Capítulo 10

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  Desperto na maciez do meu colchão ouvindo o vai e vem dos saltos no corredor.
  Pelo menos minha mãe acordara enérgica. O horário mostrava que Guilherme já estava há duas horas no colégio.
  O quarto estava mais escuro que o usual. Imagino que seja um dia chuvoso do tipo que sempre ocorre antes do inverno chegar. Forte e plantando o caos na Veneza brasileira, ou Atlantis, tanto fazia qualquer um.
  Alcanço o controle e desligo o ar-condicionado, o som da eletricidade é sugado com um baixo apito como se nunca tivesse existido. Ouço os ruídos de fora encarando o teto branco em silêncio.
  Minha mãe detinha toda a coragem para se mover que eu estava ontem e perdi hoje.
  Procuro algo em meu ser e me deparo com um estranho vazio. Nenhuma neutralidade, nenhuma emoção, apenas um abismo escuro e o nada.
  Lentamente, meu corpo se deixa despencar e escolho não me segurar.
  Quem sabe funcionasse hoje, deixar que os outros produzissem enquanto eu ficava ali apenas existindo. Murcha e morta.
  Ninguém poderia me cobrar, nada teria a oferecer.
  Viro de lado e me encolho sob o edredom.
  E eu esperava que ninguém viesse me procurar.
  Desativo a internet do celular e fecho os olhos.
  Igual à mudança de tempo, o domingo foi ensolarado e resultou numa segunda fria e cinza.
  Os passos e vozes no corredor ficam mais claros. O mundo lá fora continuava a girar.
  Abro os olhos, cravando a atenção numa tomada qualquer.
  — ... ainda tô presa na burocracia com os advogados... muito documento — dizia minha mãe. — Tem como falar com mainha? — aposto que pede ao meu tio. — Não quero ninguém aqui e ela... sim, exatamente.
  Eu devia levantar e fazer algo. Qualquer coisa.
  Ao mesmo tempo, ser esquecida não parecia uma má ideia.
  Mas a sua vida só depende de você, correr por ela é sua obrigação, penso e tento erguer um braço.
  Se moveu um centímetro, foi muito. Meu corpo não sai do lugar. Volto a fechar os olhos.
  Terei anos pela frente para fazer isso.
  Seu pai não teve.
  Pressiono as têmporas com um chiado e aperto as pálpebras.
  — Depois te ligo, tem outro número ligando. — Ela troca despedidas com tio Claudio e atende a outra ligação. — Alô? É ela, quem tá falando?
  A voz dela diminui e abafa quando provavelmente fecha a porta de seu quarto. Envolvo-me no completo silêncio.
  Agradeço por meu corpo não estar sentindo a fome que deveria, precisaria de esforço demais para me jogar no chão e arrastar até a cozinha feito uma minhoca.
  Penso naqueles animais minúsculos e faço do edredom minha própria terra, deixando o cobertor me engolir.
  Aquilo era a paz?
  Procuro a resposta e logo descubro que não. Certamente, nada parecido com paz.
  A porta do quarto da minha mãe abre com força e seus passos cruzam o corredor rapidamente.
  Em segundos ela batia na porta do meu quarto, se esperava que estivesse dormindo, não estava nem aí. Solto o ar devagar.
  Nem um pouco lembrasse a paz.
  A minha mãe gira a maçaneta e se aventura para dentro do cômodo, parando ao pé da cama.
  — Mari? — balança meu tornozelo — Mariana? — insiste. — Mariana, acorda.
  Nenhum som me escapa quando tento murmurar uma resposta e ela insiste por uns segundos, até que desço o cobertor ao pescoço.
  Algo em mim pula de alerta quando encontro seus olhos vermelhos, assombrados.
  — Captaram um suspeito nas câmeras do estacionamento — conta. — O exame na garrafa d'água também deu alterado, estão conectando as duas coisas... — ela vomita palavras e mais palavras sobre o ponto atado na investigação. — Vão colocar ele nos procurados.
  Pisco, quase inexpressiva.
