Capítulo 1

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As noites são longas no inverno. É bom contar com os ignis para nos manter aquecidos. É uma estação cruel, mas Mari disse que está chegando ao fim. Ela é a naturae mais gentil que já conheci.

Fico grata pelo cuidado dela, pois é mais do que os outros me oferecem. Em um grupo tão grande quanto o nosso, odiar algo ou alguém é parte das tendências. Exatamente como usar certo tipo de roupa, ou falar de uma determinada maneira, odiar as pessoas certas é parte da rotina social. Não que eu me importe.

A quem estou querendo enganar? Eu me importo. Se tivesse uma habilidade, qualquer que fosse, o meu objetivo seria duelar com cada um até fazê-los se arrependerem de serem pessoas horríveis. Mas, eu não tenho.

Sou a única que não tem.

— Sofia, mexendo com lixo mais uma vez? — Hugo fala enquanto transita de sua forma animal para a humana. O tom de deboche é nítido mesmo com o profundo som de fera na voz.

— Isso não é lixo, Hugo. É tecnologia. É assim que pessoas como eu costumavam se virar. — respondi tentando não fazer cara feia.

Pecus são raros. Esse é um dos motivos da constante arrogância de Hugo. A capacidade de se transformar em formas animais nos salvaram muitas vezes. Ele prefere as formas de lobo e corvo, mas pode se transformar em qualquer animal que conheça. Fico bastante feliz quando ele resolve passar o dia como uma ave ressoando canções esquecidas pela natureza durante a tarde. Eu nunca vi um pássaro como esse e sempre me pergunto como Hugo o conheceu.

— Você tem a mim. Não precisa se virar. Vai acabar se machucando como da última vez. — ele fala ao se sentar ao meu lado. Percebo que ele já tomou seu banho, o que me faz questionar a quanto tempo estou trabalhando e quantas horas são.

— Já é hora do jantar? — pergunto.

— Sim. Imaginei que você esqueceria de novo. Mas, não fique animada. Não conseguimos muita coisa além dos legumes de Mari. — ele me conta fazendo cara feia.

— Não seja mal agradecido. Ela está cada dia melhor. Semana passada criou morangos maravilhosos. E ela disse que temos que aguentar só mais uma semana de inverno. — defendo a garota.

— Mal posso esperar para sair daqui. De tanto tédio, estou começando a cogitar mexer com essa tralha também. É inaceitável! — Ele fala com um grande sorriso.

Esse é o problema com Hugo. Ele está apaixonado por mim, tenho certeza. Ou pelo menos ele pensa isso.

Nos conhecemos quando cheguei a Civitas. Fazia meses que eu vagava como nômade. Eu fedia, estava faminta. Era outono, eu devia ter uns onze anos, ele uns treze. Depois de caminhar durante três dias sem descanso, finalmente cheguei à margem do rio. Um antigo sistema de GPS me guiava, então eu sabia que não devia enfrentar a correnteza. Me aproximei da margem apenas para me limpar.

Foi quando um cachorro de quase um metro saiu por detrás dos arbustos. Levei um susto tão grande que caí pela margem. Pensei que ia morrer, e também fiquei furiosa por ter molhado todo meu equipamento. Nesse momento o cachorro saltou em minha direção e me arrastou para margem. Era Hugo. Ele sempre se vangloria por me salvar. E digo que se eu não estivesse precisando mesmo de um banho naquele momento, ia ficar muito irritada com por ter quase causado minha morte.

Ele me trouxe para conhecer os outros. Eu disso meu nome: Sofia. "Sofia o quê?" eles perguntaram. "Você controla fogo? É uma ignis?" Não, eu respondi. "Então é uma naturae? Pode nos ajudar com as plantações". Não, respondi mais uma vez. “Eu não sou nada. Não posso fazer nada além de falar, andar, pensar e sentir.”

Já fazia meses que eu vivia por mercados clandestinos, evitando pessoas que pudessem fazer perguntas. E foi exatamente por isso. Em um mundo onde todos têm poderes, não conseguir fazer nada extraordinário é a mesma coisa que já estar morto.

E claro, naquele dia ouvi todo o tipo de absurdo. "É uma doença, vai se espalhar e acabar com todos nós!". "Ela é uma golpista, quer que a gente tenha pena só para nos trair depois". E o pior de tudo, "Não importo se é mentira, verdade ou maluquice causada pela fome, não precisamos de uma boca para alimentar que nem será útil".

Mas, Hugo é um pecus, e mesmo jovem já falava como líder. Ele disse que eu ficaria, que eu encontraria alguma forma de ser útil. Desde então eu passo o dia com os bebês. É uma tarefa árdua considerando que são crianças mais fortes que eu, e que ainda não distinguem entre certo ou errado. Faço visitas diárias aos rusticatio para que curem meus ferimentos, mas nos últimos dez anos, aprendi a ser grata pela vida que tenho aqui.

Estou protegida, alimentada e até sou amada. E sempre fico grata por ter Hugo. Só me entristece saber que não o amo da forma como ele deseja. Mas, não há o que fazer. Não dá para simplesmente escolher se apaixonar por alguém. Se eu pudesse escolheria ele. Sem hesitação, eu o escolheria.

— Sofi, você ouviu o que eu disse? — ele fala como se fosse a décima vez que faz essa pergunta.

— Desculpe, só estava pensando. O que você perguntou?

— Perguntei se você está pronta para a primavera. — ele fala novamente tentando manter a paciência.

— Sim. Estou pronta. Mas, antes acho bom irmos jantar. — ele me oferece a mão e caminhamos juntos para a cozinha.

A primavera dessa vez será diferente. Na próxima semana teremos uma missão. É provável que eu acabe morrendo antes que o domingo acabe. Mas, o que posso fazer? Não posso negar um pedido de nossa líder. Preciso correr para a morte se esse é o meu dever. Então é melhor ficar feliz pela neve ainda cobrir o chão. Isso me dá a certeza de que tenho mais algumas noites.

A lenda das estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora