A Benção dos Mortos

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 Fazia poucos anos que meu pai havia falecido vítima de um derrame cerebral fulminante. A dor da perda havia, na medida do possível, sido amenizada e eu, minha mãe e meus irmãos e irmãs seguíamos em frente com nossas vidas.

 Nunca fui uma total incrédula mas, até então, pouca experiência com o sobrenatural tivera e, de longe, nenhuma se aproximava daquela que relato nesta história.

 Numa noite tive um sonho onde vagava sozinha por ruas desertas de uma cidade muito parecida com aquela onde vivo. Sabia de alguma forma que, embora semelhante, não era minha terra natal. Além disso o lugar tinha um clima gélido e brumoso com uma constante névoa que obstruía parcialmente minha visão.

 Após algum tempo caminhando notei vultos movendo-se naquela cerração. Ouvia suas vozes. Os via diáfanos no meio da bruma. Logo havia uma série de pessoas passando próximas a mim, ao meu redor, indo e vindo sem, aparentemente, perceber que estava lá também. E não conseguia divisá-las com clareza em meio aquela névoa estranha e constante.

 Foi quando me aproximei de uma rua pequena. Segui em frente e algumas dessas pessoas indefinidas também andavam por lá. Mais adiante notei que no lado esquerdo dessa rua existia uma casa. A única construção que pude enxergar com clareza no que pareciam ser dois grandes descampados em ambos os lados.

 Em frente a casa existia uma fila de pessoas que iniciava-se na porta da construção, seguia pela rua e perdia-se nas frias brumas esbranquiçadas. Me aproximei dessa gente e consegui ver-lhes claramente as características e feições embora não reconhecesse ninguém entre elas. Não até notar que uma de minhas irmãs, a mais velha, estava no começo da fila, prestes a entrar na casa.

 Tentei ir em sua direção mas fui impedida por uma mão que interrompeu meu movimento segurando-me gentilmente pelo braço. Era meu pai falecido. Fiquei, ao mesmo tempo, espantada e feliz por ele estar lá. Abracei-o e contei ter visto minha irmã na fila. Meu pai informou que ela estava ali para receber a benção dos mortos. Estranhei essa afirmação mas continuei a conversa dizendo que queria entrar na fila com ela e receber a benção também. Meu querido pai explicou que não seria possível. Somente a irmã mais velha deveria fazê-lo.

 Quando ia argumentar e pedir mais explicações meu pai afastou-me daquele lugar, sempre com carinho e delicadeza, me conduzindo de volta para o ponto de onde viera, em meio a densa névoa. Ali ele despediu-se de mim com outro abraço e um beijo afetuoso em minha testa, pedindo que partisse de volta para casa. No instante seguinte estava envolta pelas névoas densas sem conseguir ver ou ouvir qualquer coisa. Caminhei sozinha por aquela vastidão que parecia não ter fim e, depois de certo tempo, acordei.

 O tempo passou e, após alguns meses, acabei por esquecer-me desse sonho. Até receber a notícia de que uma de minhas irmãs, justamente a mais velha, aquela que vira na fila do sonho estranho, sofrera um acidente automobilístico horrível, com seu marido e os dois filhos pequenos, e que por um verdadeiro milagre não haviam morrido no desastre.

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