Capítulo 15

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  Mal tinha chegado na metade do dia e eu já havia decidido ligar para o delegado.
  Foi fácil encontrar o número no celular da minha mãe, vezes mais simples do que contar o que eu havia descobrido e ainda assim, me senti inútil quando o homem disse que já tinham chegado a essas conclusões, de todo jeito agradeceu pela ajuda.
  Com a lentidão, nem acreditei na promessa dele de pegar o mandante o mais rápido possível. Estavam tentando convencer o próprio Elvis de ajudar.
  Após encerrar a chamada continuei sentada num sofá na área da churrasqueira no meio do quintal. Outra sugestão rodava na minha cabeça.
  Parecia maluquice levar em conta nos últimos tempos, mas me peguei pensando na ideia que Ana deu mais cedo sobre dar uma festa.
  Vinte é uma idade interessante e todo mundo precisa desopilar, alegou por mensagem. Agora eu considerava seriamente em fazer algo.
  Primeiro tinha que falar com minha mãe, descobrir se ela se sentia confortável com a ideia e depois, descobrir quem chamaria.
  Não tinha me testado muita gente aparentemente. Era mais fácil na escola, fazer as festas e chamar todo mundo. Hoje eles eram totalmente estranhos para mim.
  Exceto por Miguel e Ana.
  Penso no meu namorado. Sempre que ele volta à minha cabeça me arrependo da discussão um noite antes.
  Vergonha me fazia querer esconder o rosto entre as almofadas coloridas do sofá e nunca mais tirar.
  Fiz o que disse e falei pro delegado minhas descobertas.
  Não espero sua resposta. Miguel nem estava on-line para dizer qualquer coisa.
  Apoio o corpo no encosto do sofá. Que ideia maluca foi aquela de usar o dia para pôr as coisas no lugar?
  Se o objetivo era chegar numa mudança pessoal ou acalmar ânimos, eu tinha falhado. Minha cabeça seguia um turbilhão.
  Precisava de contato humano ou enlouqueceria. Necessitava de um ombro amigo, o mesmo que fugia de mim nesse exato momento e do meu namorado, o qual afastei na noite anterior.
  — Eu sou uma porcaria — resmungo.
  Afundo no sofá pensando no que ocupar minha mente e apenas minutos depois lembro dos textos esperando para serem ensaiados.
  Impulsiono as pernas para me levantar e me arrasto até dentro de casa. Encaro o móvel dentro do qual a urna do meu pai espera para ser plantada.
  Paro a passos do corredor e cravo um olhar afetado no móvel.
  — Desde que você se foi tudo virou de cabeça pra baixo, não dava pra esperar até eu estar independente e morando fora do país? — resmungo e logo me sinto culpada. — Não me mande pro castigo, a culpa é de cada maçã podre que ousou conspirar contra você. E nem que eu vá no inferno, vou caçar esses bandidos que nos tiraram a vida.
  Glória chega a sala com um cesto de roupas limpas e dobradas.
  — Falando sozinha, Maroca?
  Olho por cima do ombro e forço um sorriso envergonhado.
  — Ensaiando pra uma audição.
  O semblante dela brilha em reconhecimento e ela passa por mim para o quarto de minha mãe.
  — Pela sua emoção, vai dar bom essa. Se precisar de ajuda, chama.
  — Certo, obrigada...
  Glória some no cômodo ao fim do corredor e retorno o olhar para o móvel. Como se pudesse ver a urna além dele.
  Baixo o tom ao finalizar:
  — Se fantasmas existem, bem que tu podia mandar um sinal dizendo quem foi. — Estalo a língua. — E sim, tô mais que triste e revoltada. Não me tiraram só você, mas muito mais.
  Cada dia eu me sentia perdendo algo ou me dava conta de que já havia perdido.
  Aprecio a corrente de vento que entra pela janela da sala e se divide passando por todos os cantos.
  Vai dar certo, nós vamos encontrar.
  Sigo meu caminho para o quarto, sentindo o corpo mais desperto após a sessão de desabafo.
  Miguel não apareceu até mais tarde naquele dia. Considerei inclusive a possibilidade de ele ter preferido não responder e compreendi a escolha.
  Porém, quando o sol caía a oeste lançando luz laranja por onde conseguia se infiltrar entre os prédios ao redor e pousar no quintal, sua resposta veio.
  Isso é bom, tomara que eles façam algo com o que encontrou.
  Abro um sorriso, pela escrita dava para sentir que estava tudo bem.
  Como foi seu dia?
  Perco um tempo esperando ele digitar.
  Muita leitura, resenha e fichamento. Achei melhor faltar aula pra fazer atividade. Tô morto agora.
  Dispenso a vontade de bancar a pessoa mais sábia que reprova a falta mesmo que por brincadeira.
  Conseguiu fazer tudo pelo menos?
  Graças a Deus, sim.
  Ninguém diz mais nada por um instante. Continuo na conversa, seu status continua on-line e nossa conversa segue silenciosa.
  Mordo a boca e hesito antes de pedir:
  Posso te ligar? Preciso ouvir sua voz.
  Miguel digita e para. Enfim, volta a escrever.
  Já tô em call. Vou entrar numa partida, depois eu te ligo.
  Solto o ar devagar. Esta era uma forma mais educada de dizer que não o faria. Meu fiapo de esperança evapora.
  Tudo bem, tô esperando. Bom jogo.
  Fecho a porta do quarto e as janelas. Coloco música na televisão e aumento num volume em que só ela preencha o quarto.
