Quebrando Regras

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Tudo bem Kimberlly, mantenha a calma, respire, conte até dez, não chore, entre, fale com Richard, explique, não fuja. Vamos, você precisa ser corajosa, você não vai desabar, não vai desabar, não vai desabar...
A tela do celular ainda estava acesa, meu coração continuava acelerado. Se eu entrasse dentro do restaurante novamente iria desabar, com toda certeza do mundo.
Cibelly. O câncer consumia cada vez mais seu corpo, afetando agora mais um órgão, dessa vez o médico tinha sido claro, não restava tempo, não havia mais o que ser feito. E provavelmente nem a doação de medula seria uma solução dessa vez.
Saber que vai perder uma pessoa que ama, é muito mais difícil do que perdê-la de fato, pois não se consegue evitar criar esperanças.
Eu me sentia infeliz por Cibelly, por mim e principalmente por minha mãe, um filho que perde os pais pode ser chamado de órfão, uma mulher que perde o marido, viúva, o marido que perde a mulher, viúvo, mas uma mãe que perde um filho? Não há palavra nenhuma no mundo que possa descrever o que é isso, somente quem passa, sabe, nem se quer eu sabia.
Eu amava minha irmã, ela era minha caixinha de segredos, era ela quem preparava macarrão instantâneo quando eu caia doente, e era o melhor macarrão! E desde quando descobrimos sua doença eu tentava me manter forte, por ela! Ela não precisava se torturar com o nosso sofrimento, não mesmo.
Nos mudamos pra Nova York justamente por causa do hospital para onde ela havia sido transferida agora. Lá havia melhores condições, melhores médicos, tudo o que ela precisava. Sabíamos que uma hora ou outra ela teria de ser internada novamente, por isso nos mudamos o mais rápido possível quando o médico da nossa cidade liberou, e agora? E se ela não resistisse, todo o esforço havia sido em vão! Mas jamais me arrependeria de ter tentado, fizemos o possível, era disso que tentava me convencer.
Tentei ligar para Richard, desligado. Claro que ele havia desligado o celular. Eu não entraria dentro daquele restaurante novamente.
Não podia perder tempo. Pensei em pegar o carro de Richard mas não... Ele ficaria ainda mais furioso comigo.
Então fiz algo que me deixaria arrependida depois, mas dane - se, agi por impulso,mais tarde poderia até culpar o calor do momento.
Forcei a porta de um Chevy marrom. Para minha sorte estava aberta, provavelmente havia passado pela cabeça do dono que ninguém se atreveria a roubar uma lata velha daquelas, e se eu estivesse no lugar dele também pensaria algo assim.
Eu poderia comemorar minha sorte mas não ia perder tempo com a dancinha da vitória, pelo jeito o dono do carro não era tão idiota assim, já que não tinha deixado a chave na ignição, porém para sua infelicidade, eu sabia fazer ligação direta. Eis uma das coisas que meu pai imprestável me ensinara.
Soltei um suspiro aliviado quando o motor roncou, minha felicidade durou apenas até que alguém batesse na janela do veículo. Rapidamente puxei a trava da porta.
O homem magricela do lado de fora, que julguei ser o dono do veículo, proferia xingamentos pesados enquanto dava socos na janela.
Arranquei com o automóvel assim que percebi que não seria arriscado atropelar o homem. Era só o que me faltava, responder processo por assassinato. Como se não bastasse correr risco de ser presa por roubo.
Eu não conhecia o bairro, não sabia como sair dali, nem como chegar ao hospital, saco!
Cerca de dois minutos depois, meu celular vibrou no bolso, Richard .
Apertei o botão de atender e coloquei no viva - voz.
- Onde você se meteu, Drayton? - Sua voz era uma mistura de raiva e desespero.
Parei o carro no acostamento, não respondi.
- Drayton?! Está na linha? Alô?!
Bati com a cabeça no volante umas duas vezes, meu Deus, como eu era burra! Agora estava perdida.
- Tô na linha - Minha voz não passou de um murmúrio.
- Diga que está aqui por perto, que vai voltar pra dentro daquele restaurante e inventar uma boa desculpa...
Interrompi.
- Richard, escuta só, veja se é uma boa desculpa pra você, minha irmã está morrendo! talvez ela nem se quer passe dessa noite! Eu estou perdida no meio do nada e tenho muito mais com o que me preocupar do que com o seu jantarzinho! Satisfeito? Isso é bom o bastante?.
Eu estava gritando feito louca. Tendia a fazer isso quando ficava nervosa. A linha ficou muda por quase um minuto, apertei os olhos, a testa ainda grudada no volante, os faróis acesos. Se continuasse parada ali iria acabar sendo multada. Não que isso me preocupasse...
- Não deve estar muito longe de a pé, me diga onde, e...
