Eu me sentia cansada e esquisita ao despertar no dia após a festa. Em grande parte pelos pensamentos que me acometeram à noite assim que deitei na cama, fazendo com que eu dormisse apenas no primeiro raiar.
Toco o espaço vazio onde Miguel estivera. Eu o ouvi deixar o quarto mais cedo e desde então, dormi profundamente.
Que ele estivesse em casa, mas se tivesse ido embora talvez fosse um sinal. Torço para a segunda coisa mesmo me prendendo à certeza que a primeira me trazia.
Afasto o edredom e tomo coragem para levantar.
Demoro-me no quarto antes de sair. A casa parecia vazia. Estranho, eu me lembrava que meus tios e Ana haviam dormido aqui. Todos tinham saído? Procuro bilhetes e não encontro.
Faço um pratinho com bolo, doces e salgados restantes. Uma refeição triste, gelada e preguiçosa. Perfeita para suprir a necessidade de comer algo.
Utilizei aquele momento para ponderar mais um pouco e levo o olhar ao teto, pedindo algum sinal. Nada acontece, como a vida mortal, sem magia ou graça.
Se até nas histórias fantasiosas sacrifícios eram feitos, nada impedia a vida real de seguir o mesmo.
Um barulho vindo de fora denuncia a localização de alguém. Coloco o prato sujo na pia e saio em busca de uma alma viva.
Travo ao perceber que se trata de Miguel jogando totó sozinho.
— Cadê todo mundo?
Ele ergue o olhar para mim.
— Bom dia. Saíram pra procurar casa.
Franzo o cenho.
— Casa?!
— Pros seus tios — tranquiliza.
Miguel solta os pegadores e vem até mim.
Abraço o meu corpo e desço o olhar para o chão abaixo da sinuca.
— Algum problema?
— Quero conversar.
Meu namorado dá um aceno e sai do salão. Sigo-o com o olhar, inicialmente confusa mas logo entro no seu encalço indo ao terraço.
Ocupo a poltrona depois que ele opta pelo sofá um conjunto de sofás de frente à escada.
Miguel apoia o tornozelo na coxa e recosta no assento. Parecia tranquilo.
Um buraco começa a se abrir no meu peito.
— Eu não quero fazer isso, Mi — a minha voz embarga e cubro o rosto.
Miguel se mostra confuso.
— Foi tu quem chamou...
— Eu sei, eu sei. — Solto o ar pesadamente. — A culpa é minha? Dos seus ciúmes?
Sua boca permanece fechada e o semblante distante.
— Teve sua parcela, sim.
— Nunca foi minha intenção. — Baixo o olhar e apoio os pés na mesinha retangular com superfície de mármore. — Às vezes eu sinto que não posso chegar perto de qualquer homem pra você não entrar em colapso.
— É assim que eu me sinto por dentro.
Engulo em seco.
— Por que não se preocupa com o que eu posso sentir? Vê ameaças nos outros sem notar que tem uma dentro de você. — Balanço a cabeça. — Eu não quero abrir mãos das minhas amizades por sua causa, Miguel.
— Você poderia fazer um esforcinho pra entender meu lado.
— Eu fiz. Diversas vezes. Mas que esforcinho tem feito quanto a isso? — Aperto os olhos de leve. — Tu me conhecia tão bem, agora parece que preciso ganhar sua confiança como se fosse a primeira vez.
— Todos mudam em um ano.
— O mesmo se aplica a você, mas deveria saber que de todos os erros, te trair seria um que eu jamais cometeria.
Um silêncio breve recai.
— E quanto a me trocar por alguém melhor?
— Essa é sua preocupação? Me declarei pra você no começo da festa, depois foi como se nenhuma conversa tivesse acontecido.
— Não fui tão ruim assim.
Encaro-o como se ele tivesse dito um absurdo.
— Me rastreou a noite toda como um radar.
— Tava te admirando.
Nego com um menear.
— Como se admira de cara fechada? — Miguel se cala. Puxo os cantos da boca para baixo. — Foi necessário aquele beijo? Não tinha me dado um a noite toda pra fazer aquilo.
Seu semblante parece entrar no modo defensiva ainda mais.
— Por isso mesmo. Notei que estávamos distantes e fui compensar dando boa noite.
Não senti que podia confiar na sua justificativa. Dou de ombros.
— Eu fiquei bem chateada, pareceu forçado. — Mais pessoas tinham notado o mesmo. — Passei a noite com isso na cabeça.
Miguel engole em seco.
— Nossa sintonia tá horrível. — Concordo com um menear e ele estala a língua. — Posso falar sobre mim?
Gesticulo em sua direção.
— Deve.
Miguel se inclina sobre os joelhos e me encara.
— Brigamos tanto. Nunca sei a que pé estamos. Mas você e ele... discutiram, depois voltaram como se nada tivesse acontecido.
Forço um sorrisinho.
— Não tem o fator paixão no meio — explico. — E também conseguimos conversar quando precisamos.
— Nós tentamos.
— Mas nunca dá em nada.
— Seu foco tá sempre na sua carreira, família e amigos, quando não nas coisas que eu faço e te incomodam.
Repuxo os lábios numa linha reta.
— Mas são as coisas que estão acontecendo na minha vida. Igual quando tu passa horas falando da faculdade. — Faço uma pausa e começo a listar: — A gente se desentende, você fica chato, eu tento me aproximar e sinto distância. É isso que tá acontecendo.
— O que espera que eu faça?
Dou de ombros.
— Não posso ser a única buscando uma solução aqui. O que você quer, Mi?
— Ficar com você.
— Mesmo que isso signifique aceitar minhas amizades e como eu as levo? O carinho que carrego por todos?
