Capítulo VIII

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21 de outubro de 1988, 7h03

Adria levava algumas frutas na sacola. Reuniu os poucos pares de roupas que havia confeccionado para seu filho, uma coberta fina e um vestido velho. Na trouxa, alguns trocados. Talvez desse para a compra de uma passagem. Trancou portas e janelas e seguiu, sem sequer olhar para trás, para o lado oposto ao do rio. Sabia que, hora ou outra, encontraria uma estrada. Enquanto isso, Anderson dormia em seus braços, alheio às inquietações que preenchiam a cabeça da mãe.

À medida que o dia avançava, ficava mais insuportável continuar caminhando. As pernas finas de Adria ameaçavam ceder. A uniformidade da paisagem era entediante e desanimadora. Para qualquer lado que ela olhasse, havia apenas árvores – quase todas mortas – e estrada de terra. Nenhum sinal de asfalto. Nenhum ronco de motor. Nada que remetesse ao barulho ensurdecedor de uma cidade e das chagas poluentes que nela proliferavam.

Aproximava-se o meio dia. Sol a pino, suor gotejando das pálpebras. Embora exausta e faminta, não se permitiu uma pausa. Cobriu o rosto da criança em seus braços para que não sofresse com o sol e prosseguiu, passo após passo, lutando contra o corpo exaurido, sôfrego por descanso, e contra a mente indecisa e temerosa sobre seu futuro.

Meu Deus, cuida dessa ovelha desgarrada, Senhor, rezou Adria. Cuida para que eu não me perca nesses caminhos, guarda um bom destino para essa mulher que tanto sofre e não permita que meu filho padeça, tão frágil que é. Senhor, faz-me acreditar que este lugar não é de fato um inferno e mostra-me que há um céu para o qual seguir.

A convicção com que a mulher pensava nesta oração era quase nenhuma. Sua fé havia se dissipado aos poucos durante os últimos meses, mas ela continuava a acreditar que ainda havia algum resquício no qual poderia se agarrar. Talvez esse Deus tão bondoso e todo poderoso estivesse guardando algo tão bom para sua vida que ela mal poderia prever o que seria.

Continuou andando. Perdeu a conta dos passos, das horas. As solas dos pés queimavam dentro do sapato gasto e os calcanhares estavam quase dormentes. O sol já estava mais a oeste, o tempo mais ameno. Resolveu cantar. A princípio, uma melodia tímida, quase inaudível, que foi se transformando em uma cantiga carregada de emoção. Sua euforia com a música quase a impediu de ouvir um som diferente. Um barulho estridente, mecânico. Buzina. A rodovia estava próxima. Adria correu.

Pedindo desculpas ao filho pelo balanço desconfortável, ela esqueceu o torpor dos calcanhares e o incômodo dos pés. Apenas correu. Tudo se tornou vulto. O som da buzina se aproximava e agora Adria podia ver os faróis acesos, piscando para ela. Balançou freneticamente o braço que estava livre, gritando com todo o fôlego que podia. O motorista do caminhão viu o apelo desesperado e diminuiu a velocidade, até que os pneus cantassem sobre o asfalto quente. A porta do passageiro foi aberta e Adria espiou lá dentro da cabine. O motorista era uma mulher.

Por algum motivo, Adria sentiu-se segura ao entrar na cabine do caminhão. Talvez tenha sido o sorriso acolhedor daquela moça, o aperto de mãos que trocaram ou apenas o fato de Adria saber que a mulher poderia ter passado pela mesma situação que ela passou. Por um instante, a única sensação que cobriu Adria foi a de proteção.

– É um belo menino. – Ela disse. Seus cabelos compridos estavam amarrados em um rabo de cavalo debaixo do boné azul. Vestia camisa social com listras róseas e uma calça jeans que ficava folgada demais em suas coxas. Os pés enfiados dentro da bota larga manuseavam com maestria a embreagem e o acelerador enquanto as mãos grosseiras trocavam de marcha vez ou outra. Ela tinha os olhos afiados, bem escuros, como se guardassem o mistério de todas as coisas e também suas soluções, mas não quisesse revelar a ninguém. A boca carnuda estava sempre sorrindo, um breve arquear de lábios. Seu nome era Idália e as rugas quase imperceptíveis de seu rosto denunciavam o meio século que ela alegava já ter vivido.

– O nome dele é Anderson. – Adria revelou. – Eu sou Adria, muito prazer. E muito obrigada por ter me permitido seguir viagem com a senhora. Para onde está indo?