- Roubei um carro, Richard.
Ouvi sua respiração falhar.
- Você fez o quê!? Qual o seu problema?! Será que você não...
Desliguei. Não precisava ouvir aquilo, não agora.
Acelerei novamente, sem rumo, o celular tornou a tocar umas sete vezes, na oitava ligação, atendi.
- Me diz onde você está - Sua voz visivelmente estava mais controlada.
- Eu não seii!
- Está parada?
- Não. Acabei de passar por um restaurante chinês que fica em frente à um chafariz, tem um Shopping enorme logo ali em frente...
- Shopping gigante, restaurante Chinês... acho que sei onde é. Vou passar em casa e pegar um casaco pra você. Pare o carro. Vou estacionar em frente ao Shopping, te ligo quando chegar.
Pegar casaco? Mas que diabos!Bom, de qualquer forma, sua casa fazia parte do trajeto e realmente fazia muito frio.
- O.K - Eu ia era arrumar um jeito de ser assaltada.
Fiz o que ele me pediu, não havia muito movimento na rua. Já estava ficando ansiosa, minha perna balançava freneticamente. Liguei para minha mãe, nada. Nicole, nada, então liguei para a última pessoa com quem queria falar agora.
- Oi linda - Franzi a testa pro telefone.
- Nicholas?
- O próprio. E aí? Qual é a boa?
Aaaah, isso não.
- Você bebeu... - Não havia sido uma pergunta.
- Nem enche, tá? Não foi muito.
Só me faltava mais essa agora.
- Onde você está?
- Hmm... Como foi seu jantar? Pensei que fosse demorar um pouco mais que isso.
- Responda minha pergunta, onde é que você está?
Ao fundo ouvi o som inconfundível de uma roleta e algumas vozes comemorando.
- Então...
Interrompi.
- Não precisa responder mais nada. Acho que já sei. Casino, não é?
- Virou adivinha agora?! - Sua gargalhada me sobressaltou.
- Como te deixaram entrar aí nessa situação?
- Fala sério! Que interrogatório é esse? Tenho certeza que o jantar foi uma porcaria.
Respirei fundo, ele estava me dando mais nos nervos do que o Richard.
- Cibelly. Ela não está nada bem... Ninguém atende o telefone, eu tô perdida...
- Perdida? Kim, é só me dizer onde está, eu te busco, você é a minha garota, esqueceu?
Aaarg.
- Não foi pra isso que te liguei. Pensei que estivesse no hospital, mas tudo bem, não tenho muito tempo, minha bateria vai acabar - Já estava exigindo um carregador - Não vai adiantar eu falar nada, então fica aí se entupindo de dívidas. Tchau.
Doía ter que dizer isso a ele, mas não dava pra ajudar uma pessoa que dispensa ajuda. Meu papel naquela história já tinha acabado fazia tempo e minha cota de paciência também.
Fiquei ali, olhando pro celular, esperando notícias. Nada de telefonemas, nada de nada!
Fazia quase meia hora que eu estava parada naquele lugar, já teria dado tempo de Richard chegar, eu acho. Talvez ele tivesse pegado trânsito, mas acredito que não...
Não iria incomodá-lo, ele já devia estar querendo arrancar minhas orelhas por deixá - lo no restaurante. Quem sabe estivesse só dando o troco e fosse me deixar plantada naquele lugar estranho a noite toda.
Quando se passaram quase uma hora, comecei a acreditar na teoria de Richard ter me deixado na mão.
Puxei meu celular do bolso. Desligado. Raio! Por quê quando eu mais precisava daquela droga de aparelho ele não funcionava?!
Como se não bastasse minha situação atual, um relâmpago cortou o céu anunciando chuva. Mas que ótimo! Tinha como ficar pi... Era melhor eu não terminar a frase, porque toda vez que eu pelo menos pensava que nada podia piorar, parece que a vida ia lá e fazia questão de jogar na minha cara que tudo que é ruim pode ficar mil vezes pior sim! É como se no fundo do poço onde eu me encontrava houvesse um ralinho onde sempre daria pra se afogar mais um pouco.
Não demorou muito pra cair a maior tempestade. Não foi uma chuvinha fina do tipo que você sabe que logo logo passa, foi A Chuva, com direito a trovoadas e relâmpagos que me faziam pular de susto. Se Richard queria me castigar, havia conseguido direitinho.
Aaah meu Deus, que minha irmã esteja bem...
Sempre considerei chuva um mal presságio, porém não queria acreditar no pior. Não agora. Não estando sozinha ali.

Não sei exatamente quando foi que cai no sono, mas sei que dormi, pois quando tornei a abrir os olhos, uma leve garoa pontilhava o vidro do carro, porém o que realmente fez com o que eu acordasse não foi o fato da chuva finalmente ter afinado e sim as luzes azuis e vermelhas que invadiram minha visão.
