Capítulo 2

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Os jantares são sempre iguais. Hugo come como se ainda estivesse em uma de suas formas animais. Mari conversa educadamente com todos, fingindo não prestar atenção no ignis mais relutante que já conheci: Vinícius. Talvez, de todas as pessoas neste lugar, esse garoto mal humorado seja quem mais me entende. Mesmo podendo manipular labaredas gigantescas de fogo, ele evita com todas as forças. Os outros não entendem porque eles não conhecem a história completa. Talvez um dia ele conte a Mari, porque eles claramente estão apaixonados. Ele não admite nem em caso de vida ou morte. Ela é tímida demais para fazer algo além de sorrir.

No meio de tudo isso eu como em silêncio, esperando a paz que se estabelece após o jantar.

Claro que, esta semana meu silêncio não foi aceito em nossa mesa. Todos querem saber detalhes da futura missão.

— E porque a Sofia vai com você? —   Vinícius pergunta pela terceira vez apenas nos últimos quinze minutos.

— Porque eu sou a única familiarizada com o conceito hackear. — respondo antes que Hugo comece um discurso sobre como eu sou essencial, que terminaria com a mesma pergunta novamente.

— Essa história está muito estranha. Primeiro Lidya decide mandar Hugo em uma missão ofensiva sozinho. Nosso Pecus, sem proteção lá fora... não faz o estilo dela. E agora você, que não pode nem acender uma vela, vai acompanhá-lo. Ela está oficialmente enlouquecendo. — Vinícius argumenta e preciso concordar com ele. Não é normal enviar jovens como nós a missões importantes.

— Você precisa parar com essas teorias de conspiração, está ficando absurdo! — Hugo defende, mas sei que no fundo ele está incomodado. Ele jamais me escolheria para uma missão ofensiva.

Todos se calam quando a líder da comunidade Lydia, outra ignis, se levanta para dar os avisos de praxe.

Preciso confessar que, no momento que fui informada que acompanharia Hugo, fiquei preocupada. Vinícius sempre manteve um pé atrás quando a assunto são os nossos líderes. Tudo começa pela forma como eles são escolhidos: indicados pelo conselho que fica na capital, que não conhece realmente a pessoa que indicaram há alguns anos. Lidya parece ser a pessoa mais agradável do mundo, mas sempre tratou Vinícius e eu como se não passássemos de incômodos passageiros. Ela é gentil apenas quando a convém.

Hugo nunca percebeu essas coisas. Ele não é idiota ou algo assim, apenas mantém a cabeça em assuntos mais agradáveis para se preocupar com os conflitos internos constantes da nossa comunidade.

De qualquer modo, penso que o que mais incomoda Vinícius é a forma como as habilidades são super valorizadas. Ele chegou aqui apenas há dois anos. Veio de outro grupo. Ele não fala sobre isso e nunca fui indelicada ao ponto de perguntar. Alguns meses fiquei curiosa e pesquisei um pouco na rede governamental. Apenas descobri que ele perdeu os pais quando ainda era bebê.

Esse é o motivo pelo qual acompanharei Hugo: eu tenho acesso a rede. O governo de Una acredita que não existe nada a esconder, então todos que tiverem interesse podem usufruir dos dados e acessar o que bem entender. São uns tolos alienados. Eles não devem se lembrar o poder que a tecnologia possuí. A nossa missão deve trazer isto a memória.

A verdade é que sou potencialmente a única ameaça. O mundo se decepcionou com a tecnologia, e hoje são raras as pessoas que possuem algum interesse em computadores e atualizações. Eu não tenho outra escolha, a herança dos meus antepassados é tudo que tenho de vantagem em relação a esses "super-heróis".

