Desperto na maciez do meu colchão ouvindo o vai e vem dos saltos no corredor.
Pelo menos minha mãe acordara enérgica. O horário mostrava que Guilherme já estava há duas horas no colégio.
O quarto estava mais escuro que o usual. Imagino que seja um dia chuvoso do tipo que sempre ocorre antes do inverno chegar. Forte e plantando o caos na Veneza brasileira, ou Atlantis, tanto fazia qualquer um.
Alcanço o controle e desligo o ar-condicionado, o som da eletricidade é sugado com um baixo apito como se nunca tivesse existido. Ouço os ruídos de fora encarando o teto branco em silêncio.
Minha mãe detinha toda a coragem para se mover que eu estava ontem e perdi hoje.
Procuro algo em meu ser e me deparo com um estranho vazio. Nenhuma neutralidade, nenhuma emoção, apenas um abismo escuro e o nada.
Lentamente, meu corpo se deixa despencar e escolho não me segurar.
Quem sabe funcionasse hoje, deixar que os outros produzissem enquanto eu ficava ali apenas existindo. Murcha e morta.
Ninguém poderia me cobrar, nada teria a oferecer.
Viro de lado e me encolho sob o edredom.
E eu esperava que ninguém viesse me procurar.
Desativo a internet do celular e fecho os olhos.
Igual à mudança de tempo, o domingo foi ensolarado e resultou numa segunda fria e cinza.
Os passos e vozes no corredor ficam mais claros. O mundo lá fora continuava a girar.
Abro os olhos, cravando a atenção numa tomada qualquer.
— ... ainda tô presa na burocracia com os advogados... muito documento — dizia minha mãe. — Tem como falar com mainha? — aposto que pede ao meu tio. — Não quero ninguém aqui e ela... sim, exatamente.
Eu devia levantar e fazer algo. Qualquer coisa.
Ao mesmo tempo, ser esquecida não parecia uma má ideia.
Mas a sua vida só depende de você, correr por ela é sua obrigação, penso e tento erguer um braço.
Se moveu um centímetro, foi muito. Meu corpo não sai do lugar. Volto a fechar os olhos.
Terei anos pela frente para fazer isso.
Seu pai não teve.
Pressiono as têmporas com um chiado e aperto as pálpebras.
— Depois te ligo, tem outro número ligando. — Ela troca despedidas com tio Claudio e atende a outra ligação. — Alô? É ela, quem tá falando?
A voz dela diminui e abafa quando provavelmente fecha a porta de seu quarto. Envolvo-me no completo silêncio.
Agradeço por meu corpo não estar sentindo a fome que deveria, precisaria de esforço demais para me jogar no chão e arrastar até a cozinha feito uma minhoca.
Penso naqueles animais minúsculos e faço do edredom minha própria terra, deixando o cobertor me engolir.
Aquilo era a paz?
Procuro a resposta e logo descubro que não. Certamente, nada parecido com paz.
A porta do quarto da minha mãe abre com força e seus passos cruzam o corredor rapidamente.
Em segundos ela batia na porta do meu quarto, se esperava que estivesse dormindo, não estava nem aí. Solto o ar devagar.
Nem um pouco lembrasse a paz.
A minha mãe gira a maçaneta e se aventura para dentro do cômodo, parando ao pé da cama.
— Mari? — balança meu tornozelo — Mariana? — insiste. — Mariana, acorda.
Nenhum som me escapa quando tento murmurar uma resposta e ela insiste por uns segundos, até que desço o cobertor ao pescoço.
Algo em mim pula de alerta quando encontro seus olhos vermelhos, assombrados.
— Captaram um suspeito nas câmeras do estacionamento — conta. — O exame na garrafa d'água também deu alterado, estão conectando as duas coisas... — ela vomita palavras e mais palavras sobre o ponto atado na investigação. — Vão colocar ele nos procurados.
Pisco, quase inexpressiva.
