Capítulo 17

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  — Você me seguiu? — questiono Miguel me desenroscando de Rodrigo.
  — O que você está fazendo? — insiste.
  Apoio as mãos na cintura e bato um pé no chão. Por que eu tinha que ceder?
  —Você me seguiu?
  — Perguntei primeiro.
  Estalo a língua incomodada. Infelizmente ele tinha um ponto.
  — Abraçando meu amigo.
  Gesticulo para Rodrigo, de esguelha percebo o rapaz dar um aceno sem graça.
  Não estávamos fazendo nada de errado, mas a abordagem de Miguel fez parecer o contrário.
  — Precisa disso tudo?
  Pisco com veemência, contrariada e entrelaço os dedos.
  — Miguel, eu não fico te seguindo e questionando a forma como trata seus amigos. Isso me lembra, por que está aqui?
  Ele cruza os braços.
  — Por acaso, vi você passar.
  Ergo uma sobrancelha. Atrás de mim Rodrigo bufa uma risada, recebendo o olhar enviesado de Miguel. Coloco-me entre ambos discretamente.
  — Por acaso?
  — Sim, eu tava jogando vôlei na quadra e te vi chegando.
  Relanceio a quadra do parque metrôs de distância. De onde estávamos, só podia ver a bola voando.
  Minha mente atina para a nossa conversa de mais cedo.
  — Jogando?! Você não disse que ia passar o dia fazendo trabalho?
  — Eu ia, mas surgiu esse convite.
  Não confio no seu tom.
  — Por que tá mentindo pra mim? — pergunto sem esconder a mágoa.
  — Não estou... — troco um olhar com Rodrigo. — Olha aí, você já começou mentindo sobre ele.
  — Num me mete nessa história aí, véi — pede meu amigo.
  — É — concordo — o problema é entre nós dois.
  Miguel me encara.
  — Por que tava agarrando ele?
  Rodrigo suspira exasperado.
  — Seja lá o que se passou na tua cabeça foi bem longe disso, Mi.
  — Esqueceu o que conversamos lá em casa?
  Os leões e a carne. Balanço a cabeça.
  — Já disse de lá que era um absurdo.
  — Também falo em enigmas — Rodrigo conta.
  Dirijo-lhe um olhar severo, mas seguro a diversão ao mesmo tempo. Peço desculpas pela expressão.
  — Você nunca se importa com o que eu sinto.
  Dou um passo na direção do meu namorado.
  — Eu me importo, sim. Mas também reconheço um absurdo quando vejo.
  — Enxerga os seus absurdos.
  Aperto os lábios.
  — Tudo bem, mas talvez você possa me mostrar seu ângulo de forma que me faça compreender e que não pareça mesmo maluquice ciumenta. — Ouço um grunhido atrás de mim. Me aproximo mais de Miguel e toco seu peito. — Eu amo você, mas não assim.
  Seus olhos fixam nos meus.
  — Isso ficou nojento — constata Rodrigo. — Vou indo, tchau.
  Giro os calcanhares e seguro seu braço.
  — Vai ficar aí mesmo.
  — Deixa ele ir, Mariana. Tá fazendo hora aqui já.
  Seu tom me incomoda de novo.
  — Miguel, por favor. — Volto o rosto para Rodrigo e suplico: — Fica.
  — Tenho alergia a sentimentos.
  — Agora não é hora pra brincar — aviso e me viro para Miguel. — Ele não vai embora sem motivos.
  — A coisa ficou melosa e eu ganhei um motivo — comenta o rapaz.
  — Cala a boca — disparo por cima do ombro.
  Ele ri baixinho e concentro em Miguel.
  — Te disse que não gostava desse cara. Você diz que vai sair e quando chego aqui te vejo agarrando ele. Acho que tenho todo o direito pra pensar besteira.
  — Gratuito. — Rodrigo se põe ao meu lado. — Se tua preocupação é ganhar um par de chifre, pode ficar tranquilo que nem eu aceitaria fazer isso com alguém. Tenho princípios.
  O rosto de Miguel se contrai em raiva e nojo quando olha para Rodrigo.
  — Fácil falar — sibila e zomba: — Princípios. Seu tio matou o pai dela, que moral você tem?
  — Toda? — retruco.
  Rodrigo se empertiga, cruza os braços e bufa, voltando para junto do arco.
  — Não preciso brigar com você. Se fosse pra ter algo entre eu e ela, teria acontecido antes de vocês voltarem. — Mordo a língua e deixo que Rodrigo continue. — Mas se te preocupa tanto, então deve saber que não tá fazendo um bom trabalho como namorado.
  Miguel cresce para o lado dele, inflamando o peito e dando um passo em nossa direção. Seus punhos cerram.
  Coloco-me no meio outra vez.
  — Quer que eu mostre como trabalho com quem se acha demais?
  — Mi, tá cheio de gente por aqui.
  — E ele tem algum filtro? — Rodrigo indaga. — Quis me atingir associando ao meu tio.
  — Fica caladinho. Com gente do seu tipo eu resolvo de outro jeito.
  O jovem semicerra os olhos.
  — Como é que é?
  Levanto um indicador voltado para Miguel.
  — Êêêpa! Ninguém vai resolver de outro jeito algum. — Alterno o olhar entre os dois para me assegurar e volto o rosto para meu namorado. — A conversa é nossa, deixe Rodrigo fora disso e vamos nos resolver.
  O rapaz checa o relógio de pulso preto e dourado.
  — Faz minutos que estamos no mesmo canto.
  — Como se ele tivesse ajudado ouvindo seu ponto — murmura Rodrigo.
  — Fecha essa boca um segundo? — peço.
  Miguel ergue a voz para ele:
  — Me respeite. Tá se metendo com qualquer um, não.
  — Tu não é ninguém, Miguel — disparo.
  Ele toma aquilo como a pior ofensa. Os olhos se diminuem a fendas, as sobrancelhas franzindo de raiva.
  — Eu não sou ninguém?! — repete. — Não precisa dizer mais nada, Mariana.
  Miguel passa ao meu lado para ir embora. Seguro seu braço.
  — Não vai assim, vamos resolver isso como pessoas civilizadas.
  Ele me lança um olhar de raiva.
  — Você mesma disse que eu não era ninguém.
  Meus olhos ardem.
  — Do mesmo jeito que eu não sou. Ainda. Eu tava falando de carreira. — Puxo de leve outra vez. — Mi, por favor.
  — Solta meu braço, Mariana.
  — Por favor. Vamos resolver isso tudo de uma vez.
  — Se eu ficar mais um segundo, a gente vai resolver na base do término.
  A ideia dói. Me lembro do meu estado há um ano.
  Então, solto seu braço. Miguel me lança um olhar severo e outro a Rodrigo. O jovem finge estar nem aí.
  Meu namorado marcha em direção à quadra e fico parada no meio da passagem.
  Cubro o rosto com as mãos. A tristeza substituída por raiva.
  — Que vexame.
  — "Gente do seu tipo"? Tudo bem que eu não consegui me segurar, mas precisava disso?
  Crispo os lábios.
  — Ele é um babaca.
  — Só babaca?
  Rodrigo balança a cabeça em desaprovação. Olho para onde Miguel foi e deixo os ombros caírem.
  — Não foi isso que ele quis dizer — garanto. — Miguel não é assim.
  Cabisbaixo, Rodrigo estala a língua e balança o guidão da bicicleta.
  — Foi o que ele escolheu dizer — o jovem constata. — É a vida.
  Ficamos em silêncio.
  Não dava para ver Miguel mais, eu só sabia que ele estava em algum lugar perto da quadra e eu não devia passar por aquele lado ao deixar o parque. Caso contrário, correria o risco de desabar.
  Meus olhos já ardiam por causa da discussão.
  Ele considerou um término. Exalo pesadamente.
  — Desculpa, você tá bem pra ir de volta? — me preocupo em saber, fitando a bicicleta.
  — De boa. E tu?
  Respondo com um assentir.
  — Desculpa por isso.
  Ele abre um sorriso pequeno.
  — Seu namorado não é culpa sua.
  Falho em devolver o gesto e abro a bolsa em busca do meu celular.
  — Acho melhor ir pra casa. A gente se fala, então.
  Caramba, até minha voz havia entristecido.
  Acendo a tela e começo a procurar o aplicativo de carona.
  — Sem problemas — garante. — Vou te acompanhar até o embarque.
  Agradeço com o olhar.
  Minutos depois, estávamos na parada de ônibus na avenida por trás do parque.
  — Eu não lembrava que conhecer você dava fortes emoções — comenta divertido. — Pior do que faculdade.
  Consigo dar risada.
  — Só tu mesmo... — meneio a cabeça. — Acho melhor respeitar essa insegurança dele. Vou evitar ataques como esse de mais cedo a partir de hoje.
  — Ah, tu nem sabia que ele tava lá. — Mas o olhar que ele me lança logo após falar e compreensivo. — Tudo certo.
