Capítulo VII

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19 de outubro de 1988, às 2h14

É madrugada e eu não consigo dormir. Os olhos estão vidrados no teto, mas o pensamento está em apenas um fato. Baltazar está morto. Eu o vi sangrando, retalhado, com o pescoço praticamente separado dos ombros. Mas o distintivo estava lá. Manchado da repugnante cor rubra, ainda brilhava fixo em seu peito, como se possuísse orgulho próprio das torturas que realizou. Agora, porém, não serviria mais. Baltazar está morto e confesso, peço perdão a Deus por isso, que uma repentina onda de satisfação cobriu o meu ser. Depois de imaginar mil e uma mortes para meu marido, bem, aqui estou comemorando sua partida do mundo terreno. Gostaria de poder dizer que espero que sua alma descanse em paz, mas seria impossível. Tantas vezes o amaldiçoei e o enviei ao Inferno, torço que lá mesmo faça morada eterna.

Por que me sinto tão... culpada? A manhã me concedeu a liberdade, mas um peso ainda maior recaiu sobre minha cabeça. Devo admitir que nem apenas regozijo foi o que senti. Aquele bom homem que outrora amei também estava morto. Estivera escondido por tantos meses debaixo de uma máscara medonha, é verdade, mas agora se fora totalmente. Baltazar é agora não mais que um corpo despedaçado, encharcado de sangue e água, mas sinto sua presença ainda vívida. Deus me livre e guarde, mas ainda tenho a impressão de que ele está comigo, ameaçando a mim e a meu filho. Estou com medo, mas não sei exatamente o porquê. Talvez porque agora eu esteja liberta e, por isso, estou perdida. Há solução para extrair uma angústia há tempos intrínseca à minha carne?

Tenho pavor de que ele venha para me atormentar à noite, em meus sonhos, e que acabe me enlouquecendo de uma vez por todas. Eu o joguei no rio, num ímpeto de fúria. Antes, tiver o prazer de esmurrá-lo algumas vezes com toda a força que pude aplicar em meus punhos frágeis. Senti-me triunfante naquele breve minuto e cheguei a desejar que o Capitão Borges houvesse sido morto por minhas mãos. Mas sou tola, sempre fui, e as lágrimas não tardaram a aparecer. O que eu não sabia, porém, era se estava chorando por ele ou por mim. Não haveria necessidade de descobrir.

A única coisa que eu estou de fato decidida a fazer é ir embora. Quero deixar essa casa o mais breve possível, livrar-me de todos os pertences que ainda me conectam à antiga vida e ao marido que um dia possuí. Temo por meu filho, tão pequeno e já sem pai, mas estou certa de que sua criação sem Baltazar será um destino melhor do que ele jamais teria com a presença dele. Eu serei a mãe e o pai, serei eu sozinha, mas oferecendo o essencial à minha criança: meu amor.

Não procurarei meus pais, isto é certo. A única pessoa que poderia me ajudar nesse momento seria Aurélia, mas já não posso me comunicar com ela sem antes pisar os pés em casa. Irei em busca de outras cidades, conseguirei meu próprio salário e, assim, construirei uma nova vida. Longe de tudo que me assombrou durante todo esse tempo.

Baltazar está morto, mas não dormirei estanoite. A vida nova terá que esperar mais uma madrugada para ter seu início.Ainda sinto o Capitão Borges rijo e rude, com os olhos pétreos sobre mim. Omedo está se dissipando, mas sequer pisco os olhos. A noite é de vigília.    

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