Muitos não imaginam que no passado as habilidades eram algo incomum, idealizado. Eles não sabem sobre os escritos antigos ou sobre as imagens que com o tempo se tornaram obsoletas, mas que antes motivavam milhares a permanecerem horas observando um conto se desenrolar. Eles nem sabem a origem dos nomes usados para cada habilidade. Não têm ideia de que era uma regra comum batizar novas espécies com palavras de uma língua há séculos morta.

Não somos uma nova espécie. Ainda somos humanos. Homo sapiens. O que nos distância daqueles descentes é uma simples alteração feita tempos atrás, que foi herdada até chegarmos aqui.

Com uma única exceção: eu.

É triste que ninguém se lembre do que nos tornou quem somos hoje, porque desta forma, como vamos evitar cometer os mesmos erros que nossos antepassados?

Lidya ainda está falando, e ela diz algo que chama minha atenção:

— Una, mais uma vez, não nos enviou os suprimentos prometidos para o fim da estação. Nosso jantar será servido graças a Mari. Vamos todos agradecer a quem merece: obrigada querida! — ela diz naquele constante tom de condescendência, encerrando os avisos por hoje.

Hugo me acompanha até meu alojamento. Tomei o antigo cômodo de depósito quando o celeiro foi finalizado. Este espaço é o único lugar onde me sinto a vontade. E não se compara com dividir os alojamentos coletivos destinados aos órfãos, mas que é ocupado apenas pelas crianças mais instáveis que os pais deixam de castigo nos dormitórios por qualquer descontrole.

Mortes prematuras são raras em nosso mundo. Isso é um mérito do nosso governo, o que me faz questionar se eles realmente estão negligenciando a entrega dos suprimentos. Não falo sobre nada disso com Hugo. É uma causa perdida. Sua lealdade está com Civitas, ele nunca suspeitaria do seu povo.

— Está com medo? — ele me pergunta, como sempre preocupado.

— Não sei. Preciso admitir que tudo isso realmente parece estranho. Mas, confio em você. E você confia neles. Então acho que está tudo bem. — respondo com um fraco sorriso.

Ele abre aquele sorriso que mostra todos os dentes e ressalta as covinhas. Eu sei que ele está pensando em me beijar, mas meu coração não dispara. E eu não posso mais fazer isso com ele.

— Hugo, você precisa saber que não vai poder me proteger para sempre. Você é meu melhor amigo, mas também é um líder nato, além de ficar muito bem com garras e penas. Você precisa entender que, mesmo que eu tenha limitações, consigo me defender a minha maneira. E quando você precisar ir, formar uma família com outra líder poderosa, eu vou ficar bem. Eu sempre vou te guardar no meu coração como meu amigo e irmão. — falo tentando transmitir a mensagem sem ferir seus sentimentos.

Ele é o tipo de garoto que jamais faria algo contra a minha vontade. Jamais me magoaria. Nós temos essa conexão forjada por anos de convivência. Ele sempre sabe o que estou sentindo, e eu também sempre sei o que ele está pensando.

Ele sempre foi minha âncora. Mas, nos últimos meses Hugo tem pensado, pelo que pude notar, no futuro. Tudo que vejo quando eu imagino os próximos anos é meu amigo ao meu lado. Sei que para ele foi o mesmo, nos viu envelhecendo juntos. E eu o amo por isso. Mas, eu li demais sobre paixão para saber que não temos o necessário para nos tornarmos um casal feliz.

Ele vai entender isso. Eventualmente.

— Sofia, eu sei que você sabe o que estou pensando. E eu sei que você não está interessada. Nós já passamos da fase de lidarmos com meias verdades. Está tudo bem. Você é minha melhor amiga, não vou deixar o fato de você ter partido meu coração afetar isso. Durma bem, okay?! —   ele segue para os alojamentos familiares na forma de um corvo, que se mistura com a noite.

Entro no meu depósito e pego meu volume de O Morro dos Ventos Uivantes para tentar me convencer que me manter apenas amiga do melhor garoto do mundo é mesmo a melhor ideia.

A lenda das estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora