Capítulo 6

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  Sabotado.
  O carro do meu pai havia sido sabotado. Freios cortados.
  Fazia sentido que ele não tivesse muito o que fazer ao perder o controle da direção com tamanha facilidade.
  Pior, fazia sentido que sua alteração no organismo pela tal substância ilícita ingerida tivesse causado a perda de controle.
  Mas tanto não se encaixava. Ainda mais agora, era claro para todos que meu pai jamais cortaria os freios do próprio carro. E óbvio para mim que Leandro jamais usaria qualquer droga.
  Só restava a sabotagem como conclusão, mas quem fizera aquilo?
  O delegado definiu que abriria a investigação para rastrear o responsável, solicitando nossa ajuda para listar os últimos passos dele e fornecer imagens das câmeras na empresa. Visto que era o último lugar por onde passou.
  Eu não estava nem um pouquinho bem no táxi da delegacia para casa. Minha mãe muito menos.

  — Mãe... — minha voz falha. — Como?
  — Eu não sei. — Ela levanta as mãos trêmulas. — Eu não sei, não sei, não sei.
  Minha mãe levanta cobre a boca com as mãos e exala alto, fechando os olhos. Suas mãos atam e sua boca balbucia uma oração.
  — A senhora precisa de uma água?
  Levo mais um segundo para perceber que o taxista falava comigo. Balanço a cabeça devagar e aumento o vigor, me virando para a janela.
  Como alguém tinha a coragem? Que mal meu pai teria feito a qualquer pessoa para culminar em tamanha atrocidade?
  Só voltamos a conversar em casa. Vejo o carro da minha mãe esquecido na garagem. Se há dias ela já não tinha mais coragem de tocar no volante, agora que se recusaria a dirigir até fazer uma boa revisão antes.
  Passo direto pela sala, seguindo-a para o quarto e ignorando meu irmão.
  — Onde foram? O que descobriram?
  Fecho a porta na cara dele e tranco.
  — Acha que ele usou a droga que deu no exame?
  Minha mãe se vira com tudo para mim. Uma expressão incrédula no semblante.
  — Era seu pai, Mariana — solta em tom de repreensão. — Na nossa frente ou longe, ele nunca, nunca, faria algo do tipo e ainda por cima dirigir depois! Se esqueceu de quem estamos falando?
  Balanço a cabeça e murmuro:
  — Só considerei que pessoas cometem deslizes.
  — Nunca seu pai — pontua de novo.
  Arrasto os pés e jogo o corpo ao sentar na cama. O colchão me faz pular, relanceio sua extensão vazia imaginando meu pai encostado na cabeceira e assistindo televisão.
  A imagem aperta meu coração e solto para longe.
  Eu jamais iria vê-lo imagens tão reconfortantes e comuns iguais àquela. Quando viesse buscar conselhos ou tirar dúvidas, ao invés de encontrar meu pai navegando na internet ou assistindo ao telejornal, veria apenas minha mãe.
  Ela ocupa o pé da cama e abre uma caixa cheia de papéis.
  — Amanhã vou na empresa com os investigadores. — Ela bate com uma mão na testa. — Mas também tinha marcado uma reunião com o advogado.
  — Posso ir no seu lugar — me prontifico.
  Ela remexe a caixa.
  — Onde seu pai deixava a cópia da chave do escritório? — pergunta mais para si.
  — Já procurou na última gaveta de documentos dentro do closet?
  Seu indicador sacode no ar conforme se dá conta.
  — Vou olhar... — ela se vira e me observa. — Tu já decidiu o que quer da vida, Mariana?
  Mordo a boca involuntariamente.
  — Tô pesquisando os cursos.
  A voz abafada de Guilherme soa do outro lado da porta:
  — Não tá não! — meu irmão bate na porta com insistência. — Deixa eu entrar.
  — É feio escutar conversa dos outros — repreendo.
  — Como assim não? Voltou há semanas, dias que passou em casa. Quando vai começar?
  — Eu tinha começado — inicio, falando até para meu irmão. — Mas tudo isso aconteceu e eu dei uma pausa na busca.
  Minha mãe abre a porta para ele e dirige as palavras a mim:
  — Não adie seu futuro por isto.
  — Quero descobrir o que aconteceu tanto quanto você.
  Ela apoia as mãos na cintura, batendo um pé no chão. O filho passa pela mãe e senta ao meu lado.
  — Sem esquecer de que a polícia vai liderar tudo e nossa ajuda é mínima. Vou remarcar a reunião e acompanhar os investigadores amanhã. Você vai ficar em casa e buscar um rumo na vida.
  Solto o ar, dando um cascudo no couro cabeludo de Guilherme. Ele reclama e balança as mãos acima da cabeça para escapar da dor.
  Em meus pensamentos grito incontáveis xingamentos contra ele.
  — Se eu ficar em casa, não vou fazer nada — alego. — Indo com você, terão dois olhos a mais.
  — Acontece que você tem mais o que fazer.
  Bufo e marcho para fora. Ela inicia uma conversa com meu irmão, contornando toda a história por trás da sabotagem para contar a ele que o acidente seria investigado.
  Paro no corredor e tiro o celular do bolso.
  Observo a conversa com Ana, restrita a poucas trocas de mensagens. Mal dirigimos a palavra à outra desde o funeral. Tanto pelo fato de eu estar menos ativa na internet, como por nossa pequena e estranha discussão.
  Eu não me arrependi das palavras. Tudo era verdade. Meu pai e Miguel se davam bem. O jovem fez o mínimo indo lá prestar condolências.
  Abro outra conversa e resgato um arquivo, esquecido nas mensagens antigas.
  Não deu tempo de sair correndo da conversa quando fui pega de surpresa pela mudança no status para "digitando".
  Como se sente?
  Adentro o meu quarto e me jogo na cadeira, considerando a resposta mais sincera para dar a Rodrigo.
  A pessoa mais abandonada do mundo.
  Eu já poderia incluir pressionada? Penso fazendo cara feia para a parede que me separava cômodos da minha mãe
  Tu não foi exatamente abandonada.
  Respiro fundo. Não, nem perto disso.
  Meu pai foi arrancado de mim. Junto a sonhos e tudo.
  Ele manda carinhas de análise.
  Ainda tá viva. Não tem o pai, mas sonho a gente nunca perde.
  Abro no arquivo e dou uma lida rápida nas cenas. Retorno para a conversa.
  Tá ocupado essa noite?
  Desacumulando matéria. Qual o problema?
  Nada. Desliga o celular e vai estudar. Tchau.
  Largo o aparelho. Teria que contar com meu irmão para representar o outro personagem.
  A minha mãe surge no vão da porta com o notebook em mãos. Uma expressão meio confusa no rosto.
  — Por acaso seu pai comentou sobre demitir o gestor de qualidade contigo?
  Nego com a cabeça e dou de ombros.
  — Ele mal falava sobre os rumos da empresa. Achei que esses assuntos fossem seus.
  Ela encosta na parede e mexe no mouse.
  — Pelo jeito, não tão nossos. Leandro preparava o corte de Josias semanas antes do acidente.
  Franzo o cenho.
  — Quando ele tava cheio de coisa pra fazer. Passei um dia inteiro montando planilhas e ajeitando documento pra ele.
  Se eu procurasse bem fundo, ainda poderia sentir o cansaço nas mãos decorrente do trabalho sem fim.
  O nariz dela franze.
  — Estranho.
  Josias e meu pai tinham uma boa relação de anos, ele tomar tal decisão sem nem consultar minha mãe.
  Checo meu celular como se esperasse a mensagem de alguém.
  É, era de se preocupar que as coisas pudessem estar mudando.

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