Capítulo VI

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18 de outubro de 1988, às 5h30

Adria saltou da cama ofegante. Acabara de acordar de um pesadelo. O sol ainda estava baixo no horizonte, logo ela pressupôs que era muito cedo. Sentia seu corpo fatigado e sua cabeça latejava insistentemente. Entretanto, o que a angustiava era um sentimento agourento que lhe subia pela espinha e arrepiava seus pelos da nuca. Assim que se viu desperta, por algum motivo, a imagem do bilhete misterioso que Baltazar havia recebido alguns pares de dias atrás preencheu sua mente, o que fez com que Adria entrasse em completo desespero.

Borges não estava em casa, o que era algo improvável para um dia de terça-feira, uma vez que seu turno apenas começava às nove. Também não havia dormido lá. Adria resolveu averiguar. Seus passos ecoavam pelo cômodo, como se estivessem temerosos de avançar. À luz fraca do começo da manhã, tudo aparentava estar diferente. As paredes estavam mais acinzentadas e as grades nas janelas pareciam flexíveis. Adria desconfiou que estivesse delirando. Quase comprovou seu pensamento quando viu, à sua frente, algo que não lhe era permitido há tantos meses.

A porta de entrada da casa estava entreaberta. Tímidos raios de sol ousavam invadir o hall da sala de estar, banhando o piso amadeirado de uma luz radiante. Adria, em um ímpeto aturdido, correu os poucos metros que a separavam da varanda, mas deteve-se por um instante quando sua mão alcançou a maçaneta. Olhou para os lados à procura de alguém. E se for uma armadilha? ela pensava. Se Baltazar estiver querendo me tentar à fuga para depois me punir?

Não viu, todavia, vulto algum ou sentiu a presença de vivalma. Ainda hesitante, porém, ultrapassou a porta e pôs os pés na varanda. Seu coração pulsava em seus ouvidos. Ela estava, ao mesmo tempo, extasiada e atemorizada. Uma parte de si desejava acreditar que aquela era a tão estimada liberdade que ela havia fantasiado por toda uma vida, mas outra parte preferia cogitar, por ora, que o pior ainda podia acontecer.

Travando uma batalha interior repleta de dúvidas que a apunhalavam, Adria cerrou os olhos quando sentiu o sol em sua face. Sentiu as bochechas queimarem, os pés formigarem sobre a grama. Olhou para trás e contemplou a casa que a fizera prisioneira por tanto tempo. A tintura estava descascada e os tons de azul haviam se tornado cinzentos ou amarelados. As flores que germinavam ao redor do alpendre estavam todas mortas. A visão era desoladora, tão diferente de quando ela havia se casado. O exterior, em verdade, revelava o sofrimento que era causado entre as várias paredes.

A paisagem ao redor, entretanto, enchia a mulher de uma sensação estupenda, algo que ela arriscava pensar que podia ser, depois de tanto tempo, a famosa felicidade. Ensaiou um riso, porém seus lábios haviam se acostumado a apreciar o choro. Resolveu, então, caminhar mais um pouco, mas receosa de estar se afastando de Anderson. Em algum lugar de sua mente, algo ainda lhe dizia que aquela atípica manhã era suspeita. Manteve os ouvidos aguçados.

À medida que desbravava o local, Adria mais se encantava com as belezas naturais. O cantar das aves, as flores coloridas, as árvores diversas. Ela observava tudo como se fosse a primeira vez, como se houvesse acabado de vir ao mundo. Num átimo, condenou seus pais, que a obrigaram a firmar o contrato de casamento, e amaldiçoou Baltazar, seu carrasco do claustro.

Logo que a cólera foi dissipada, Adria pode ouvir o suave barulho de água corrente. Animou-se, correndo por toda a extensão esverdeada sob seus pés, ainda sentindo o pálido sol da manhã queimar-lhe as maçãs do rosto. À medida que avançava, o som ficava mais alto, e logo ela avistou o leito do rio, fluindo incessantemente, por vezes formando pequenas ondas. Adria pôs as mãos à frente dos olhos em forma de concha para poder observar a vastidão daquela imensidade de água límpida, que ia até onde o horizonte permitia e mais além.

No entanto, havia uma figura disforme em uma das margens que instigou a curiosidade da mulher. Dessa vez, caminhou devagar, um tanto receosa. O coração pulsava novamente nos ouvidos e ela olhou depressa para os lados, com a sensação de que poderia estar sendo observada. Mais uma vez, não havia ninguém.

Conforme a distância entre Adria e o vulto estendido no gramado diminuía, ela pôde concluir que era um corpo. Estava deitado de barriga para baixo, com metade do torso dentro do rio. Havia um líquido vermelho empoçado, que também sujava a água, debaixo da pessoa que, pelas dimensões corporais, Adria concluiu que era um homem.

Seus pés começaram a formigar, sensação que passou por suas pernas, coluna e braços. Ela prendeu a respiração por um longo instante enquanto se abaixava para examinar o rosto do homem. Adria percebeu que as costas largas dele foram atingidas inúmeras vezes, abrindo talhos profundos. Debaixo do traje de cor escura, as mangas encobriam uma mão sem dedos. Adria sentiu vontade de vomitar ali mesmo, mas se conteve. Descobriu uma coragem que nem ela mesma pensava ter para virar o corpo, de modo a revelar sua face.

Ela sabia o que iriaencontrar, mas ainda assim quis confirmar suas certezas. Com um pouco deesforço, ela conseguiu ver, finalmente, a identidade do cadáver. Notou que acausa da morte não havia sido os cortes na parte de trás do corpo, mas a fendaque havia sido aberta em seu pescoço. A tortura, entretanto, havia sidometiculosamente arquitetada, uma vez que do rosto do homem os olhos foramdesprendidos. As estrelas do Jovem Diabo haviam sido arrebatadas de seu céu. 

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