Capítulo 4

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O rio Primus é um excelente indicador da troca das estações. Agora, alguns dias para a temporada das flores, ele corre cheio de vida e livre do gelo que formava uma camada fina na superfície dias atrás.

Hugo não gosta de assumir formas aquáticas. Ele prefere descer até aqui para explorar as formações rochosas no lado oposto ao caminho para Civitas. Na verdade, isso é algo que todos apreciamos.

Segundo minhas pesquisas, essas formações são resultado de uma anomalia natural ocorrida apenas a algumas décadas. Já encontramos vestígios da civilização passada, metais e até algumas pedras decorativas como esmeraldas e rubis. É algo interessante a se fazer. A natureza também é capaz de contar muitas histórias.

Depois de algum tempo, seguimos até nosso lugar de costume: a ponte quebrada. Feita por pedras, nossa ponte foi partida exatamente ao meio há apenas alguns anos. As fofocas afirmam que Emily, a antiga tutora, foi a responsável.

Ela é uma senhora doce. Muito amiga dos pais de Mari e Hugo, casada com um dos líderes da comunidade, passava seus dias ajudando os mais jovens a aprenderem a controlar suas habilidades.

Sendo uma tonitrui, continha seu próprio poder. A capacidade de convocar tempestades é raramente útil em tempos de paz. Então Emily estava feliz chamando apenas por chuvas calmas.

A tutora confiava muito em mim. Acreditava que eu poderia substituí-la. Ela foi o que tive mais próximo de uma figura materna.

Foi quando Una anunciou que era tempo de Lidya se afastar, nomeando Willian, marido de Emily como substituto. Ele não teve oportunidade de assumir a posição. Morreu subitamente no dia seguinte.

Nossa líder convocou um dos habilidosos para informar aos líderes de Una que continuaria no poder por não haver substituto preparado. Quando foram atravessar o rio a ponte, na época o único caminho disponível, estava partida ao meio.

Emily havia partido e todos assumiram que ela era a responsável. Mas, seu poder só poderia causar tamanha destruição com uma dose elevada de raios. Ninguém ouviu nada durante toda a noite, o que me fez questionar como a ponte havia terminado daquela forma.

Depois de descobrir algumas coisas estranhas com relação aos eventos daquela semana, me afastei do assunto e parei de pensar a respeito. Emily partiu sem me dizer ao menos adeus e, tudo bem, sempre espero que ela tenha encontrado uma forma de viver melhor e mais feliz.

Só é difícil não pensar nela quando nos sentamos perto do limite entre as pedras quebradas e o rio que corre furioso abaixo.

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A ponte agora foi tomada pela vegetação criada por Mari. Ninguém mais passa por aqui, então o lugar se tornou um refúgio. Com flores entre as fendas das rochas, frutos caindo pelos galhos que se estendem desde o solo verde, Mari deixa de lado o jeito retraído e toma sua forma natural, segue seu propósito inicial: criar vida.

Nunca vi pinturas de fato. As obras de arte não são como os livros, que hoje encontro vários em suas formas digitais. As palavras são mais simples de serem transmitidas do que as cores, texturas e formas.

Enquanto observo Mari formar com cuidado uma nova flor com padrões intricados, penso que arte devia ser assim: o artista transmitindo vida a sua obra até atingir o mais próximo da perfeição.

Enquanto observo a flor ganhando forma, Vinícius acompanha cada movimento de Mari como se ele mesmo estivesse sendo moldado pelas mãos habilidosas. O sorriso nele é a prova de que a vida é um constante compartilhamento de experiências que nos tornam ao mesmo tempo mais vulneráveis e mais corajosos.

Talvez pelo clima ameno, ou pelo vestido confortável, ou ainda pelo simples fato de que meu tempo está se esgotando, digo:

— Mari, poderíamos voltar agora? Gostaria que você olhasse meu jardim. Vocês garotos podem ficar. — Mari concorda no mesmo instante. Há meses ela pede discretamente a chance de reavivar o jardim que cerca o depósito.

Depois de já estamos fora do alcance de Vinícius e Hugo digo:

— Sei que isso não é da minha conta, mas o Vinícius parecia bastante interessado em você hoje. — de fato, o pobre ignis passou as horas anteriores fazendo perguntas sobre o bem-estar da amada, a seguindo por todos os cantos.

— Ele só está um pouco preocupado. A produção dos suprimentos tem esgotado muito da minha energia. — ela responde corando.

— Ele é muito atencioso com você. Poderia jurar que nutre um carinho especial pela forma como ele te olha. — digo corando também, me arrependendo um pouco por minha intromissão.

Mas, Mari sorri e pergunta:

— Você acha?

— Ele sempre está feliz quando você está por perto. E sempre mal humorado quando não. Eu não entendo nada de sentimentos, mas acredito que ele goste bastante de você. Goste mesmo. — é algo tão obvio que fico impressionada pela expressão surpresa que ela apresenta.

— Certo. — diz se recompondo e encerrando o assunto.

A vida para a população geral de Civitas é bastante pacata. Torço para que os dois se acertem e passem dias tranquilos em um belo alojamento familiar, com crianças de cabelos lisos e ruivos.

Durante muito tempo me amargurei por não ter o mesmo que as outras pessoas. Mas, aprendi a me alegrar por associação. Agora, quando Hugo está radiante por ter descoberto uma nova espécie na qual se transformar, eu comemoro com ele. Quando Mari avança em seu treinamento na produção de suprimentos, a elogio pelo bom trabalho. Quando Vinícius irrita Lidya apenas pelo prazer de vê-la saindo do sério, guardo o momento na memória para rir bastante quando ninguém estiver olhando.

Quero me alegrar por esses dois finalmente se acertarem. Durante meses observei a paixão florescer, juntamente com o respeito e carinho mútuo.

Talvez, Hugo e eu nunca voltemos de nossa missão. Nossa história não parece estar no caminho de "e viveram felizes para sempre" com todas essas coisas estranhas que vêm acontecendo. Mas, o amor ainda é importante. E se eu não vou vive-lo, se ele não pode ser parte principal na minha trama, eu quero que meus amigos possam desfrutar disto.

E me espanta esse pensamento, porque mesmo com a formalidade entre Mari e eu, mesmo com os diálogos pouco produtivos com Vinícius, percebo que sim, eles são meus amigos.

Vou sentir muita falta de ambos caso não volte.

A lenda das estrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora