Capítulo 24

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  Eu passara em todos os testes e agora vibrava sempre que me via na televisão. De início senti vergonha, mas depois da quarta vez ja havia me acostumado.
  A conta de quantas pessoas vieram comentar aquele feito estava perdida. De qualquer forma, nenhuma delas importava mesmo.
  Ninguém além dos meus parentes mais próximos e meu melhor amigo.
  Curiosamente, Neno Bulhões me fez mais convites para audições de suas peças após elogiar minha figuração no comercial. Obviamente não era louca de recusar.
  Tudo ficaria para o ano seguinte, assim como o curso que eu faria para aprimorar minhas habilidades. Eu havia me matriculado dias antes com a minha mãe na retaguarda para qualquer necessidade de socorro.
  De resto, ela se recusou a ajudar alegando que eu já era velha demais para cuidar da minha vida. Não que eu gostasse da ideia, estava tão presa ao nível de esperar que ela falasse por mim para o médico quanto Ana defendia sua posição contra tomar as rédeas da própria vida.
  Nesse meio-tempo o julgamento de Afonso havia acontecido. Fora uma sessão longa e cansativa, por vezes, revoltante.
  Se eu já sentia repulsa quanto ao homem, ela triplicou depois que a verdade se desenrolou diante de nós.
  Ao menos Elvis depôs contra o criminoso. Afonso seguiu negando ter cometido o crime mesmo com as provas e detalhes dados pelos peritos. O seu advogado era bom o bastante na defesa, mas eu tinha fé de que o nosso conseguiria ser melhor ainda.
  A mesma repulsa que eu dirigia ao mandante, destinava a seu advogado. Pensando o tempo todo como alguém poderia ser capaz de defender um traste daqueles? Um traíra. Alguém que cometeu um crime tão grave contra um pai. Por tão pouco.
  Eu relanceava o pequeno grupo formado pelos parentes de Afonso e me perguntava se sentiam vergonha dele. Ou se acreditavam que era inocente.
  Rodrigo tinha nos acompanhado. A única família presente de Elvis. Ele se sentara ao meu lado partilhando dos sentimentos que eu expressava. Nojo, raiva, tristeza. Toda uma massa confusa.
  Rodrigo estava perdido com a ideia de assistir o tio ser julgado, eu percebi desde sua troca breve de cumprimentos com Mirtes.
  Desde que adentramos a sala para o início da sessão não dirigiu outra palavra a mãe e pouquíssimas a mim.
  Mirtes ocupava o banco de atrás do que eu ocupava com minha mãe, Rodrigo e parte da minha família paterna. Junto à secretária estavam a maior parte dos gerentes da FunToy.
  Inclusive, Josias. O homem havia me dirigido palavras de encorajamento logo na entrada da sessão.
  Nenhuma condenação foi feita e o juiz determinou levar Elvis e Afonso a júri popular.
  Coisa que só aconteceria no início do ano seguinte.
  Finalmente Rodrigo tocou minha mão. Parecia nervoso e relaxado ao mesmo tempo por conta da decisão.
  Ergui o olhar para ele.
  — O quê? — murmurei ao levantarmos.
  Os réus foram levados com o fim da sessão.
  — Vou vomitar meu coração.
  Engoli uma risadinha e comecei a seguir minha mãe para fora do auditório.
  — Quis estrangular o juiz por não condenar Afonso logo — confessei baixinho por cima do ombro. — Mais dias de tortura.
  Rodrigo deu de ombros e alcançou minha lateral.
  — Ele precisa ser imparcial, né?
  Assenti rapidamente e cruzamos as portas. Minha mãe pediu para esperarmos enquanto conversava com o advogado.
  Relanceei Mirtes procurando algo na bolsa imensa.
  — Ela passou a metade do julgamento prestando atenção no que era dito e a outra em você.
  — Não tô bem hoje.
  — Eu entendo. — E entendia mesmo, eu não me sentia muito melhor que ele. — Se quiser se esconder... explico a ela que precisa digerir a decisão.
  Rodrigo concordou e me abraçou apertado.
  — Valeu.
  — Avise onde está esperando.
  Ele se afastou e quase partia quando voltou o olhar para mim novamente.
  — Se o convite ainda tá de pé, posso passar o réveillon com vocês?
  Nem me preocupei em esconder o largo sorriso que dividiu e iluminou meu rosto.
  — Claro. Com uma condição. — Rodrigo me encarou, esperando. — Vai dormir abraçadinho comigo.
  Ele reconheceu o tom de brincadeira e emitiu uma risada breve e divertida. Por fim, negou com um balançar.
  — Tu tem cara de quem chuta igual lutador de UFC.
  Mordi o lábio.
  — Só espero nunca quebrar a canela.