— Tá bem? — pergunta, franzindo o cenho e se apruma para me analisar. Assinto. — Glória vai faltar hoje. Preciso ir na delegacia, vai comigo?
Nego com a cabeça.
Por que havia levado tanto para conseguirem aquilo?
Ela ergue o olhar para o ar-condicionado e murmura uma indagação de por que está desligado. Por fim, se inclina para perto e checa a temperatura do meu rosto com o dorso da mão.
Sua expressão contrariada diz mais sobre eu não ter adoecido do que meu próprio corpo.
Minha mãe fica de pé, mantendo o olhar em mim.
— Quer que eu chame alguém pra ficar com você? — Recuso com um movimento de cabeça outra vez. — Ok... — solta e olha ao redor, então se aproxima para depositar um beijo na minha testa. — Volto mais tarde, seu irmão vai da escola pra casa do coleguinha. Qualquer coisa, ligue. Vá descansar, passeou demais esse fim de semana.
Dou um breve aceno e fecho os olhos. Aliviada por ela decidir que meu humor, ou a falta delez se devesse à exaustão de ter saído o fim de semana inteiro.
Mal prestei atenção quando ela voltou para deixar uma bandeja de comida e água na mesa de cabeceira.
Os alimentos frescos fechados e embalados em plástico filme.
Legal.
Pisco, despertando horas mais tarde com passos apressados e barulhentos pisando no meu quarto.
Meu corpo gela quando não reconheço os trejeitos.
A cabeça passa a latejar com os batimentos cardíacos ecoando.
— Acorda pra vida, Mari.
Alívio após o susto me toma, mas meu corpo não descongela por completo.
Descubro o meu rosto assombrado e encaro Ana, sentindo a boca seca.
A voz falha quando abro para questionar.
— O que aconteceu? — pergunta. — Tia Lu me pediu pra vir.
Contraio os lábios e pensar que ela me deixaria dormir o dia todo em paz... nunca mais subestimar Luana Bragança, anotado.
Consigo estender a mão para a garrafa d'água. Ana rouba o objeto de mim e se prontifica de rodar a tampa antes de me entregar.
Aceito e levo a borda curva à boca. Meus lábios recebem o líquido como chuva no deserto.
— Qual o problema? Foi aquele macho?
Estreito os olhos, confusa.
— Ãhn? — minha voz soa rouca. O som me parece estranho apenas por sair. — Rodrigo nunca me fez mal.
— Que Rodrigo, menina? Tô falando do nojento do seu ex mesmo. Eu disse a você pra ficar longe dele...
Balanço a cabeça. O meu corpo exige muito mais esforço para que consiga me sentar do que o normal. Meu braço estala com o movimento e recosto na cabeceira, apoiando o fundo da garrafa no colo.
— Eu e Miguel estamos bem. Só acordei assim e queria ficar só.
Ana me fita como se eu tivesse ganhado mais duas cabeças.
Bem que eu queria, seria mais fácil ter uma para pensar, outra para descansar e outra para reclamar. Só assim dividia a loucura entre as três.
— Se tia Lu ter me pedido pra fazer companhia não foi o bastante, essa história de ficar só certamente é.
Bufo, desviando o olhar dela.
— Nunca quis um dia de paz? Longe de tudo e todos?
Ela franze as sobrancelhas, mas assente.
— Aí é que tá o problema, Mari. Eu já. Você nunca. — Minha prima ocupa um lugar na minha frente e apoia a mão no meu joelho sobre o edredom. O semblante dela fica sombrio. — É por causa do seu pai? —Dou de ombros, nem eu sabia mais. — Por quê? Tia disse que tu tava lidando tão bem, melhor do que ela.
E eu também quero ser atriz.
— Alguns dias são melhores que outros — digo, apenas.
Minha prima analisa a bandeja e se alguma para desembalar as comidas.
Ela estende o biscoito de aveia.
— Engole.
Torço o nariz para o petisco, mas obedeço Ana sabendo que ela não sairia do meu pé até me ver mastigar e engolir.
— De qualquer jeito, não tem como fugir disso. Ainda mais agora que já aconteceu. Ninguém é Raven pra prevenir as coisas. — Ela faz uma pausa enquanto retira o plástico de um sanduíche. — Entendo e respeito seu luto, mas jamais vou deixar que se transforme em pó por causa dele. Tem um mundo lindo lá fora... por mais que eu odeie a ideia, tem seu boyzinho pensando na próxima cartada pra te conquistar. Tá fazendo um dia lindo e eu devia ter batido a janela, mas vai molhar tudo aqui, então, boa desculpa pra irmos na sala...
— Tá chovendo real? — murmuro.
Minha prima confirma com um menear.
— "Raincife" já tá nos assuntos mais comentados daqui.
Mordo a boca. Ana exibe os dentes e seus olhos brilham.
— É um sorrisinho que tô vendo?
Viro a cara. Ana estende o sanduíche.
— Tá explicado, é fome. Já viu alguém com fome e feliz?
Estalo a língua e pego a comida, apenas porque meu estômago pedia mais depois do biscoito.
— Mainha contou que pegaram alguém nas câmeras e... — engulo em seco — drogaram a água dele. A gente sabia que algo de errado havia assim que o laudo do IML saiu, mas não de onde veio. O assassino entregou deu aquela garrafa pra ele. Acha que pode estar ligado a algum vendedor dali perto?
— Ele pode ter comprado a qualquer pessoa.
— Não no mesmo dia que cortaram os freios do carro.
— Como sabe se a água foi no mesmo dia? — indaga.
— Estive no escritório um dia antes, meu pai bebeu água na minha frente do próprio bebedouro.
Ela xinga baixinho.
Bato as migalhas dos dedos e bebo água.
— Seja lá o que aconteceu, é um péssimo dia pra ficar se preocupando com isso.
Arqueio as sobrancelhas.
— Com por que meu pai morreu?
Ela acena.
— Exatamente. Vamos ocupar a mente com outro problema. — Decide. — Mas antes disso...
Minha prima separa as cortinas e abre uma brecha da janela. A brisa fria entra por onde consegue.
Fecho os olhos e deixo o ar escapar pela boca.
O tempo chuvoso ajudou a conservar a baixa temperatura mesmo com o ar-condicionado desligado.
— Sei que eu não devia estar metendo meu nariz e dando palpites na sua vida amorosa. Ainda lembro de ter perguntado se iria atrás dele e depois reclamei, mas só fiz isso porque pensei direitinho e não quis voltar a te ver triste por causa dele.
— Entendo, só queria me proteger, não era de sua maldade.
— Não é meu namorado, minha vida, nem nada meu. Eu disse que pisaria fora e vou, se significa que a gente só discute sobre a mesma coisa. — Ana pega minha mão. — Prometo que vou me calar sobre ele, mas se ele te magoar, também estarei aqui.
— Obrigada — balbucio e tento sorrir.
— Se ele te faz bem como diz, então vai. Aproveita a chance. Não vou me opor a isso mais.
Estendemos o silêncio por minutos.
— Assistimos filme até tarde ontem, eu e Miguel.
Ana faz cara de nojo e levanta.
— Aceitar que vai voltar pra ele não é o mesmo que querer ouvir sua historinha de amor.
Reviro os olhos e aceito a mão que estende. Ana me puxa num abraço. Enfio o rosto em seus cabelos.
— Senti saudades.
— Também — digo baixinho.
— Quer fazer bolo?
— Quero me alienar com televisão o dia inteiro.
— Escolhe uma série pra maratonar. Vou fazer pipoca.
Ana me arrasta até o sofá da sala e some na cozinha. Ao invés de procurar a série no catálogo, encarei a janela de vidro e o céu nublado além dela.
Os tons de cinza atingiam os mais escuros com nuvens tão carregadas que iam além do usual, chegando ao levemente assombroso.