Não tive muito tempo pra pensar no que diabos seria aquilo, minha ficha só caiu quando um homem de farda desceu da viatura e veio andando em minha direção. Oh-oh.
Deu duas batidas na janela, abaixei o vidro, talvez ele só pedisse para que eu saísse.
- Boa noite - Acenei com a cabeça - O que faz estacionada neste local, moça?
Hmmm.
- Estou meio perdida, não conheço a cidade...
- Não é muito seguro... - Me analisou - Posso ver sua carteira?.
M-minha carteira? Aaah minha nossa!
- Bom... Esse carro não é meu, é de um amigo, peguei emprestado... Como eu disse, não conheço a cidade, não sou daqui.
Me analisou novamente com um olhar cético.
- Um amigo?
Assenti firmemente.
- Sim, um amigo me emprestou o carro.
- E pra onde estava indo?
- Ao hospital, ver minha irmã.
Balançou a cabeça e pensei que tivesse desistido do interrogatório porque virou as costas e deu oito passos até a viatura, trocou algumas palavras com o outro policial e voltou a andar em minha direção.
- Pode descer do veículo?
O que ele faria comigo se eu dissesse "Não"? Conclui que não estava a fim de descobrir.
Desci do carro pacificamente... Sem demonstrar qualquer sinal suspeito.
- Recebemos uma denúncia a mais ou menos uma hora e meia . Uma jovem, aparentemente bonita e bem arrumada roubou um Chevy marrom na porta de um restaurante a poucos quilômetros daqui. Isso não lhe parece coincidência?
Ok, eu estava ferrada.
- Quantos Chevys marrons existem nessa cidade? Quantas moças bem arrumadas dirigindo Chevys marrons o senhor acha que existem nessa cidade? - Banquei a indignada.
- Acredito que bem poucas. E levando em conta que todas as informações batem, você é suspeita até que prove o contrário. Me acompanhe até a delegacia.
Suspirei, não tinha outra maneira, eu podia correr... Descartei essa ideia assim que o outro colega de farda desceu da viatura com uma arma de alto porte, ele não atiraria em uma mulher, atiraria?
Segui o policial docemente, sem protestar, minha mãe ia surtar!
Naquele momento eu só conseguia pensar uma coisa : Richard teria que me dar uma ótima explicação. Na verdade, apostava meu rim como ele nem se quer me daria satisfações.
Entrei na viatura, me sentia imunda, um lixo, uma criminosa de baixa. Logo chegou outro carro de polícia, acredito que iam inspecionar o Chevy e depois devolver ao dono. Legal.
***
A delegacia tinha cheiro de desinfetante, biscoito e chocolate quente, não pensei que fosse esse o real cheiro de uma delegacia, mas logo que cheguei a uma saleta, percebi que o cheiro era devido ao lanchinho da noite do delegado. Seu distintivo dizia Sr. Moreira. Era um homem calvo e redondo, bem redondo. Não prestou atenção em mim, parecia estar mais interessado nos biscoitos de mel.
O policial que me escoltou até ali, pigarreou, os olhos esbugalhados do delegado finalmente se prenderam em mim,algo naqueles olhos me eram familiares... automaticamente ele consertou a postura e apoiou as mãos no queixo tentando bancar a autoridade.
- Não tem nenhuma passagem pela polícia, senhor - O policial informou.
O delegado assentiu e dispensou o homem.
- Sente-se, senhora Kimberlly Drayton - Me sentei. Espera ai... senhora? - Sabe por quê está aqui, não é?
Assenti. Nos filmes eles sempre falavam: "Tudo que dizer deve e será usado contra você nos tribunais" por isso tentei tomar cuidado com a língua.
- O que tem a dizer em sua defesa?
Defesa? Se eu dissesse iria direto pro xadrez.
- Só falo na presença do meu advogado.
Minha nossa! Como eu me senti importante naquele momento! Confesso que sempre quis dizer aquilo e se não fosse o fato de eu estar sendo presa eu teria gargalhado.
- Isso é uma confissão? Se precisa de um advogado então quer dizer que tem algo a ser dito... - Coçou o queixo. Não era verdade. Todo mundo tinha direito à um advogado quando vai pra cadeia, não? Ele estava jogando verde pra cima de mim?
- Sim.- A verdade sempre- Mas acho que roubar é um termo forte ... Podíamos usar, peguei emprestado. Até porque, eu iria devolver, juro que iria!
Confessar era o certo a fazer, de qualquer forma mais cedo ou mais tarde a verdade viria à tona.
- Agora sim pode ligar para o seu advogado
Aaaah sim, meu advogado... Que maravilha.





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