Um Mal que Veio Comigo

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 Minha irmã havia morrido. Após alguns poucos e intermináveis meses de luta contra o câncer minha irmãzinha perdia a batalha. Sofrera muito desde o diagnóstico, infelizmente, tardio. Seus dois médicos fizeram o possível mas como a doença silenciosa fizera-se notar depois de bastante avançada, não havia muita esperança.

 E o esperado aconteceu. Depois de muito sofrimento que transformou a mulher forte e ativa que conhecia num arremedo esquálido, frágil e preso numa cama de hospital, a morte veio como um livramento. Tanto para a desafortunada quanto para o restante da família que sofreu junto a ela.

 Minha querida irmã descansava agora livre dos suplícios atrozes enfrentados em seus últimos dias na Terra. Estava no paraíso, ao lado dos santos e dos anjos, merecedora, com a boa católica que fora por toda a vida.

 Era o que eu, destruído com sua partida precoce, queria acreditar.

 O velório e enterro foram rápidos. No mesmo dia de sua morte. A pobre falecera durante as primeiras horas da madrugada então os preparativos para o funeral se deram no início da manhã daquele dia. É verdade que poucos puderam comparecer à cerimônia. A maior parte dos presentes era composta por nós, irmãos e parentes mais próximos, os companheiros e testemunhas das penúrias sofridas pela infeliz. Essa foi, entretanto, uma decisão unânime. Estávamos devastados, tanto física quanto emocionalmente, por conta dos últimos meses e seria bom que nossa mãe, com idade avançada e tão judiada quanto nós, fosse poupada de mais sofrimento o quanto antes.

 A falecida recebeu os últimos respeitos no espaço reservado anexo ao próprio cemitério onde seria enterrada. A cerimônia durou até o começo da tarde quando um padre amigo da família realizou as orações derradeiras e o caixão seguiu para o sepultamento. Minha irmã foi colocada em seu local de descanso junto aos outros membros da família que se foram antes dela, em meio ao pranto e lamurio dos que ficavam para trás.

 Voltei para casa sozinho e a pé. Meus parentes ofereceram carona mas, gentilmente, recusei. Precisava de um tempo sozinho para processar os acontecimentos recentes e tentar pôr a cabeça no lugar. Sempre fui um andarilho. Por mais que tivesse carro ou outro meio de transporte não me negava um momento ou outro de longas caminhadas para espairecer e acalmar a mente. Foi exatamente o que fiz.

 A tarde ensolarada que marcou o primeiro dia do falecimento de minha irmã dava lugar a uma noite de estrelas e uma vistosa lua crescente. Despedi-me dos irmãos e familiares e segui para minha casa.

 Após quase duas horas de caminhada, quando já iniciara a descida da ladeira amena em cujo final situava-se minha residência, percebi pela primeira vez que algo estava errado.

 Um sentimento lúgubre, incômodo, indefinido me acompanhara por todo percurso, desde quando deixei o cemitério. Tratava-se de uma sensação estranha que nunca havia experimentado antes. Ainda naquele ponto do caminho não conseguia definir o que se passava comigo. Estava lá, em algum lugar num canto de minha mente. Mas não fazia ideia do que se tratava. No entanto, existia e permanecia comigo.

 Julgando ser aquilo um efeito do luto procurei não dar atenção e segui meu caminho. A casa estava a menos de dois quarteirões de distância. Continuei andando pelas calçadas de minha rua iluminada pelas luzes pálidas dos postes e de alguma eventual casa que estivesse com suas janelas ou portas abertas.

 Chegando em casa, quando abria o trinco do portão, o sentimento ficou mais forte. Quase conseguia defini-lo a partir de então. Tratava-se de algum tipo de sentido ou intuição que me eram completamente novos. Mas, mesmo inédita, aquela sensação parecia querer me avisar de que algo estava muito errado. Uma coisa que não deveria acontecer tinha lugar naquele momento, a minha volta, comigo, segundo o parco entendimento que tinha me permitia descrever. Abri o portão, atravessei o pequeno jardim lateral e segui em direção a porta de entrada, um pouco mais a frente no corredor por onde caminhava.

 Enquanto dava a última volta nas chaves fui assaltado por aquela sensação nefasta com mais intensidade. Ainda assim prossegui e abri a porta da sala. O cômodo estava escuro mas alcancei o interruptor, ali mesmo, do lado de fora e acendi as luzes.

 A visão grotesca que se apresentou diante de meus olhos só foi tolerável devido a rapidez com que aconteceu.

 De meu lado esquerdo, do corredor onde ainda me encontrava, uma massa amorfa de escuridão escapou para dentro da minha casa. Rastejava rente ao chão e era pequena, do tamanho de um gato ou algo do tipo. Moveu-se rapidamente pelo cômodo como que estudando o ambiente que acabara de adentrar. Havia algo inteligente naquela coisa hedionda. Assim que coloquei os olhos nela eu soube disso. Com a mesma rapidez insidiosa na qual arrastou-se para o interior de meu lar, aquele ser tomou a direção do quarto a direita, desaparecendo na escuridão lá de dentro.

 Permaneci estático na porta, ainda do lado de fora da casa, tomado de assalto pelo que acabara de presenciar. Um pensamento imediatamente me veio à cabeça: Carreguei aquela coisa comigo o tempo todo. Ela, de alguma maneira, se prendera a mim no hospital, no cemitério ou mesmo na rua, não há como ter certeza, e veio comigo para dentro de casa.

 O lugar onde morava não era grande. Um quarto, sala, cozinha, banheiro e um pequeno quintal cimentado nos fundos. Procurei aquela coisa pela casa inteira. Não poderia permitir que minha esposa e meu único filho, que estavam viajando na ocasião, morassem no mesmo lugar onde aquilo se alojara. Tudo, entretanto, em vão. Não encontrei sinal do que vira na sala. Mas sabia que continuava lá, não havia ido embora. Escondia-se em alguma região onde os sentidos humanos não tinham acesso. De uma forma ou outra permanecia lá, dentro de onde morávamos.

 O tempo passou, os dias tornaram-se meses e os meses, anos. Meu filho cresceu e a necessidade de uma casa maior fez com que mudássemos daquela. Mesmo nunca mais voltando a ver aquele ser sabia, de alguma forma, que não havia partido. Pelo contrário. Tinha se estabelecido por lá. Minha esposa, após o ocorrido, não gostava de ficar sozinha, dizendo sentir-se observada e ter visto, por mais de uma vez, vultos se movendo pela casa, as vezes em plena luz do dia. Essas visões começaram ocorrer tempos depois do que me aconteceu na noite do enterro de minha irmã. E nunca disse uma palavra a respeito desse evento para minha esposa.

 Meu filho, que nascera com problemas respiratórios, teve uma piora em seu quadro clínico a partir de então. E sempre comentava sobre um sonho recorrente onde uma pessoa envolta em sombras o perseguia pela casa. O pobre, mesmo tendo por volta de oito anos e já não sendo tão criança assim, acordava ofegante, quando não chorando, ao sonhar com essas coisas assustadoras.

 Portanto foi um alívio para todos quando deixamos aquela casa. Felizmente a coisa sombria não nos acompanhou, ficando por lá, aguardando, talvez, os próximos moradores. Ou deixou o local, sozinha, em busca de outras paragens onde habitar. Nada disso, obviamente, jamais saberei ao certo.

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