Capítulo IV

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15 de outubro de 1988, às 23h40

Baltazar acabou de chegar do turno. Trancou-se no quarto, não me dirigiu sequer um olhar – no fundo, agradeci por isso. Anderson está aninhado em meu peito, ainda não dormiu. Sinto que alguma coisa está deixando-o desconfortável, chorou tanto hoje! Espero que a noite seja tranquila, já não descanso há dias. Entretanto, mais uma preocupação veio me afligir na noite de ontem.

Havia um papel de carta sobre a mesa. O envelope, endereçado ao Capitão Borges da Polícia Militar, não possuía remetente. Curiosa, mas temente que Baltazar me flagrasse lendo sua correspondência, desdobrei o papel. As letras eram de forma, não parecendo ter sido feitas à mão, mas à máquina. Eram apenas quatro linhas.

Meu caro Capitão Borges, dizia a carta.

Espero que o senhor esteja ciente de que seu prazo está se esgotando. Como um homem que serve à Lei e à Ordem, suponho que o senhor cumprirá nosso acordo. Caso contrário, as consequências serão severas.

Não havia despedida, o que tornou a curta mensagem ainda mais ameaçadora. Naquele momento, meu coração disparou e minha mente começou a formular mil e uma possibilidades. Que acordo era aquele e o que de tão sombrio estava envolvido em seus termos?

Na posição de Capitão da Polícia Militar, sabia o que esperava por Borges. É claro, eu estava falando do Jovem Diabo. Quantas pessoas já não haviam sido presas, torturadas e, quiçá, mortas pelas mãos dele? De certo era capaz de tamanha sordidez, eu já não duvidava mais. Com tal alcunha, porém, ele não poderia ser menos que detestado.

Entretanto, mesmo com todo o ódio por ele queimando minhas entranhas, temi pela vida de Baltazar. Achei-me uma tola e me repreendi veementemente por ainda alimentar compaixão por aquele monstro. Dobrei o papel do mesmo jeito que estava e disse a mim mesma para esquecer o assunto, mas as palavras datilografadas martelavam em minha cabeça. Eu esperava que, qualquer que fosse esse acordo, o Capitão Borges tivesse a sensatez de cumpri-lo.

Anderson começou a chorar há alguns minutos e eu venho tentando acalmá-lo. Sussurro alguns trechos de canções que eu ouvia quando era criança, balanço-o num compasso lento, dando tapinhas no bumbum. Nada parece funcionar. O choro fica mais alto e estridente a cada minuto. Ouço a porta do quarto abrir.

"Inferno!" Baltazar gritou. Sua voz colérica retumbou por toda a casa, o que fez com que eu me encolhesse. "Inferno, inferno, inferno! Mil vezes inferno!"

Passos. Cada vez mais perto, mais tempestuosos. Abracei Anderson com mais força, como se pudesse protegê-lo da ira do pai. Seu choro foi diminuindo e, quando Baltazar chegou à sala, ele apenas soluçava.

Borges me fuzilou com o olhar. Os músculos do rosto estavam retesados, deixando sua feição ainda mais dura que o normal. Os olhos estavam saltados, vermelhos, e havia olheiras bem escuras em volta. Estava mais magro, eu percebi, e os ombros estavam encurvados. Por trás da frieza de seus olhos, senti preocupação. Poderia até dizer que enxerguei um pouco de medo, mas meus instintos estavam amedrontados com sua fúria.

"Para o inferno você e essa sua criança!" Ele gritou. "Não quero ouvir mais choro nenhum nessa casa. Diabos! Preciso dormir!"

Eu não queria olhar para ele, não queria encará-lo nem por um segundo sequer. Uma sensação ruim percorria minha espinha quando meus olhos demoravam nos dele por mais de meio segundo. Mas Borges não se deu por satisfeito depois dos berros e foi até onde eu estava, apanhou um bocado de cabelo e enrolou-o em suas mãos, puxando-o. Senti vontade de me debater, gritar, xingá-lo, mandá-lo ao inferno em alto e bom som, mas apenas fiz uma careta. Nem ao menos gemi.

"Você ouviu, mulher?"

Eu choraminguei, tentando assentir. Um brilho sádico percorreu sua pupila e um riso de deboche se formou em seus lábios carnudos. Ele aproximou a boca do meu rosto, ainda segurando com força minha cabeça. Fedia a cigarro, cachaça e comida estragada. Mesmo assim me beijou.

"Boa garota."

Só consegui sentir nojo. Pensei, então, que seria um alívio se o acordo do qual tratava a carta fosse quebrado e, misteriosamente, Baltazar aparecesse morto, com a garganta cortada ou cravejado de balas. Arquitetei minuciosamente seu assassinato em meus pensamentos enquanto sua língua imunda demorava-se em minha boca. Naquele instante, eu o vi morrer de cento e uma formas diferentes, todas dolorosas. Entretanto, quando ele se afastou e soltou meu cabelo, eu fui covarde o suficiente para tentar coisa alguma.

"Desculpe", foi o que eu disse. E me arrependo de cada pedido de desculpas que fiz a ele, por achar que eu era a culpada pela situação.

A imagem de Baltazar morto vem à minha mente sempre agora. E eu me pergunto se o rei do Inferno aceitaria de braços abertos aquele Jovem Diabo, para ser seu fiel ajudante, seu Capitão, na tortura de almas. Ele estaria em casa, não estaria?

Eu ainda rezo. Perdi a conta de quantos Pai Nosso e de quantas Ave Maria rezei. Anderson chora bem baixinho ainda, mas ele não é o único. Eu o acompanho. Sinto as lágrimas rolando quentes por minhas bochechas e provo o gosto salgado quando elas alcançam minha boca.

Continuo rezando. Peço a Deus para me livrar de todo o mal, mas creio que minha fé tem se dissipado aos poucos. Às vezes penso que Deus está ocupado demais para olhar para mim, mas dizem que Ele escreve certo por linhas tortas. Perdão, Senhor, mas sua escrita tem me doído tanto. Talvez eu tenha pecado. Mereço esse destino, então?

Faço o sinal da cruz em minha testa.

Amém, eu penso.

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