Ele titubeia e escolhe as palavras.
— Aí eu espero que entenda meu lado. Às vezes não dá pra conter.
Recuso.
— Então isso não vai dar certo. — Seu semblante recua. — Porque por mais que eu queria o contrário, sempre vou me incomodar com as caras feias como ontem. Também vou ficar chateada com demonstrações que mais parecem tentativas de demarcar território. Sou uma borboleta, que embora não vá fazer coisas erradas, preciso me sentir livre.
Uma pausa triste se alonga entre nós.
— Vai dizer o que estou prevendo?
Levanto o queixo e enxergo mágoa em seu semblante.
Tento sorrir e falho.
— Preciso valorizar meu jeitinho de ser igual dou valor a um vestido de duzentos e cinquenta.
Seu rosto retorce em confusão.
— Quê?
Acabo dando risada.
— Estamos em pontos diferentes agora, que machucam um ao outro — constato. — Acho que precisamos parar com isso e tocar nossas vidas, mesmo que seja pelo período de um ano ou vinte. Só vamos destruir o que tínhamos três anos atrás insistindo nesse desencontro agora.
A voz dele enfraquece:
— Soa mais definitivo do que da última.
— Porque não quero que nenhum de nós se prenda a esperança de uma próxima vez, ainda mais se ela nunca acontecer.
Um nó se forma na minha garganta.
— E as coisas que me disse ontem?
O aperto aumenta, parece capaz de esmagar minhas cordas vocais, mas solto com olhos ardendo:
— Tenho consciência de cada palavra na hora e de cada coisa que desejei pra nós dois, mas também sei de tudo o que tá rolando ultimamente e não gosto.
— Achei que a conversa era pra consertar nossos problemas.
— Você mesmo disse que o melhor caminho é acharmos um jeito de conviver com o outro sem mudanças pessoais. Eu não sei se consigo. — Respiro fundo e desvio o olhar para o telhado. — Deus sabe o futuro que sonhei e não me deixa esquecer dos empecilhos atuais. Prefiro afastar pra depois reconstruir, se possível.
— Ficou tão chateada quando pedi término ano passado, qual a diferença pro que tá fazendo agora? Certas hipocrisias eu não esperava de você.
Fecho os olhos por um instante e volto a encarar Miguel.
— Nem eu. — Admito. — Mas levando em conta que estávamos bem até você chegar e pedir o tempo... foi devastador e sem avisos prévios. Já faz dias que estamos nos desentendendo.
— Como eu poderia chegar em você pra dizer o que queria?
— Sua desculpa foi curtir a vida, sem procurar saber o que eu queria. Uma conversa honesta não nos teria levado a tal ponto. — Ele fica em silêncio. — Expus meus sentimentos e chateados aqui antes de chegar à decisão final.
— Dê um mês, uma semana.
— Do que vai adiantar esse tempo se nada mudar? Que prova é melhor do que ficar sem nenhuma amarra?
Ele demora a dizer algo. Ocupado nos pensamentos.
— Tô tentando fazer isso durar, Mari.
— E eu tentando salvar a relação. Se for pra dar certo, nós voltaremos em pouco tempo. Do contrário, pelo menos foi bom.
Por um momento consigo afastar a vontade de chorar e me sentir forte.
O silêncio volta a reinar.
Eu disse tudo o que sentia, de bom e ruim. Nenhuma verdade faltava. Esperava que ele entendesse e que nós dois aprendêssemos com esse término.
Ao mesmo tempo eu temia o próximo passo. E se isso tivesse uma feito reverso? E se eu regressar mais tarde e ele já tivesse seguido em frente?
Sem vergonha, me inclino para a frente e choro silenciosamente.
Miguel me convida para perto. Fico onde estou, temendo fazer o contrário e nublar as ideias.
— Desculpa — peço. — Só acho que precisamos disso.
Para minha surpresa, ele não contraria mais.
— Tudo certo. Talvez você tenha razão.
Minutos depois Miguel vai até a cozinha e traz um copo d'água.
— Está decidido, então? — Aceno em silêncio enquanto entorno alguns goles. — Vou pra casa.
— Cuidado no trânsito — peço e apoio o copo na mesa. Por fim, me levanto e o abraço. — Obrigada por tudo.
Miguel devolve o gesto.
Sinto desolação quando se vai. Vejo o carro virar a esquina, fecho o portão e entro pela cozinha para buscar os restos da festa. Me arrastar para a sala e desabou no sofá, abrindo a caixa de papelão contendo docinhos e salgados.
Frios como o começo de primavera em Boston.
Enfim uma coxinha gelada atrás da outra na boca, encarando a portinhola de sempre. Minha visão embaça com as lágrimas.
Eu me perguntava se um dia, depois de plantarmos a urna, pararia de encarar aquele ponto da sala com tristeza.
Sempre piorava quando me sentia solitária, nos momentos que eu ficava sozinha. Tipo agora.
— Mil amores, mainha disse. — Repito para ninguém. — Espero que ela esteja certa.
Mais lágrimas caem.
— Eu queria que você estivesse aqui. Me inspirar em vocês, mas tudo saiu do lugar desde que se foi. Tô dividida, pa... — a voz falha — só queria que estivesse aqui.
Apoio a caixa no sofá e abraço os joelhos, encostando o rosto neles.
Libertei minha angústia o quanto pude.
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Destinados
RomanceMariana Bragança uma recifense aspirante a atriz volta do intercâmbio de um ano em Boston, no estado de Massachussets e finalmente corre em busca da tão sonhada carreira. Em casa, ela precisa retomar a vida e em meio a uma trama de reencontros e per...