  — Tá bem? — pergunta, franzindo o cenho e se apruma para me analisar. Assinto. — Glória vai faltar hoje. Preciso ir na delegacia, vai comigo?
  Nego com a cabeça.
  Por que havia levado tanto para conseguirem aquilo?
  Ela ergue o olhar para o ar-condicionado e murmura uma indagação de por que está desligado. Por fim, se inclina para perto e checa a temperatura do meu rosto com o dorso da mão.
  Sua expressão contrariada diz mais sobre eu não ter adoecido do que  meu próprio corpo.
  Minha mãe fica de pé, mantendo o olhar em mim.
  — Quer que eu chame alguém pra ficar com você? — Recuso com um movimento de cabeça outra vez. — Ok... — solta e olha ao redor, então se aproxima para depositar um beijo na minha testa. — Volto mais tarde, seu irmão vai da escola pra casa do coleguinha. Qualquer coisa, ligue. Vá descansar, passeou demais esse fim de semana.
  Dou um breve aceno e fecho os olhos. Aliviada por ela decidir que meu humor, ou a falta delez se devesse à exaustão de ter saído o fim de semana inteiro.
  Mal prestei atenção quando ela voltou para deixar uma bandeja de comida e água na mesa de cabeceira.
  Os alimentos frescos fechados e embalados em plástico filme.
  Legal.
  Pisco, despertando horas mais tarde com passos apressados e barulhentos pisando no meu quarto.
  Meu corpo gela quando não reconheço os trejeitos.
  A cabeça passa a latejar com os batimentos cardíacos ecoando.
  — Acorda pra vida, Mari.
  Alívio após o susto me toma, mas meu corpo não descongela por completo.
  Descubro o meu rosto assombrado e encaro Ana, sentindo a boca seca.
  A voz falha quando abro para questionar.
  — O que aconteceu? — pergunta. — Tia Lu me pediu pra vir.
  Contraio os lábios e pensar que ela me deixaria dormir o dia todo em paz... nunca mais subestimar Luana Bragança, anotado.
  Consigo estender a mão para a garrafa d'água. Ana rouba o objeto de mim e se prontifica de rodar a tampa antes de me entregar.
  Aceito e levo a borda curva à boca. Meus lábios recebem o líquido como chuva no deserto.
  — Qual o problema? Foi aquele macho?
  Estreito os olhos, confusa.
  — Ãhn? — minha voz soa rouca. O som me parece estranho apenas por sair. — Rodrigo nunca me fez mal.
  — Que Rodrigo, menina? Tô falando do nojento do seu ex mesmo. Eu disse a você pra ficar longe dele...
  Balanço a cabeça. O meu corpo exige muito mais esforço para que consiga me sentar do que o normal. Meu braço estala com o movimento e recosto na cabeceira, apoiando o fundo da garrafa no colo.
  — Eu e Miguel estamos bem. Só acordei assim e queria ficar só.
  Ana me fita como se eu tivesse ganhado mais duas cabeças.
  Bem que eu queria, seria mais fácil ter uma para pensar, outra para descansar e outra para reclamar. Só assim dividia a loucura entre as três.
  — Se tia Lu ter me pedido pra fazer companhia não foi o bastante, essa história de ficar só certamente é.
  Bufo, desviando o olhar dela.
  — Nunca quis um dia de paz? Longe de tudo e todos?
  Ela franze as sobrancelhas, mas assente.
  — Aí é que tá o problema, Mari. Eu já. Você nunca. — Minha prima ocupa um lugar na minha frente e apoia a mão no meu joelho sobre o edredom. O semblante dela fica sombrio. — É por causa do seu pai? —Dou de ombros, nem eu sabia mais. — Por quê? Tia disse que tu tava lidando tão bem, melhor do que ela.
  E eu também quero ser atriz.
  — Alguns dias são melhores que outros — digo, apenas.
  Minha prima analisa a bandeja e se alguma para desembalar as comidas.
  Ela estende o biscoito de aveia.
  — Engole.
  Torço o nariz para o petisco, mas obedeço Ana sabendo que ela não sairia do meu pé até me ver mastigar e engolir.
  — De qualquer jeito, não tem como fugir disso. Ainda mais agora que já aconteceu. Ninguém é Raven pra prevenir as coisas. — Ela faz uma pausa enquanto retira o plástico de um sanduíche. — Entendo e respeito seu luto, mas jamais vou deixar que se transforme em pó por causa dele. Tem um mundo lindo lá fora... por mais que eu odeie a ideia, tem seu boyzinho pensando na próxima cartada pra te conquistar. Tá fazendo um dia lindo e eu devia ter batido a janela, mas vai molhar tudo aqui, então, boa desculpa pra irmos na sala...
  — Tá chovendo real? — murmuro.
  Minha prima confirma com um menear.
  — "Raincife" já tá nos assuntos mais comentados daqui.
  Mordo a boca. Ana exibe os dentes e seus olhos brilham.
  — É um sorrisinho que tô vendo?
  Viro a cara. Ana estende o sanduíche.
  — Tá explicado, é fome. Já viu alguém com fome e feliz?
  Estalo a língua e pego a comida, apenas porque meu estômago pedia mais depois do biscoito.
  — Mainha contou que pegaram alguém nas câmeras e... — engulo em seco — drogaram a água dele. A gente sabia que algo de errado havia assim que o laudo do IML saiu, mas não de onde veio. O assassino entregou deu aquela garrafa pra ele. Acha que pode estar ligado a algum vendedor dali perto?
  — Ele pode ter comprado a qualquer pessoa.
  — Não no mesmo dia que cortaram os freios do carro.
  — Como sabe se a água foi no mesmo dia? — indaga.
  — Estive no escritório um dia antes, meu pai bebeu água na minha frente do próprio bebedouro.
  Ela xinga baixinho.
  Bato as migalhas dos dedos e bebo água.
  — Seja lá o que aconteceu, é um péssimo dia pra ficar se preocupando com isso.
  Arqueio as sobrancelhas.
  — Com por que meu pai morreu?
  Ela acena.
  — Exatamente. Vamos ocupar a mente com outro problema. — Decide. — Mas antes disso...
  Minha prima separa as cortinas e abre uma brecha da janela. A brisa fria entra por onde consegue.
  Fecho os olhos e deixo o ar escapar pela boca.
  O tempo chuvoso ajudou a conservar a baixa temperatura mesmo com o ar-condicionado desligado.
  — Sei que eu não devia estar metendo meu nariz e dando palpites na sua vida amorosa. Ainda lembro de ter perguntado se iria atrás dele e depois reclamei, mas só fiz isso porque pensei direitinho e não quis voltar a te ver triste por causa dele.
  — Entendo, só queria me proteger, não era de sua maldade.
  — Não é meu namorado, minha vida, nem nada meu. Eu disse que pisaria fora e vou, se significa que a gente só discute sobre a mesma coisa. — Ana pega minha mão. — Prometo que vou me calar sobre ele, mas se ele te magoar, também estarei aqui.
  — Obrigada — balbucio e tento sorrir.
  — Se ele te faz bem como diz, então vai. Aproveita a chance. Não vou me opor a isso mais.
  Estendemos o silêncio por minutos.
  — Assistimos filme até tarde ontem, eu e Miguel.
  Ana faz cara de nojo e levanta.
  — Aceitar que vai voltar pra ele não é o mesmo que querer ouvir sua historinha de amor.
  Reviro os olhos e aceito a mão que estende. Ana me puxa num abraço. Enfio o rosto em seus cabelos.
  — Senti saudades.
  — Também — digo baixinho.
  — Quer fazer bolo?
  — Quero me alienar com televisão o dia inteiro.
  — Escolhe uma série pra maratonar. Vou fazer pipoca.
  Ana me arrasta até o sofá da sala e some na cozinha. Ao invés de procurar a série no catálogo, encarei a janela de vidro e o céu nublado além dela.