– Para lugar nenhum, pequena Adria. – Ela disse sorrindo, mas não se apressou para esclarecer o que havia afirmado, mesmo vendo a confusão formada no rosto da menina. Falava pausadamente, deliciando-se com cada palavra, cada som e seu significado. – Depois de certo tempo, você percebe que a pressa te leva a lugar algum. Demora muito para perceber, eu admito, já não sou tão jovem assim. Tive que tombar inúmeras vezes para finalmente realizar que não é o tempo que você precisa para levantar que importa, mas o modo como você se ergue. Vejo que já te derrubaram várias vezes, estou certa?

– Sim, não há erro, mas de fato tenho pressa. Tenho uma vida nova para construir, dona Idália. Preciso me afastar desse lugar, dessas lembranças.

– As lembranças não irão deixá-la, minha querida. São parte de sua história, logo, parte de você também. Aprenda a manuseá-las a seu favor. Nenhum sofrimento dura para sempre. – Idália falava com a convicção de uma mãe que havia criado uma dezena de filhos, de uma guerreira que havia vencido inúmeras batalhas, mas perdido muitas outras. Não desviava o olhar da estrada. Adria percebeu, no momento em que ela pousava as duas mãos no volante, que a mulher trazia uma aliança dourada no anelar esquerdo.

– Peço desculpas se estou sendo indiscreta, dona Idália, mas a senhora é casada?

– Sou. – Ela disse, mas arrependeu-se. – Fui. Meu marido agora é morto e enterrado. Restou apenas a memória e a injustiça. Tempos difíceis aqueles, Adria. Esses também são, sem dúvida alguma, mas aqueles... Meu Deus! Homem negro, torturado e morto. Eu ainda persisto, mas nem sempre é possível escalar o abismo que foi cavado sob seus pés.

– Sinto muito por seu marido. – Adria falou baixinho, um tanto constrangida de ter questionado aquilo, mas receosa que um silêncio mortal se instalasse na cabine do caminhão. Decidiu revelar também um pouco de sua história. – Meu marido também morreu, mas não foi enterrado. Alguém encontrará seu corpo em breve, mas eu não me importo com o que façam com ele. A senhora pode ter uma lição de moral sobre o rancor que eu alimento em meu peito, mas simplesmente não consigo perdoá-lo. Todas as noites peço para que sua alma padeça nos vales mais tenebrosos que se possa imaginar e que ele possa provar do que eu provei em suas mãos. É possível esquecer dos atos do homem que cavou o abismo sob meus pés? Nem sempre se pode escalar esse precipício, a senhora disse. Não sou capaz dessa façanha.

– Espero que este homem tenha o castigo que lhe é merecido, mas não cultive mais esta dor dentro de si. Agora você tem mais uma vida para cuidar e para pedir proteção. É no tempo presente que você deve entregar todas as suas forças, minha querida.

– Como devo fazer isso? Estou perdida! Saí de casa e mal sabia cuidar de mim, agora tenho que cuidar de uma criança inocente que, embora não saiba, já presenciou muitas maldades. Estou sozinha, dona Idália... Não tenho ninguém. Às vezes penso que até mesmo Deus me abandonou. Se isto é uma provação, por que tão rude? Será que não tenho aprendido a lição?

– O mundo é cruel, Adria. As pessoas são perversas. Quero que escute bem o que tenho a lhe dizer e nunca disso esqueça. Você será julgada, muitos apontarão o dedo para o seu rosto e falarão bobagens, destilarão veneno, bradarão fúria. Uma mulher tão jovem, já mãe e viúva. Mas eu acredito que chegará um dia em que nós poderemos ser donas de nossas próprias histórias e trilhar nossas veredas sem acusações. Espero que eu esteja viva quando essa época chegar, que você também esteja e que seu filho aprenda desde cedo o significado de espalhar respeito. Eu ouvirei seu nome daqui a alguns anos e me orgulharei de ver a mulher na qual você irá se tornar.

Adria estava chorando. Soluçava muito. Ela não conseguia explicar o porquê – talvez nem quisesse –, mas as palavras de Idália retiraram um peso imenso de sua consciência. As cordas que atavam seu coração afrouxaram um pouco. Ela se permitiu chorar.

– Peço perdão por não te acompanhar nessa jornada, minha querida garota, mas minha casa é este caminhão caindo aos pedaços. Meu destino é esta estrada interminável, sem um ponto final, sem um abraço acolhedor ao entardecer. Deixarei vocês em uma cidade a um dia de viagem daqui. Não é muito grande, mas creio que seja o suficiente para que vocês recomecem essa jornada.

– A senhora não faz ideia do quanto sou grata por isso. Nunca vou poder saldar essa dívida com a senhora. Que os anjos a abençoem.

Idália riu gostosamente.

– Descanse um pouco,menina. Ainda temos alguns pedaços de chão pela frente.    

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