A notícia veio como um tombo e mergulho num tanque de água gelada.
Acidente de carro na volta para casa. Ele morreu no local.
Mal tive tempo de assimilar a notícia que minha mãe recebeu por telefone ou de seu choro doloroso logo após.
— Não Leandro, não meu Leandro!
Minutos antes eu tinha acordado no pulo, ouvindo o telefone de casa tocar no meio da noite e corri para a sala. Estranhando o horário, estranhando as Luzes, a televisão ainda ligada.
Eu havia dado um passo para a sala quando vi o mundo da minha mãe cair. Primeiro ela desabou na poltrona, a mão no peito e o rosto já retorcido em tamanha tristeza. Dali, eu sabia que algo de muito ruim aconteceu.
Ao fim do telefonema, ela havia deixado o aparelho cair e chorado. Gritado, soluçado e chorado mais forte.
Travada na porta, minha única reação foi segurar Guilherme quando ele passou por mim, ainda sonolento.
Foi uma questão de minutos até o celular dela pipocar com notificações e chamadas. Da porta aberta de meu quarto, ouvia meu próprio aparelho apitava sem parar.
Guilherme escapa das minhas mãos e corre para abraçá-la.
Arrasto os pés para junto dos dois e completo o abraço. Sentindo a dor assim que penso que havia uma peça faltando ao redor de todos nós.
Levanto os olhos úmidos para o teto, me perguntando porque ele teria ido embora. Soluços me escapam e engulo o rosto no ombro de nossa mãe.
Ele está no quarto e logo se juntará ao abraço, repito a mentira como se fosse melhorar de alguma forma ou trazê-lo de volta.
Nada o traria.
Pela primeira vez na vida, eu me sentia perdida de verdade.
O dia amanheceu com Guilherme adormecido no sofá. A cabeça em meu colo enquanto eu observava nossa mãe vagar pela casa arrumando a bolsa, separando documentos e perdendo o rumo a cada dois minutos no processo.
O meu estado de choque mal me permitia pensar no que fazer. Talvez eu devesse me arrumar ou ajudar respondendo aos familiares que não paravam de tentar se comunicar, mais ligaram pela manhã.
Nós já tínhamos silenciado todos os telefones.
Vejo minha mãe se atrapalhar pela oitava vez e busco forças no imenso vazio dentro de mim para levantar e agir.
Deposito a cabeça do meu irmão na almofada com gentileza e vou ao quarto buscar o celular. As mãos tremem tanto que não sustentam o aparelho.
Deixei as mensagens de Ana para ler após uma série de mensagens semelhantes prestando condolências. Respondo uma por uma e mesmo as que sutilmente – ou não – perguntavam sobre o enterro.
Obrigada. Ainda estamos cuidando dessa parte. Assim que eu souber, mando os detalhes.
Colei essa mesma mensagem para responder todas as perguntas.
Respiro fundo ao abrir a conversa com minha prima.
Mari???? Diz que é mentira. Tio Leandro? Meu Deus! Eu sinto muito!
Ana completou com várias carinhas de choro.
Manda mensagem assim que ver, por favor. Fala comigo. Eu não tô crendo nisso. Se precisar de qualquer coisa, só pede.
Ergo o olhar para ver minha mãe passar da sala para o corredor. O nó na garganta aperta de vez conforme dígito um pedido, assim que o medo me toma.
Estamos perdidos. Preciso que venham nos ajudar.
A resposta nem demora.
Graças a Deus, você tá aí. A gente já tava no caminho.
Ela permaneceu em silêncio na minha. Ficando longe das redes sociais, mando mensagens cuidadosas para os poucos que provavelmente dormiam quando tudo aconteceu.
Pela voz falhando constantemente da minha mãe, imaginei que estava parada no corredor com o celular colado ao ouvido, conversando com meus avós maternos.
— ... IML mais tarde. Eu sei... não... eu não sei o que fazer, mainha.
Cerca de vinte minutos se passam até a campainha tocar e eu correr para atender.
Ana quase empurra a mãe e me aperta num abraço.
Mantenho o choro bem preso e me permito apreciar o calor. Dividir a dor.
— Eu sinto muito, muito, muito — murmura, a voz trêmula. Engulo em seco. — Quer que eu fique com você pelos próximos dias?
— Não... acho que a gente prefere espaço pra digerir tudo.
Ela segura minhas mãos e aperta.
— Vou deixar o celular de pronto, caso precise conversar.
— Obrigada.
— E tua mãe? — tia Rosa se intromete, os olhos vermelhos e inchados presos na casa além de mim.
Engulo em seco.
— Sem rumo e preparando a papelada lá dentro.
Sem aviso minha tia me abraça e sai para procurar a cunhada. Logo após, Cláudio se aproxima e passa os braços ao redor de mim.
— O choque inicial é devastador, mas melhora com o tempo. Vocês têm a força dessa família.
— Ela tá falando com vovó.
Meu tio segura a minha cabeça contra o ombro.
— Vão vir?
Dou de ombros.
— Não sei, mal conversamos. Ela tá sem condições de dirigir e precisamos ir liberar o...
As palavras ficam presas na garganta e a mão dele massageia minha coluna para acalmar, a boca soltando um chiado baixo.
— Não diga nada. Vamos subir?
Olho por cima de sei ombro. Para a expressão de luto no rosto da minha prima e assinto.
Travo ao girar os calcanhares, relanceando a garagem e não vendo o carro do meu pai lá. O mesmo que eu o vi sair de ré quase um dia antes.
Ar fica retido em meus pulmões, incapaz de sair e tudo dói.
Permaneça forte. Ele ainda está vivo, dormiu no trabalho.
Balanço a cabeça para afastar os pensamentos mentirosos.