  Nenhum ruído de Glória fazendo o jantar ou Guilherme assistindo desenho. Só música e meu choro.
  Eu cobrava demais, esperando muito das pessoas e reclamando ao receber o que não esperava ou nem isso.
  Insisti numa resposta de Rodrigo e acabei parando de receber mensagens. Agora queria mais do que Miguel podia dar em certos momentos e me chateava por isso.
  Cantarolo a música triste enquanto o clipe roda na televisão.
  Como eu faria para me parar? Não queria afastar mais ninguém.
  Batidas na porta me tiram do momento de reclusão. Pauso a música e ouço o chamado de mamãe para o jantar.
  Recomponho-me antes de me juntar a eles. Hoje Glória estava com a gente.
  Até para minha surpresa, meu sorriso brilha involuntário.
  — Não acredito que perdi a luta de mainha pra te convencer a comer com a gente.
  — Foi luta — confirma minha mãe.
  Encaro Glória que dá de ombros.
  — Eu ainda tinha que terminar de estender umas roupas.
  — E todo mundo tem um estômago pra encher — minha mãe rebate.
  — Quando mainha diz que a pessoa precisa comer, ela não vai parar até ver os dentes trabalhando — Gui conta. — Não adianta tentar enganar.
  Inclino a cabeça, notando o uso das palavras. Minha mãe também não deixa passar batido.
  — Já tentou foi, Guilherme?
  Ele ri.
  — Eu não — mente.
  Reprovo com um balançar de cabeça.
  — Conseguiu ensaiar direitinho, Mari? — Glória quis saber e volta o rosto para a patroa. — Passei por ela e tava falando sozinha, achei que tinha ficado doida, mas ela tava era ensaiando.
  Ar sai pelo meu nariz em forma de risada.
  — Consegui... — capto a curiosidade da minha mãe e explico: — Textos para uma audição.
  Que elas pensassem que fosse aquilo e não uma conversa amarga com o vento, fingindo ser para meu pai.
  — Ah, ótimo. — Ela desfia um pouco da carne no prato. — Recebeu ligação daquelas que já enviou vídeo?
  Baixo o olhar para o prato.
  — Nada ainda.
  Aí estava outra razão para meu desânimo. Atuar nos hospitais estava sendo a luz no fim do túnel.
  Nenhuma oportunidade para a qual eu me inscrevi trouxe uma resposta. Eu começava a questionar minhas habilidades como aspirante a atriz. Será que nunca conseguiria um trabalho e meu destino estava na FunToy?
  Ah, não. Por mais que fosse ótimo ter a empresa como uma segunda opção caso perdesse tudo, eu não queria a vida de escritório.
  — É assim mesmo — tranquiliza. — Até lá vai chegar a oportunidade certa que você vai dizer, esta existiu pra ser minha primeira.
  Engulo em seco. Rezo para que chegue antes de eu desistir daquela vida de atuação.
  Concentro na minha refeição quando a conversa se volta para Guilherme e sua escola.
  Ele fala sobre ter gostado do teste de matemática e solto um comentário admirado que ele se dê bem com a disciplina. Encorajando-o a trabalhar nela.
  A refeição terminava quando consigo espaço para abordar a ideia de Ana.
  — Mãe... — Ela limpa a boca com um guardanapo e me observa. — Ana me deu a ideia de fazer algo pros vinte anos e eu até pensei, mas tô meio assim, não sei se é o momento.
  — Você quer ou não?
  Paro por um instante, no meio de uma corda bamba. Não era decidir entre sim ou não que eu queria, mas descobrir como ela se sentia em relação a tudo.
  — Eu não sei. O que você acha?
  — Acho que a festa é sua, Mariana.
  Ah, isso ajudou muito, penso desanimada.
  Assinto e murmuro que pensaria sobre enquanto reúno meus pratos. Glória levanta e se oferece para levar a pilha à pia.
  Entrego com um agradecimento, Guilherme faz o mesmo e se despede para voltar ao quarto.
  Verifico o celular em busca de mensagens. Nada novo. Miguel também não tinha me procurado, como suspeitei que aconteceria.
  Apago a tela e me preparo para sair da mesa, calçando as pantufas de tecido fino.
  No calor que fazia, as versões felpudas faziam meus pés suar e não era uma sensação que eu gostava.
  Começo a me dirigir para o quarto.
  — Mari. — Giro os calcanhares. — Tu acorda sentindo o perfume dele de noite?
  Franzo o cenho, confusa.
  — De painho? — Ela assente. Penso por um momento e nego. — Nunca senti. E tu?
  Ela parece inclinada a confirmar.
  — Às vezes.
  Forço um sorriso. Sabendo que ela ainda se culpava pela briga final, soltei:
  — Tomara que seja a forma dele de dizer que está tudo bem do outro lado e que ainda está aqui vendo a gente.
  A boca dela remexe um pouco e termina num sorriso triste. Por fim, assente.
  — Faça sua festa. Tá tudo bem por mim.
  Solto o ar que prendia de alívio. Finalmente algo.
  — Obrigada. Vou procurar ideias com Ana.
  Ela dá um aceno e fixa a atenção no celular.
  Sentindo que faltava algo. Encurto a distância entre nós duas e passo os braços ao seu redor do modo que consigo, depositando um beijo no topo de sua cabeça.
  O gesto preenche uma parte vazia em mim.
  Minha mãe devolve o abraço.
  — Boa noite — deseja.
  Devolvo as palavras e me direciono para o quarto.
  Não sinto que preciso de mais ninguém pelo resto da noite.

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