  Os tons de cinza atingiam os mais escuros com nuvens tão carregadas que iam além do usual, chegando ao levemente assombroso.
  — Viu que tão investigando as empresas depois do papelão na carne?
  Pego um cobertor – provavelmente esquecido por Guilherme mais cedo – e me enrolo. O abrir e fechar do armário me alcança.
  — Mas era papel mesmo?
  Panela pousa no fogão e o acionamento automático estala.
  — Pelo visto, não literalmente. Só que podem ter vendido carne estragada e adulterado a data de vencimento.
  — Os caras são podres.
  Milho encontra a panela e chia. Segundos depois, Ana aparece.
  — Nenhuma novidade.
  Olho por cima do ombro.
  — Tem salgadinho no armário.
  Minha prima relanceia a cozinha assistindo e depois olha a televisão.
  — Achei que tivesse te dado a missão de procurar uma série.
  Fito o controle esquecido na mesa de centro e estalo a língua, voltando a olhar o céu.
  Ana caminha para perto e pega o controle, pondo numa playlist de sertanejo.
  Observo-a se afastar.
  — Tá sofrendo?
  — Não, tô apaixonada.
  Rio com escárnio.
  — Isso que é gênero versátil.
  Matheus e Kauan tomam os alto-falantes e acompanho a cantoria que preenche a casa.
  O som toca e desperta minha alma, não a ponto de ativá-la por completo, mas com a capacidade de fazer ela querer se mover.
  Milho estoura preenchendo o ar com aroma de pipoca. Inspiro fundo e tento pensar em coisas boas.
  Ana me passa uma tigela com salgadinhos misturados.
  Pego primeiro um de batata chips. O meu paladar recebe bem o sabor.
  O estourar da pipoca se torna mais intenso até ficar esparso. Coloco mais alguns salgadinhos de milho e queijo na boca quando Ana traz o balde de pipoca, logo depois vai em busca do refrigerante.
  — Sabe o que não cairia mal?
  Acompanho-a pondo um punhado de pipoca na boca.
  — Hmm?
  — Um date desses tomando danoninho.
  Encho nossos copos de Coca-Cola e analiso a ideia.
  — Gostei. Da próxima, a gente providencia.
  Ana aponta um dedo, como se dissesse anotado e endireita a postura.
  — André tá a um passo de evoluir pra categoria de namorado. — Demoro um instante para processar que ela se referia ao ficante e assinto, interessada. Os olhos dela brilham. — Quando não tô morrendo de amores por ele, a faculdade me mata...
  Sorrio.
  — Meu amigo tá morrendo pela faculdade também, ela é tão ruim quanto dizem ou é tudo drama de estudante, igual fazem em qualquer nível da vida acadêmica?
  Ana dá de ombros.
  — Com certeza deve parecer fácil pros meus professores — resmunga. — Só isso explica o amor deles por ler slides, passar mil exercícios e esperar que nossa cabecinha de gente que acabou de sair do ensino médio compreenda aquele negócio.
  Franzo o cenho.
  — Você saiu da faculdade há mais de um ano.
  Ana finge surpresa.
  — Foi? — Ela balança a cabeça. — Não é suficiente! A cada semana, são trezentos trabalhos para entregar na outra e não pense que é trabalho tipo pesquisar no google o que são biomas, descrever e apresentar bonitinho na sala. A gente dá tudo de si e pensa que ficou ótimo, numa escola de poderia ser pior.
  Sorrio.
  — Nossos trabalhos não eram ruins na escola.
  Ela assente, mas continua:
  — Quando os professores devolvem o trabalho, vem com um péssimo.
  Fecho a boca.
  — Preocupante. Acho que agora entendo um pouco de Rodrigo.
  Ana fica curiosa pelo nome.
  — E ele? Quando vou conhecer?
  — Logo logo, espero. Ele é meio ocupado, mas a gente consegue se ver algumas vezes. Ontem mesmo, passeamos a tarde toda.
  — Hmmm, e foi? — pergunta apoia o cotovelo no encosto e o queixo na mão.
  Faço cara de quem acha toda a reação uma besteira e me concentro em comer.
  — Sim, foi massa.
  — Mas que sincronia. Eu saí com Dé também.
  Levanto as sobrancelhas.
  — Dé? — provoco.
  Ana empurra meu pé.
  — Tabacuda. — Rio baixinho e ela se ajeita no sofá. — Sim, a gente foi... pera aí, saísse com Rodrigo, mas tu não tava com Miguel ontem? Que incoerência é essa?
  Inclino a cabeça para trás.
  — Meu ex tava aqui quando cheguei e ficamos. — Ana faz uma careta incomodada. — Que foi?
  — Ele vir pra cá é tipo surpreender pra não receber uma desculpa de hoje não.
  Contraio o nariz
  — Que exagero. Tá que foi surpreendente, mas achei legal ele ter vindo. Se Mi não desse a mínima pra essa relação, nem teria pensado em me ver.
  — Sempre espere o pior dos caras.
  — É isso que pensa quando olha pra Dézinho?
  — — corrige — e não quando olho, mas antes de conhecer.
  Baixo o olhar, alisando a superfície fofinha do cobertor.
  — Você sabe que eu e Miguel sempre nos consideramos.
  — Sempre, vírgula, depois que ele cansou do besteirol infantil de ficar te arretando e trocou os olhos.
  Cruzo os braços.
  — Tu e Rodrigo nunca vão poder se cruzar, seria meu fim — constato.
  Minha prima abre um sorrisão.
  — Por quê? Aliás, o que ele acha disso tudo? Contou pra ele do namoro, né? Tu não consegue manter a boca fechada...
  — Mais tolerante que você. Do tipo, "se quiser vai, se não quiser, não vai. Eu hein, o que tenho a ver com isso?" — Ana ri e já comenta ser um dos dela. — E bom em dar opinião, sem querer interferir. Diz o que pensa e pronto, me deixa tomar o partido.
  — E por que não podemos nos conhecer?
  — Porque iam tirar o dia pra falar mal de nós dois. Aposto.
  Seu rosto expõe confusão.
  — Ele nera imparcial?
  — Ah, um pouco. Mas com certeza tem um partido.
  Ela se inclina para pegar o copo na mesa de centro.
  — Tomara que seja o meu.
  Dou de ombros e volto assuntos.
  — Não tomei a visita inesperada dele como algo ruim. De verdade, eu gostei. — Apesar do leve desentendimento inicial, era tudo uma questão de esclarecer pontos. — E muito menos acharia péssimo que ele tocasse a campainha agora.
  A expressão de Ana escancara o descontentamento.
  — Ah, mas eeeu vindo aqui odiou de cara!
  Adoto o cinismo na expressão.
  — Nunca fiz isso e se fiz, foi com razão.
  Ana zomba e comemos em silêncio por instantes. Lá fora, a chuva recomeça com força total. Pela janela aberta, o vento traz gotículas quase invisíveis.
  — Já plantaram tio Lê? — procura saber baixinho.
  Nego com um menear e trazendo o copo à boca. Observo as bolhas de gás subindo e estourando, então conto:
  — Acho que mesmo sem definir nada, estamos esperando o momento certo.
  Principalmente para minha mãe.
  Ana assente devagar e fica pensativa.
  — O livro ainda tá no primeiro plot.
  Concordo com ela.
  — Só espero que dê em alguma coisa.
  Um suspiro baixo lhe escapa e entorno o líquido.
  — Também.
  A bebida desce gelado com o gás esquentando o caminho um pouco, parecia espumar no estômago agora.
  Um avião sobrevoa as proximidades soando como se fosse capaz de fazer a terra tremer.
  — E sua jornada teatral?
  Solto o ar.
  — Dar certo pros meus sims conta?
  Ela se diverte.
  — Ah, já tá na hora de lançarem essa expansão no quatro.
  — Não custa sonhar. — Solto o ar. — Mas tá indo, tenho conhecido gente do ramo. É importante ter contatos...
