Capítulo II

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13 de outubro de 1988, às 18h52

Meu pequeno Anderson está dormindo em meus braços. Posso sentir as batidas do seu coração, em um ritmo lento, contra minha pele. Sinto como se nunca tivéssemos sido separados, como se aquele cordão que nos unia na hora do parto houvesse sido rompido e, em seu lugar, um bem mais forte houvesse sido criado em meu peito.

Todavia, meu coração sofre as angústias de um casamento mal sucedido. Deito-me com um homem que em nada se parece com o Baltazar que me apaixonei, anos atrás. Esse homem de hoje, entretanto, atende apenas pela alcunha de senhor Borges, o capitão da Polícia Militar, inclemente e desumano. Os subalternos de seu trabalho costumam chamá-lo de Jovem Diabo, mas ele apenas ri. Delicia-se com sua fama de policial cruel.

Não foi sempre assim, é claro. Apaixonei-me por Baltazar pois via uma sensibilidade ímpar no modo como ele olhava para as coisas. Tinha a alma de um verdadeiro poeta e até recitava alguns versos para mim, mas nunca soube se eram de sua autoria. Apaixonei-me por Baltazar porque, de algum modo, nossos pensamentos se pertenciam. E a cada vez que meus lábios tocavam os seus, quando seus braços envolviam minha cintura, tudo em volta parecia insignificante. Seu toque era meu aconchego.

Entretanto, veio a grande notícia: havia uma vida crescendo dentro de mim. Em alguns meses, eu seria mãe. Completamente extasiada, não esperava a hora de Baltazar largar o turno no Departamento de Polícia para que eu pudesse partilhar com ele a descoberta. A espera não valeu a pena, porém, a reação não foi a esperada. Baltazar não compartilhava da mesma alegria que explodia em mim. Como podia? Ele iria ser pai!

Tola, com meus dezesseis anos e poucos meses, acreditava que sua atitude havia sido apenas momentânea, um choque pelo aviso inesperado. Desse modo, observei a gradativa mudança de um marido em um monstro. Seu olhar, antes tão encantador, passara a ser frio, quase indiferente, e os poemas foram sendo deixados em um canto escuro da estante. Respondia-me sempre irritadiço, repelindo-me quando tentava acariciar-lhe os cabelos. Os turnos do trabalho passaram a ser cada vez mais longos, ele parecia não desejar mais pisar os pés em casa. E, noite após noite, eu me deitava sozinha, acariciando a barriga que já apresentava algum volume. Foi em uma dessas madrugadas que decidi o nome do meu bebê: Amanda, se fosse menina. Anderson, se fosse menino.

Foi também em uma dessas madrugadas que eu o vi chegar, trôpego, com uma garrafa de uísque em uma das mãos e um cigarro aceso em outra. Sentou-se em uma cadeira, no escuro, e começou a chorar. A cada gole da bebida, a cada trago do cigarro, ele chorava mais. Soluçava. Eu também chorei – chorava todos os dias, com ou sem álcool. Foi a última vez que vi o Capitão Borges derramar uma lágrima sequer.

A partir de então, a bebedeira era constante. Baltazar não chegava mais em casa sem que sua boca estivesse exalando o odor da terrível combinação de álcool e fumaça. Não era incomum que gritasse comigo quando eu lhe dirigia a palavra. Algumas vezes, apenas me ignorava. Eu resistia calada, mas uma noite... Nessa noite, não me recordo exatamente quando – não gostaria sequer de lembrar que havia acontecido –, a presença de Baltazar em minha vida passou a ser um pesadelo.

Já era tarde e eu havia deitado sozinha mais uma vez. Baltazar, como nas últimas semanas, havia chegado bêbado. Entretanto, nessa noite, como há muito tempo não fazia, ele se dirigiu a mim. Verificou se eu estava dormindo, acariciou meus cabelos, beijou-me os lábios, a nuca, os seios, a barriga. Despiu-se por completo e logo tentou fazer o mesmo comigo, mas resisti. Ele grunhiu, insistindo, as mãos fortes tentando rasgar a seda da minha camisola, balbuciando asneiras, alegando que ainda era meu marido e que eu deveria fazer o que me era imposto. Tentei desvencilhar-me de seus punhos firmes, mas não consegui. Baltazar rasgou o tecido, despiu-me, abusou-me. Chorei incessantemente naquela noite, reproduzindo as orações que me foram ensinadas quando criança. Mas, por Deus, eu juro, perdi as contas de quantas vezes desejei que aquele homem fosse ao Inferno.

Assim, a agressão verbal passou à violência física. Eu temia pela vida daquele ser que crescia dentro de mim toda vez que Baltazar levantava a mão, ousando me bater. Nove meses se arrastaram desse modo, até meados de junho desse ano. Na maternidade, sozinha, toda a dor foi transformada em contentamento. Era um menino. E, enquanto ele chorava, estridente, pela primeira vez, eu descobria o regozijo de ser mãe.

Meu pequeno Anderson agora dorme sobre meu peito. Percebo cada gesto seu, sinto sua respiração quase imperceptível, sempre atenta a qualquer coisa. As olheiras já estão escuras em meu rosto, não durmo bem há semanas. Ele é um bom menino, é claro, mas não é meu filho quem tem sido o motivo das minhas preocupações. Eu ainda tenho medo de Baltazar e de seu temperamento instável. As olheiras não são as únicas marcas que possuo em meu corpo – todas as outras doem, ardem, sangram.

Ouço o barulho da maçaneta da porta girando. Os passos pesados contra a madeira. O Jovem Diabo está de volta à casa.

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