— Viu que tão investigando as empresas depois do papelão na carne?
Pego um cobertor – provavelmente esquecido por Guilherme mais cedo – e me enrolo. O abrir e fechar do armário me alcança.
— Mas era papel mesmo?
Panela pousa no fogão e o acionamento automático estala.
— Pelo visto, não literalmente. Só que podem ter vendido carne estragada e adulterado a data de vencimento.
— Os caras são podres.
Milho encontra a panela e chia. Segundos depois, Ana aparece.
— Nenhuma novidade.
Olho por cima do ombro.
— Tem salgadinho no armário.
Minha prima relanceia a cozinha assistindo e depois olha a televisão.
— Achei que tivesse te dado a missão de procurar uma série.
Fito o controle esquecido na mesa de centro e estalo a língua, voltando a olhar o céu.
Ana caminha para perto e pega o controle, pondo numa playlist de sertanejo.
Observo-a se afastar.
— Tá sofrendo?
— Não, tô apaixonada.
Rio com escárnio.
— Isso que é gênero versátil.
Matheus e Kauan tomam os alto-falantes e acompanho a cantoria que preenche a casa.
O som toca e desperta minha alma, não a ponto de ativá-la por completo, mas com a capacidade de fazer ela querer se mover.
Milho estoura preenchendo o ar com aroma de pipoca. Inspiro fundo e tento pensar em coisas boas.
Ana me passa uma tigela com salgadinhos misturados.
Pego primeiro um de batata chips. O meu paladar recebe bem o sabor.
O estourar da pipoca se torna mais intenso até ficar esparso. Coloco mais alguns salgadinhos de milho e queijo na boca quando Ana traz o balde de pipoca, logo depois vai em busca do refrigerante.
— Sabe o que não cairia mal?
Acompanho-a pondo um punhado de pipoca na boca.
— Hmm?
— Um date desses tomando danoninho.
Encho nossos copos de Coca-Cola e analiso a ideia.
— Gostei. Da próxima, a gente providencia.
Ana aponta um dedo, como se dissesse anotado e endireita a postura.
— André tá a um passo de evoluir pra categoria de namorado. — Demoro um instante para processar que ela se referia ao ficante e assinto, interessada. Os olhos dela brilham. — Quando não tô morrendo de amores por ele, a faculdade me mata...
Sorrio.
— Meu amigo tá morrendo pela faculdade também, ela é tão ruim quanto dizem ou é tudo drama de estudante, igual fazem em qualquer nível da vida acadêmica?
Ana dá de ombros.
— Com certeza deve parecer fácil pros meus professores — resmunga. — Só isso explica o amor deles por ler slides, passar mil exercícios e esperar que nossa cabecinha de gente que acabou de sair do ensino médio compreenda aquele negócio.
Franzo o cenho.
— Você saiu da faculdade há mais de um ano.
Ana finge surpresa.
— Foi? — Ela balança a cabeça. — Não é suficiente! A cada semana, são trezentos trabalhos para entregar na outra e não pense que é trabalho tipo pesquisar no google o que são biomas, descrever e apresentar bonitinho na sala. A gente dá tudo de si e pensa que ficou ótimo, numa escola de poderia ser pior.
Sorrio.
— Nossos trabalhos não eram ruins na escola.
Ela assente, mas continua:
— Quando os professores devolvem o trabalho, vem com um péssimo.
Fecho a boca.
— Preocupante. Acho que agora entendo um pouco de Rodrigo.
Ana fica curiosa pelo nome.
— E ele? Quando vou conhecer?
— Logo logo, espero. Ele é meio ocupado, mas a gente consegue se ver algumas vezes. Ontem mesmo, passeamos a tarde toda.
— Hmmm, e foi? — pergunta apoia o cotovelo no encosto e o queixo na mão.
Faço cara de quem acha toda a reação uma besteira e me concentro em comer.
— Sim, foi massa.
— Mas que sincronia. Eu saí com Dé também.
Levanto as sobrancelhas.