  Pigarreio quando a voz ameaça falhar. Meu pai havia dito aquilo, um dia antes de tudo acontecer e também disse tantas coisas... seria possível que ele já se sentisse ameaçado e por isso preparava o terreno para uma possível mudança de corrente?
  Afasto o pensamento da zona perigosa e foco em Ana. Meus ouvidos tinham bloqueado sua voz quando me distanciar para pensar nele.
  — ... aí eles já tem essa ideia de me deixar virar sozinha, como se a vida inteira eu tivesse me criado. Super independente.
  Ela provavelmente falava dos pais.
  — Pois é, complicado.
  Ana estreita os olhos.
  — Tu nem ouviu, né?
  Mordo a língua e coloco um sorriso.
  — Entendi, teus pais tão querendo te colocar pra fazer tudo só.
  Ela me olha desconfiada, mas assente e prossegue:
  — Isso aí. Ontem eu ainda esperava mainha dizer pro médico o que eu tava sentia e hoje tenho que aprender a chegar no consultório, dar os documentos e essas coisas? Eu ainda pego quem botou essa ideia na cabeça deles.
  — Ana. — Pauso para ter toda sua atenção. — A gente já vai fazer vinte anos. Meio que passou da hora de aprender a se virar.
  Seu semblante expõe o transtorno interno.
  — Grande coisa. Eles querem me abandonar, nem ligariam se eu mudasse pra bem longe.
  — Acho que tá sendo dramática.
  — Eu jamais faria uma coisa dessas pra uma filha minha! — Estreito os olhos e ela cruza os braços. — Se eu quiser um bebê, é claro. Mas levaria aonde fosse.
  De nós duas, Ana era a mais provável a ficar para titia. Ela gostava de farra e curtir a vida, pensar em começar uma família só viria lá na frente, se viesse. Enquanto eu me espelhava nos meus pais, crescer com eles me fazia desejar um pouco do mesmo e era aquilo que enxergava em Miguel. Esse vislumbre de futuro.
  Volto o foco para o céu nublado. Só esperava não ter o mesmo desfecho.
  Observo minha prima escolher tipo de salgadinho. Mesmo se não tivesse filhos, ganharia um sendo madrinha do meu.
  Cutucou seu joelho com o pé.
  — Numa hipotética mudança de pensamento. Menino ou menina?
  Ela sorri.
  — Uma princesinha pra eu repassar a coroa.
  Balanço a cabeça com um sorriso.
  — Ainda bem que não esperei resposta diferente. — Abraço as pernas e descanso o queixo nos joelhos. — Mas e André? Iria pra frente a esse ponto?
  Ana retorce o rosto em espanto.
  — Não, porque eu não...
  — Se caso.
  Sua boca fecha para dar lugar à análise mental.
  — Provavelmente. Ou não. Sei lá, a gente se conheceu há pouco tempo. Tem uma vida inteira ainda pra ele me magoar e eu largar.
  Aperto o nariz.
  — Como consegue se envolver com alguém já pensando no fim? Tu vive alguma coisa nesse tempo ou só espera a decepção?
  Ana desvia o olhar para a televisão. A playlist já tinha tocado até sertanejo antigo e agora repetia o sucesso mais recente de Henrique e Juliano.
  Mordo a boca para conter o sorriso.
  — Tu ainda vai encontrar alguém que acabe essa tua vidinha de balada.
  Ela cruza os dedos e fecha bem os olhos.
  — Tomara que se chame emprego. — Ronco uma risada. Ela suspira. — Ai, Mari, vamos ver o que o futuro nos reserva.
  Inclino a cabeça para trás e encaro o teto.
  — Por causa desse ano, não aceito menos que uma filmografia poderosa como pedido de desculpas.
  — Deus ouvindo isso e te chamando de mimada.
  Dou de ombros.
  — Era tu quem tava reclamando agorinha que os pais vão parar de fazer tudo por você.
  Ela me chuta de leve.
  — Nunca mais fale comigo.
  Reviro os olhos e afundo no sofá, voltando a comer.

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