Sim, eu falei com a moça que tanto se parece com a minha futura namorada sobre o assunto que beliscaria o ego de qualquer homem, mas por incrível que pareça, não me sinto de modo algum arrependido de o ter feito, porque ao contrário dos clássicos "oh, que cena pá", "por acaso vocês chegaram a ter sexo", "possas, deve ter sido duro para ti", "eu não sei se aguentaria isso", "esse teu amigo e essa moça também não prestam"... ela resolveu dar-me um abraço que causou uma reacção de tal forma estrondosa em mim, que acabei percebendo que talvez tenha vivido os últimos três anos em câmara lenta, talvez tenha trocado os meus poucos, mas afinal necessários sorrisos pela auto-comiseração, talvez tenha passado mais desse tempo vivendo na pele dum poeta sem livros do que 'respirando' como gente normal, talvez, hoje eu seja só um miúdo mimado que fechou-se em copas e transformou a sua vida numa cópia barata da vida real, por negar-se a entender que para uma mulher não existem homens bonitos, feios, perfeitos nem tampouco imperfeitos, só existe o homem que ela quer.
-Mas sabe o que foi mais impressionante, ela não ficou por ali, logo na 'ressaca' do abraço me fez sentir um ser valioso, dizendo que gostaria de ter o prazer de conhecer alguém tão corajoso como eu, referindo-se à complexidade com que as massas machistas pintam uma traição amorosa, e resolveu contar-me uma estória. Mas antes de ouvi-la, prestei um rápido tributo ao sarcasmo (não consigo evitar), dizendo que ainda que não soubesse que estória ela me queria contar, nenhuma podia roubar o Óscar para melhor estória do dia à do moço armado em charmoso que viu a namorada ficar com o amigo feioso. No final duma gargalhada seguida dum olhar incrédulo, fui convidado a acompanhar a futura 'historiadora' ao restaurante lá do supermercado.
"Era uma vez, numa ilha chamada "ilha dos sentimentos", surgiu de repente um comunicado de que um vulcão afundaria a ilha, razão pela qual todos sentimentos tinham de abandonar imediatamente a ilha.
-Mas no meio de tantos sentimentos, só um não tinha um meio de transporte para deixar a ilha, no caso, o amor, que desesperado começou a procurar ajuda junto dos outros sentimentos:
-O primeiro foi a ira, que respondeu dizendo que até podia levá-lo no seu barco, mas que sabendo-se tão agressiva, achava melhor não o fazer, pois era muito provável que à qualquer altura o tentasse matar afogado durante a viagem.
-O segundo foi a inveja, que disse que podia até dar a boleia, mas que achando o amor um sentimento tão lindo, e sabendo-se tão, mas tão invejosa, era muito provável que tentasse algo contra si durante a viagem, só por ser um sentimento mais bonito do que ela.
-A terceira foi a ganância, que admitiu que até havia algum espaço no seu barco para o amor, mas lembrando que em Angola é muito comum os mais velhos dizerem que o amor não enche barriga, não via lucro nenhum na ideia de ajudá-lo, logo vetou a hipótese.
-O amor percorreu a ilha toda clamando por ajuda e nisso sempre obteve negas das mais diversas formas possíveis, consoante os sentimentos, o que fez com que já adivinhando a sua morte, se sentasse na areia da praia chorando de tristeza.
-Mas foi nesse preciso momento que surgiu um velhinho que tocou o ombro do amor, e fez em silêncio um gesto o convidando a acompanhá-lo até ao seu barco que os levaria para uma ilha mais segura onde encontrariam os outros sentimentos. Mas obviamente cansado por ter revirado a ilha em busca de ajuda, o amor adormeceu durante a viagem e despertou na nova ilha, numa altura em que já não via o velhinho que o ajudou.
Sensível como é, e triste por não ter agradecido pela ajuda que lhe foi dada, o amor percorreu a ilha toda, procurando pelo velhinho que salvou a sua vida, mas em função do insucesso das suas buscas, decidiu procurar então a ajuda da sabedoria, que não sendo um sentimento, era uma espécie de dona da verdade nessa comunidade:
"Tia sabedoria, tia sabedoria, eu fui salvo por um velhinho que ofereceu-se para trazer-me da ilha que foi engolida pelo vulcão para cá, mas acabei adormecendo durante a viagem, o que fez com que mal desse pela nossa chegada aqui, e parte-me o coração que não o tenha sequer agradecido pela ajuda, será que me pode dizer de quem se trata?
-Ah, amor, tu és duma pureza tal, que por vezes me pergunto porquê que o mundo opta tantas vezes por banalizar a tua existência por gestos e sentimentos que só o tornam à cada dia mais imundo, mas enfim, a minha queda para filosofia não é certamente para aqui chamada no momento. Eu sei quem é o velhinho que procuras.
-Que alívio, como ele se chama, tia sabedoria, onde posso encontrá-lo?!
-O seu nome é tempo, podes encontrá-lo num relógio, num telefone, ou no simples facto de existires.
-Agora não percebi, mas tudo bem, só me diga porque razão ele foi-se embora sem sequer dizer adeus depois dum gesto tão nobre?
-Ele foi-se sem dizer nada porque aquilo que chamas de gesto nobre, é na sua opinião, uma obrigação.
-Como assim?
-Ah, amor, tu estavas triste e envolto em lágrimas, certo?
-Sim, e daí, o que tem isso à ver com uma obrigação dele?
-Tem tudo à ver, porque o seu nome é tempo, e como até tu já deves ter ouvido nessa tua linda e ingénua existência, só o tempo pode curar as mais profundas mágoas amorosas"
-Uau, admito que já devo ter ouvido essa estória umas quantas vezes na minha infância, mas sei lá, dessa vez foi diferente de ouvir, na verdade foi exactamente como ela, intensamente doce, e eu que quase nunca sei o que quero, dessa vez acho que tenho uma boa ideia, que penso não ser tão difícil assim de materializar porque afinal...é natal!
"Carta ao pai natal"
-Olá Pai Natal, hoje eu escrevo-te uma carta, espero que ela te encontre bem-disposto, com aquele sorriso inconfundível, acompanhado das tuas famosas renas e claro, com o colesterol alto, espero que ainda te lembres de mim, afinal era quase que impossível te esqueceres do puto mais exigente do bairro, mas se for o caso, te garanto que estou pouco me 'marimbando' para isso, quero apenas que leias o que quero para esse natal.
-E para esse natal, eu quero alguém que me diga as verdades que não quero quando bem preciso ouvir, que tenha os seus próprios defeitos, particularidades e manias, que discorde comigo quando a idiotice me sobressair mais que a razão, quero alguém que me seja diferente, porque se for igual, eu cá me contento comigo mesmo, quero alguém que não me obrigue a disputar a sua atenção com um telefone, amigas espaçosas, ou para minha tremenda humilhação, com um vibrador, quero alguém que consiga ler cada piada que conto com os olhos, entenda minhas frases cheias de filosofia e me dê um beijo 'cala-boca' toda vez que elas se tornarem aborrecidas, quero as paranóias ciumentas, o grude, as brigas e todos absurdos se existir no final o famoso sexo da reconciliação e os ditos à quente não ficarem no coração, quero mensagens marotas durante a aula do professor mais odiado do momento, quero praguejar feito louco durante um jogo do Benfica, ignorar por completo o dia 14 de Fevereiro, peidar-me sem remorsos, não por deseducação, mas porque quero ser eu de verdade para alguém que descubra até nos meus defeitos qualidades para me ter no íntimo de si.
-Quero alguém que deteste a rotina mas nunca deixe que se percam os bons hábitos da relação, que passe muito mais tempo sendo a minha melhor amiga do que a minha namorada enjoativamente apaixonada, nesse natal eu quero me dar, extrovertir, ultrapassar, eu quero sentir, não me pergunte porquê, porque eu não sei dizer, não sei entender, eu não sei fazer poesia se pensar!
-Nesse natal, eu quero, ah como eu quero alguém que me faça trepar as paredes, verborreiar obscenidades, suar litros de desejo, e falar em línguas que a sapiência desconhece mas o prazer sempre obedece, quero alguém que se prevaleça, se ame antes de mim, que saiba respirar e existir sem mim, eu quero um ALGUÉM, e não uma sombra que passe 25 horas por dia dizendo ao meu ego que me ama, quando isso só cansa os meus sentimentos, quero alguém que faça as coisas por querer e não para me cobrar a maldita reciprocidade, quero alguém que saiba que o que os olhos não vêem a minha testa pode sentir, quero alguém que não me julgue logo perfeito ou incapaz de errar só pela porcaria dos óculos, dos trajes engomadinhos, do vocábulo que os sogros sempre adoram e da pinta de bom moço que sendo sincero, não passa disso mesmo, eu quero quem me queira ter como seu.
-Bom, parece que está mais do que claro, né, o que eu quero é só um amor (não me importava nada que fosse a moça do supermercado).
-Ah, e quero também que cortes essa barba, a minha mãe diz que é pouco higiénico.
-Abraços do chifrudo.

Diário de um chifrudoOnde histórias criam vida. Descubra agora