Eu amo vocês.
Suas últimas palavras para mim foram as mais importantes para a vida de qualquer um.
Também te amamos.
Se eu tivesse guardado a resposta, ele teria se segurado hoje para vir arrancá-las de mim ao invés de partir?
Falho ao dar meu primeiro passo. Ana e tio Cláudio me seguram.
Em algum lugar do Recife, as palavras dele estavam inertes em lábios azulados. A voz calada para sempre. Suas últimas palavras...
Só de pensar que nunca mais poderei vê-lo, ouvir sua voz, nem mesmo sentir a sua presença, o meu coração dilacera. Era o meu pai e havia partido por completo.
Me aninho a Ana e deixo as lágrimas caírem, sem conseguir mais suportar o ardor nos olhos.
Um vento frio e forte atravessa o quintal, balançando as árvores e levantando folhas secas. À distância uma matilha late, o som acorda até mesmo a cadela da vizinha.
Obtenho um último vislumbre de onde eu o havia visto horas antes, desejando que ele estivesse ali.
As primeiras horas da manhã já mostravam um céu fechado.
Subimos as escadas e fico em silêncio com Ana do lado, assistindo os outros três interagirem.
Conversa baixa, voz rouca. Irmãos tentando se consolar, da forma que eu teria de fazer assim que Guilherme despertasse.
Observo o menino contraído no sofá. Tão mais quieto que o normal.
Horas se passaram quando todos partiram e fiquei em casa com Ana, Gui e Glória. A funcionária havia chegado totalmente devastada, tendo ouvido a notícia antes mesmo de sair de casa.
Fosse pela mensagem que enviamos ou pelos jornais locais.
O acidente já era manchete.
Presidente da FunToy, Leandro Bragança, sofre acidente de carro na noite de ontem. Empresário morreu no local.
Eu havia tomado coragem para ler a matéria na minutos antes. Cansada de esperar por explicações para o que aconteceu.
Terrível receber a notícia chegaria por terceiros, mas melhor do que nada.
O meu pai havia perdido controle do veículo e batido com tudo contra uma árvore. A planta tinha sido o único obstáculo impedindo que o carro caísse direto no canal dividindo as avenidas. A perícia ainda investigava as causas do acidente e isso era tudo.
Tudo o que haviam publicado e que Ana me permitiu pesquisar.
Depois disso, eu havia escondido o rosto na mão e chorado. Colocado tudo para fora, aproveitando que meu irmão ainda dormia.
Glória logo se apressou em me trazer um copo d'água e outro quando entornei o primeiro inteiro.
— Acha que ele se apressou pra vir? — indago.
Ana me encara e balança a cabeça, encarando o líquido no próprio copo.
— Talvez. Disseram que ele deu com tudo na árvore, podia estar em alta velocidade. Só saberemos quando sair os resultados da investigação. Não deve demorar muito.
— Ele sempre foi tão cuidadoso no trânsito — conto para ninguém em especial. — Corria às vezes, mas mesmo assim quando sentia segurança. Dirigia com prudência.
— As coisas acontecem quando a gente menos espera, Maroca — encaro Glória. — É entregar tudo nas mãos de Deus.
Abro um sorriso pequeno e assinto em concordância.
Meu celular apita. Passo os olhos por cima da notificação e pego o celular assim que descubro se tratar de mensagem de Rodrigo.
Peguei um texto pra audição com Edu, vou te mandar. Ensaie e se apresente na ligação de hoje. Não me decepcione.
Resolvo ignorar e foco no meu irmão. Ele se remexe.
— Pai? — Olho para ele, preocupada. O menino abre os olhos devagar e observa ao redor. De imediato a luz deixa seu semblante. — Sonhei com ele.
Glória fica atônita e começa a rezar. Ana troca um olhar triste comigo. Puxo meu irmão para um abraço.
— Quer falar sobre o que era?
Meu irmão dá um aceno e conta em voz baixa:
— A gente foi numa sorveteria e ele me deixou tomar sorvetes de todos sabores. Falou pra eu experimentar de tudo.
Sorrio.
— Os sabores eram bons pelo menos?
— No sonho, parecia. — Ele suspira. — Queria que fosse verdade.
Meus lábios tremem e encosto o rosto na cabeleira escura dele, inspirando o cheiro.
— Eu também.
— O sonho terminou com ele me abraçando.
Aperto os braços em volta do garoto e deposito um beijo no topo de sua cabeça.
— Guarde essa imagem dele.
— O que você vai guardar?
Levanto o queixo e sorrio para o céu cinza além de uma janela.
— Nós dois gastando os pulmões de tanto cantar no carro.
Ana já havia abaixado o rosto e fitava o chão em silêncio. Glória se levanta.
— Quer cereal ou sanduíche, Gui?
Meu irmão se desvencilhar de mim contra minha vontade e também levanta, se espreguiçando.
— Vou ver.
A funcionária sorri para o menino e ambos vão para a cozinha.
Ana segura minha mão.
— Obrigada — solto. — Por tudo.
Ela abana a mão numa dispensa.
— Sabe que tô aqui.
— Não faço ideia de como será daqui pra frente — confidencio. — Sem ele, apenas nós três. É um novo e desconhecido mundo.
Ana tenta sorrir.
— Como o ensino médio e depois, a faculdade. Foi uma péssima comparação, mas no fim o significado é único: a gente se acostuma e aprende a conviver com tudo.
Concordo com um menear e me envolvo com devaneios.
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Destinados
RomanceMariana Bragança uma recifense aspirante a atriz volta do intercâmbio de um ano em Boston, no estado de Massachussets e finalmente corre em busca da tão sonhada carreira. Em casa, ela precisa retomar a vida e em meio a uma trama de reencontros e per...