  O carro se aproxima mais no mapa do app. Ao longe, noto e aponto o veículo.
  — Deve ser aquele ali.
  Rodrigo me encara.
  — Valeu por ter cedido ao orgulho. Se me admira por aquelas coisas, é a atitude que elogio em você.
  Abro um sorriso e abraço o jovem.
  — Cuidado, teu boyzinho pode estar apontando um rifle pra minha cabeça agorinha.
  Rio alto e dou um tapinha em seu ombro ao me afastar.
  — Pare de brincar com isso.
  O motorista para um pouco depois da parada e adentro no veículo.
  Rodrigo se inclina para cumprimentar o dono do carro e olha para mim tentando parecer um namorado.
  — Vou acompanhar a corrida, confirma quando chegar em casa, bebê.
  Confirmo que farei e nos despedimos.
  Assim que chego cruzo o portão de casa, cumpro a promessa com um agradecimento.
  Minha mãe, sabendo para onde fui, me olha do sofá com expectativa. A luz some de seu rosto e a pergunta morre na língua quando percebe meu humor.
  — Eu e Rodrigo estamos de boa —digo parando atrás do sofá.
  Ela me percrusta.
  — O que deu errado?
  Ocupo o espaço ao seu lado e me aninho nos braços dela.
  — Eu não sei mais o que fazer com Miguel. Ele decidiu que odeia Rodrigo e nos ver juntos.
  Minha mãe franze o nariz.
  — E o que ele tem a ver com isso? A amizade é de quem?
  — Miguel tá com ciúmes — explico.
  Ela fecha a boca para pensar um instante.
  — Eu achei que vocês iam ter algo antes de Miguel aparecer — ela coloca uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. — Mas se é a forma como você trata seus amigos e te faz bem, por que mudar isso?
  — Eu trato Ana assim, ele já viu.
  — A ameaça que seu namorado vê está em Rodrigo ser rapaz.
  — Grande coisa, se eu gostasse de homem e mulher eu não poderia ter amizade, então.
  Minha mãe nega com a cabeça e continua arrastando as unhas da ponta para dentro das madeixas.
  — Você teria a hora de colocar as coisas numa balança para decidir o que é mais importante: suas amizades ou o namoro.
  — Os dois.
  As mãos dela tentam traçar meu cabelo como podem.
  — Sempre escolha o que doer menos e libertar mais. Vai ter mil amizades na vida inteira, mas também poderá viver mil amores.
  Olho para a porta que ainda guarda a urna e me afasto quando suas mãos finalizam a trança sem prender.
  Fica torta, mas não iria durar de todo jeito.
  — Tu só viveu um.
  Seu olhar segue o meu e fixa no mesmo móvel.
  — E foi o mais puro. Não quer dizer que sou incapaz de sentir de novo.
  Fito-a e estreito os olhos.
  — Você é rápida, hein?
  Ela ri e balança a cabeça.
  — Vai levar tempo pra eu superar Leandro.
  Sorrio e me inclino para abraçá-la de novo.
  — Quando tiver pronta, ficaremos felizes por você.
  Fecho os olhos ao sentir seu leve aperto e receber um beijinho na cabeça.
  — Eu sei... obrigada.

  — Bem que senti que algo no mundo estava certo quando acordei hoje. — Ellen comenta ao fim do nosso primeiro ensaio. — Aí tu me traz uma notícia dessas... agora vai, meu Pai.
  Inclino o corpo para trás, apoiando as palmas no chão da casa de Ellen.
  — Obrigada, inclusive.
  — Nunca é tarde demais pra salvar um shipp.
  Fungo uma risada. Paulinho senta atrás dela e abraça a amiga. Ele apoia o queixo no ombro exposto da jovem.
  — Achei que Ellen ia chorar pra sempre como se o mundo estivesse acabando.
  — Isso não é verdade — acusa a jovem.
  — A última vez que a gente viu ela chorar assim foi quando o personagem favorito morreu dela na série.
  — Olha eu não julgo — comento.
  Desvio a atenção de ambos quando Jana, Val e Edu se juntam à rodinha.
  Janaína encosta o corpo em Val, as mãos dadas e trocando pequenas carícias. A jovem deitada me fita e se aproxima apenas para tirar uma mecha de cabelo do meu ombro.
  — O que foi? Tá tristonha.
  As atenções se voltam para mim de imediato.
  — Só tô pensativa demais.
  Paulo bate palmas.
  — Jogou na rodinha tem que falar!
  Abro um sorriso.