  Ele sorriu e foi embora. Me virei minutos depois e cobri a distância até Mirtes para cumprir o prometido.
  Termino de encher a geladeira da área externa como consigo e olho para Ana montando a decoração com nossas mães.
  As últimas horas tinham sido um aperreio sem fim de montar a festa de Ano Novo no meu quintal. Tio Cláudio ajudava Glória na cozinha e meu irmão... bem, Guilherme aparentemente se autoencarregou de nos atrapalhar.
  Isso garantiu a nós dois bons atritos ao longo do dia e as repreensões de mainha.
  Aproveito que todos entram para se arrumar e vou em busca do regador no garagem. Normalmente, quem fazia aquela tarefa era minha mãe e Glória. Dessa vez eu senti que precisava.
  Queria uma conversa. Monólogo, na verdade. Com o broto que começava a nascer onde plantamos meu pai.
  Carrego o regador pesado com dificuldade. Água respinga pelos lados e molha o short jeans.
  Largo o objeto no chão ao chegar, a fraqueza embaça minha visão e apoio as mãos nos joelhos, respirando pesado.
  Endireito a postura, empurrando a lombar com as mãos. Pego o regador com as duas mãos e seguro a parte de baixo numa palma.
  Entorno o conteúdo aos poucos, molhando a terra escura e com alguns pontos verdes ao redor do broto.
  — Água — solto. — Faz bem pros rins. Consegui um trabalho, pai. — Observo o pequeno sinal de planta crescendo e corrijo: — Pa-inho. E isso abriu portas pra outros no teatro, torço pra crescer agora. Mas fui atrás de um curso e agora fico pensando se não deveria ter feito isso desde pequena.
  Solto um suspiro e dou outra volta alimentando à terra com água.
  — Achei que era tarde demais, mas uma pessoa me fez pensar sobre ter vários planos e depois desse trabalho, acho que entendi que nunca é tarde pra usar outro caminho. Tenho bons contatos como tu disse pra fazer. — Faço uma pausa. — Ele é uma boa pessoa, sinto que posso confiar. E que vai salvar muitas pessoas também. Vejo ele como um herói de verdade, mas a capa dele vai ser um jaleco.
  Apoio o regador vazio no chão e sento ao lado dele, diante da árvore prestes a nascer e virada de lado para a casa. Se alguém viesse eu poderia disfarçar antes que me percebesse falando sozinha com a terra.
  Minha própria mãe fazia isso, mas eu era tímida para permitir que me visse fazendo o mesmo.
  Mordo o lábio passo os dedos pela gramínia. Alguns pedaços de folha lembrando velcro fazem cócegas no meu dedo.
  — Jurei que ia ser Miguel. Pensando bem agora, percebi que só lembro dele quando é citado. Nem sei se é o tempo ou o efeito Rodrigo na minha vida. Pode ser os dois. — Dou de ombros. — Queria que você tivesse conhecido ele. Pessoalmente, pro caso de estar o tempo todo observando. Sim, graças a Félix e Martim eu sei que são vocês que abrem a torneira do nada. Pelo bem da água mundial, nem invente de fazer isso. Já não temos muita...
  Viro o rosto pega por uma ventania repentina soprada do mar, meu cabelo voa em direção à casa. Ouço o tilintar de metal caindo no chão da área da churrasqueira e solto um suspiro. As ondas quebram com um estrondo.
  Relanceio a direção do barulho quando o vento acalma, diminuindo até a brisa que soprava desde cedo. Um espeto para churrasco havia deslizado da parede onde estava apoiado ao chão.
  Volto a atenção para o broto. Retomo o assunto inicial.
  — Me pergunto se me ouve contar meus segredos e o que diria se pudesse responder. Estou cada vez mais certa de abrir meu coração pra ele e ao mesmo tempo preocupada se entendi algo errado. Mas uma amiga me contou que só posso descobrir se tentar. Do próximo ano não passa. — Endureço a expressão. — E a condenação também não. Só espero que o júri puna aquele nojento. A ele você devia assombrar. Algo que faça Afonso cagar nas calças, por favor.
  Ouço um chamado distante vindo da casa e ergo o queixo. Toco a alça do regador e me preparo para levantar.
  — Fica em paz, pai. A gente te ama.
  Ando apressada para a garagem quando o chamado soa de novo. Era minha mãe.
  — Já vaaaaaaai!
  Ponho o regador onde o encontrara e ouço barulho de água.
  Vislumbro a torneira que usara para o regador e estreito os olhos. Um fio d'água escorre dela.
  Rio baixinho e fecho o registro lembrando do detalhe sobre a série brasileira que contei diante da árvore.
  — Tudo bem. Essa foi eu.
  Dou as costas e volto para dentro de casa.

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