— Dé? — provoco.
Ana empurra meu pé.
— Tabacuda. — Rio baixinho e ela se ajeita no sofá. — Sim, a gente foi... pera aí, saísse com Rodrigo, mas tu não tava com Miguel ontem? Que incoerência é essa?
Inclino a cabeça para trás.
— Meu ex tava aqui quando cheguei e ficamos. — Ana faz uma careta incomodada. — Que foi?
— Ele vir pra cá é tipo surpreender pra não receber uma desculpa de hoje não.
Contraio o nariz
— Que exagero. Tá que foi surpreendente, mas achei legal ele ter vindo. Se Mi não desse a mínima pra essa relação, nem teria pensado em me ver.
— Sempre espere o pior dos caras.
— É isso que pensa quando olha pra Dézinho?
— Dé — corrige — e não quando olho, mas antes de conhecer.
Baixo o olhar, alisando a superfície fofinha do cobertor.
— Você sabe que eu e Miguel sempre nos consideramos.
— Sempre, vírgula, depois que ele cansou do besteirol infantil de ficar te arretando e trocou os olhos.
Cruzo os braços.
— Tu e Rodrigo nunca vão poder se cruzar, seria meu fim — constato.
Minha prima abre um sorrisão.
— Por quê? Aliás, o que ele acha disso tudo? Contou pra ele do namoro, né? Tu não consegue manter a boca fechada...
— Mais tolerante que você. Do tipo, "se quiser vai, se não quiser, não vai. Eu hein, o que tenho a ver com isso?" — Ana ri e já comenta ser um dos dela. — E bom em dar opinião, sem querer interferir. Diz o que pensa e pronto, me deixa tomar o partido.
— E por que não podemos nos conhecer?
— Porque iam tirar o dia pra falar mal de nós dois. Aposto.
Seu rosto expõe confusão.
— Ele nera imparcial?
— Ah, um pouco. Mas com certeza tem um partido.
Ela se inclina para pegar o copo na mesa de centro.
— Tomara que seja o meu.
Dou de ombros e volto assuntos.
— Não tomei a visita inesperada dele como algo ruim. De verdade, eu gostei. — Apesar do leve desentendimento inicial, era tudo uma questão de esclarecer pontos. — E muito menos acharia péssimo que ele tocasse a campainha agora.
A expressão de Ana escancara o descontentamento.
— Ah, mas eeeu vindo aqui odiou de cara!
Adoto o cinismo na expressão.
— Nunca fiz isso e se fiz, foi com razão.
Ana zomba e comemos em silêncio por instantes. Lá fora, a chuva recomeça com força total. Pela janela aberta, o vento traz gotículas quase invisíveis.
— Já plantaram tio Lê? — procura saber baixinho.
Nego com um menear e trazendo o copo à boca. Observo as bolhas de gás subindo e estourando, então conto:
— Acho que mesmo sem definir nada, estamos esperando o momento certo.
Principalmente para minha mãe.
Ana assente devagar e fica pensativa.
— O livro ainda tá no primeiro plot.
Concordo com ela.
— Só espero que dê em alguma coisa.
Um suspiro baixo lhe escapa e entorno o líquido.
— Também.
A bebida desce gelado com o gás esquentando o caminho um pouco, parecia espumar no estômago agora.
Um avião sobrevoa as proximidades soando como se fosse capaz de fazer a terra tremer.
— E sua jornada teatral?
Solto o ar.
— Dar certo pros meus sims conta?
Ela se diverte.
— Ah, já tá na hora de lançarem essa expansão no quatro.
— Não custa sonhar. — Solto o ar. — Mas tá indo, tenho conhecido gente do ramo. É importante ter contatos...
Pigarreio quando a voz ameaça falhar. Meu pai havia dito aquilo, um dia antes de tudo acontecer e também disse tantas coisas... seria possível que ele já se sentisse ameaçado e por isso preparava o terreno para uma possível mudança de corrente?
Afasto o pensamento da zona perigosa e foco em Ana. Meus ouvidos tinham bloqueado sua voz quando me distanciar para pensar nele.
— ... aí eles já tem essa ideia de me deixar virar sozinha, como se a vida inteira eu tivesse me criado. Super independente.
Ela provavelmente falava dos pais.
— Pois é, complicado.
Ana estreita os olhos.
— Tu nem ouviu, né?
Mordo a língua e coloco um sorriso.
— Entendi, teus pais tão querendo te colocar pra fazer tudo só.
Ela me olha desconfiada, mas assente e prossegue:
— Isso aí. Ontem eu ainda esperava mainha dizer pro médico o que eu tava sentia e hoje tenho que aprender a chegar no consultório, dar os documentos e essas coisas? Eu ainda pego quem botou essa ideia na cabeça deles.
— Ana. — Pauso para ter toda sua atenção. — A gente já vai fazer vinte anos. Meio que passou da hora de aprender a se virar.
Seu semblante expõe o transtorno interno.
— Grande coisa. Eles querem me abandonar, nem ligariam se eu mudasse pra bem longe.
— Acho que tá sendo dramática.
— Eu jamais faria uma coisa dessas pra uma filha minha! — Estreito os olhos e ela cruza os braços. — Se eu quiser um bebê, é claro. Mas levaria aonde fosse.
De nós duas, Ana era a mais provável a ficar para titia. Ela gostava de farra e curtir a vida, pensar em começar uma família só viria lá na frente, se viesse. Enquanto eu me espelhava nos meus pais, crescer com eles me fazia desejar um pouco do mesmo e era aquilo que enxergava em Miguel. Esse vislumbre de futuro.
Volto o foco para o céu nublado. Só esperava não ter o mesmo desfecho.
Observo minha prima escolher tipo de salgadinho. Mesmo se não tivesse filhos, ganharia um sendo madrinha do meu.
Cutucou seu joelho com o pé.
— Numa hipotética mudança de pensamento. Menino ou menina?
Ela sorri.
— Uma princesinha pra eu repassar a coroa.
Balanço a cabeça com um sorriso.
— Ainda bem que não esperei resposta diferente. — Abraço as pernas e descanso o queixo nos joelhos. — Mas e André? Iria pra frente a esse ponto?
Ana retorce o rosto em espanto.
— Não, porque eu não...
— Se caso.
Sua boca fecha para dar lugar à análise mental.
— Provavelmente. Ou não. Sei lá, a gente se conheceu há pouco tempo. Tem uma vida inteira ainda pra ele me magoar e eu largar.
Aperto o nariz.
— Como consegue se envolver com alguém já pensando no fim? Tu vive alguma coisa nesse tempo ou só espera a decepção?
Ana desvia o olhar para a televisão. A playlist já tinha tocado até sertanejo antigo e agora repetia o sucesso mais recente de Henrique e Juliano.
Mordo a boca para conter o sorriso.
— Tu ainda vai encontrar alguém que acabe essa tua vidinha de balada.
Ela cruza os dedos e fecha bem os olhos.
— Tomara que se chame emprego. — Ronco uma risada. Ela suspira. — Ai, Mari, vamos ver o que o futuro nos reserva.
Inclino a cabeça para trás e encaro o teto.
— Por causa desse ano, não aceito menos que uma filmografia poderosa como pedido de desculpas.
— Deus ouvindo isso e te chamando de mimada.
Dou de ombros.
— Era tu quem tava reclamando agorinha que os pais vão parar de fazer tudo por você.
Ela me chuta de leve.
— Nunca mais fale comigo.
Reviro os olhos e afundo no sofá, voltando a comer.
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Destinados
RomansaMariana Bragança uma recifense aspirante a atriz volta do intercâmbio de um ano em Boston, no estado de Massachussets e finalmente corre em busca da tão sonhada carreira. Em casa, ela precisa retomar a vida e em meio a uma trama de reencontros e per...