  — Foi Jana quem me expôs. — Balanço a cabeça, mas acabo cedendo: — É o meu namoro, tenho analisado algumas coisas.
  Ellen e Paulo começam a se cutucar. A jovem liberta a voz, subindo e descendo as sobrancelhas.
  — Se não tá dando certo, larga e pega um amigo. É sucesso.
  Os outros explodem em risadinhas.
  — Eu aprovo — Val diz e troca um olhar com Jana.
  Encaro Ellen e deito no chão, disparando:
  — Chaaaaaata.
  Troco um olhar com Edu e as outras duas. Avisando da minha traquinagem.
  Por fim, giro o corpo deitando de bruços virada para as duas. Apoio o queixo nas mãos e levanto as pernas.
  — Só por curiosidade, quanto vale a pena namorar uma amizade?
  Elas se entreolham divertidas. Ellen fica de quatro soltando um feitinho emocionado e engatinha até mim.
  — Não brinca comigo, Mariana, eu vou fanficar até no dia do seu enterro.
  Dudu ri.
  — Aqui jaz a paz de Mariana Bragança.
  Eu me ergo sobre as mãos e os joelhos. Engatinho para trás de Val com Ellen no encalço, então fujo para perto de Paulo e continuo perseguida até me aquietar junto de Edu.
  Meus joelhos reclamam de dor. Os da outra provavelmente fazem o mesmo, pela careta que fez ao sentar.
  — Vou na cidade comprar as coisas pra minha festa, precisamos de algo que eu possa procurar? — pergunto, me referindo ao centro do Recife, onde o comércio era bem diversificado.
  Eles trocam olhares de dúvidas.
  Paulo nega.
  — Por enquanto, a gente não sabe. Se quiser ir outro dia pra ajudar.
  Concordo com um menear.
  — Se precisarem, liguem até sexta.
  — Obrigadinha — Jana pede, amassando um punhado do cabelo com a mão.
  Conversamos sobre amenidades até dar a minha hora de encontrar com minha mãe na FunToy.
  Poderia ter ido direto para casa, mas planejara aquela visita apenas para conseguir fazer uma pergunta.
  Apoio meu cotovelo no balcão e o queixo na mão.
  — Desculpa perguntar, mas o que o irmão de Elvis tem de tão valioso seu?
  Mirtes ergue o olhar triste.
  — Meu bebê.
  Abro a boca como se finalmente tivesse ligado os pontos.
  — Seus filhos sabem disso?
  Ela assente.
  — Não escondemos nada.
  — E vocês nunca pensaram em procurar o garoto em rede social? Sei lá, por nomes, pelo pai.
  Mirtes me fita e nega depois de um tempo em silêncio.
  — Gabriel é muito pelo pai, nunca faria uma coisa dessas. João e Júlia... prefiro evitar problemas entre eles e os outros.
  Pisco devagar.
  — Mas Mirtes, o filho é seu. A decisão devia ser sua.
  Ela fecha os olhos e concorda devagar, mas fala:
  — Tomei uma decisão há vinte e três anos, Mariluz. Infelizmente, mas é verdade. Isso foi pra parar os conflitos na minha família e o quanto eu puder evitar hoje, farei.
  Deixo as mãos caírem inertes no colo. Meu cenho franze de leve.
  — Nem se o menino aparecer? Você tava mais perto que nunca de encontrá-lo e consertar o passado.
  — Não dá pra consertar o que já se foi.
  — A gente pode pegar um fato e remodelar pra que ele tenha um novo destino — rebato. — Tu disse que queria conhecer seu filho, por que tá dando um passo pra trás?
  — Eu não estou, Mari. Se o menino aparecer por aquela porta e eu souber, vou falar com ele tudo o que guardo.
  Assinto para mostrar que compreendia e estalo a língua.
  — Vocês vão pra minha festa?
  O rosto dela se ilumina.
  — Claro que sim.
  Pego o celular no bolso fingindo navegar na internet e abro a conversa com Rodrigo.
  É Mirtes, sim.
  Fico tentada a falar sobre a complicação que a família dela podia se tornar, mas meu pé atrás me impede.
  Rodrigo já não queria temendo rejeição. Se eu antecipasse sobre aquilo, ele se recusaria de pronto.
  Sua resposta logo chega.
  Meu pai confirmou.
  Inspiro fundo, observando a recepcionista trabalhar.
  Se ela soubesse... mas não era meu direito contar.
  Me aquieto para deixar o tempo trabalhar.
  Era a melhor escolha.

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