O PODER DO PERDÃO

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Escrito por: feiticeira_nordica


Estava no carro com meu adorável marido conversando com ele para mantê-lo acordado. Falávamos sobre como o final da minha série favorita foi uma bosta.

- Deixa isso pra lá, amor.

- Não passei oito anos assistindo para terminar desse jeito!

Ele gargalhou e eu fiquei emburrada.

- Não tem graça!

- Não seja birrenta.

Revirei os olhos e ele bocejou novamente.

Eu estava preocupada porque o olhar dele era de cansaço.

- Vamos parar em um hotel e amanhã prosseguimos viagem. - falei olhando para a estrada.

- Você está morrendo de sono.

Ele piscou algumas vezes. Por que tínhamos dirigido tanto? Precisávamos parar. Ele estava exausto e eu também.

- Tem razão. - Ele me respondeu passando a marcha. - Vamos parar em algum lugar.

Aproximei-me dele e lhe dei um selinho. Quando me afastei, tínhamos acabado de entrar em uma curva acentuada. Algo vinha em nossa direção, mas o clarão dos faróis não me deixava enxergar nada.
Um grito sufocado subiu pela minha garganta e morreu na boca.

Nós iríamos morrer. O impacto fez com que meu corpo se apertasse o banco. Senti o carro começar a capotar inúmeras vezes.

Uma, duas, três e não sei mais quantas. Era o meu fim. Olhei para Daniel do meu lado e tive um vislumbre de um olhar assustado. Tentei segurar a mão dele, mas a escuridão me cegou rapidamente.

2 anos depois

Eram 08:30 e eu andava pelo parque, tinha me acostumado a fazer isso todos os dias, já que não conseguia dormir e não andaria de madrugada no parque correndo risco de vida, então esperaria amanhecer.

"A vida é tão frágil... Basta um sopro do destino e a gente a perde. Mas o que é viver? Para mim viver é ter amor na vida. Há diferentes tipos de amor; o fraterno, o de seus pais, de seus amigos. Mas tem aquele que te marca para sempre. É um amor inesquecível que toma metade do seu coração e se ele se vai você é forçada a sobreviver com só metade do coração".

Sentei no banco e peguei um livro da mochila. A Batalha do Apocalipse. Não lia romance porque era capaz de chorar mais do que o normal. Fazia-me lembrar dele.

"Odiava lembrar das coisas. Na verdade, odiava lembrar das coisas ruins. Porque gostamos de lembrar de momentos felizes como aquele dia divertido de praia com os irmãos ou aquela balada com as amigas. Mas é terrível pensar em memórias que trazem saudades e não podem ser revividas".

Depois de passar mais ou menos uma hora lendo, decidi ir para casa. Meu plantão no hospital começava a uma da tarde. Precisava descansar um pouco, então fui até meu carro, um Honda CRV da cor branca. Dirigi até meu apartamento na Graça, um dos bairros nobres de Salvador.

Estacionei o carro na garagem e peguei o elevador. Cheguei no meu apartamento jogando minha mochila no sofá e fui direto para a cozinha fazer um lanche. Decidi comer um sanduíche de atum. Depois que terminei fui tomar um banho. Nem me incomodei em me vestir e me joguei na cama, caindo rapidamente no sono.

Acordo às 11: 50 com meu celular tocando. Atendo sem ver quem é.

- Alô.

- Olá irmãzinha, como vai?

- Estou bem.

- Mesmo?

"Ela sabe que não estou bem, mas mesmo assim me liga todo santo dia e pergunta a mesma coisa. Não estou bem desde que os perdi".

- Sim.

- Liguei para te dizer que você vem aqui em casa amanhã.

"Ela é assim desde que somos adolescentes. Marca minha presença nos lugares sem eu saber. Não pergunta o que eu acho".

- Lorena! Você sabe que eu não gosto que faça isso.

- Eu sei e não me importo. Te vejo amanhã às 10:00 e nem pense em faltar. Você sabe que vou até aí e te arrasto pelos cabelos.

- Eu...

Ela desligou. Bufo irritada. Já deveria ter me acostumado com isso.

"Não sinto vontade de sair desde o acidente. Não deveria ser assim. Tudo está errado. O jeito como eu acordo está errado. Como eu digo uma simples frase está errado. Até mesmo o canto dos pássaros está errado.
Sempre achei que tivesse o controle da situação, mas não tenho. Tudo o que tenho é o mais mísero do entendimento do meu ser; e para ser sincera, nem posso entender eu mesma.
Por que tudo tem que ser tão difícil? A vida não poderia ser como nos filmes infantis que os problemas são os mais fúteis possíveis? Acho que não. O universo não me daria essa honra".

Tomo outro banho para tirar a minha cara de "acabei de acordar e quero continuar dormindo", almoço e vou para mais um dia de trabalho.

Estaciono o meu carro no estacionamento do Hospital da Bahia, desligo o motor e respiro fundo criando coragem para enfrentar mais um dia. Suspiro, tiro as chaves da ignição e me dirijo a entrada da sala de emergência.

Cumprimento os colegas que estavam de plantão, penduro minha bolsa no vestiário dos médicos e visto o jaleco. Sou chamada para atender um paciente e volto rapidamente para a emergência.

Os paramédicos chegam com um homem. Fiz todos os procedimentos para examina-lo. Porém, quando ele acordou, avisou que estava com um tumor e tinha pouco tempo de vida.

O deixei o mais confortável possível e ele ligou para a família. Ele disse que queria conversar comigo. Estranhei, mas decidi ir ver o que era.

- Eu sinto muito. - ele disse com os olhos marejados.

- Pelo que?

- Fui eu, eu o matei.

- O que?

- Eu deveria ter ficado para prestar socorro. Por favor, me perdoe. Eu pedi para vir para cá porque era minha última chance de dizer isso antes de partir.

Não pode ser, sinto meus olhos arderem e as lágrimas não tardam a cair.

- Como tem coragem de vir até aqui?! Você tirou o amor da minha vida de mim!

"O que eu sentia!? Raiva. Sei que estava sentindo meu rosto queimar de raiva e minhas mãos fecharam pela minha indignação. Como ele tem coragem de vir aqui? Mas o pior era a dor que sentia em meu peito. Parecia fundo, doído. Quebrado..."

- Eu sei que não mereço, mas desde aquele dia eu tenho vivido com essa culpa dentro de mim. E eu preciso que me perdoe para eu partir em paz. - Ele diz chorando que chega a soluçar.

"Então devo me compadecer? Não! Ele tem que morrer com essa culpa. Sabendo que tirou a vida de alguém muito querido e deixou as pessoas que o amavam com um vazio no coração. Ele podia ter evitado e tudo que precisava fazer era ter ficado e ajudado em vez disso ele fugiu".

- Então você vai morrer com essa culpa.

Disse com raiva e saí dali me acabando de chorar. Fiquei um mês em coma me recuperando daquele acidente, quando acordei só perguntava pelo Daniel. Três dias depois que acordei minha irmã me disse que ele tinha morrido. Fiquei devastada, me perguntei porquê não fui também. Passei esses dois anos sobrevivendo, não tinha mais vontade de viver. Perdi meu bebê no acidente, e perdi o Daniel. Entrei em depressão, minha irmã me internou numa clínica e eu melhorei. Não 100%, mas o suficiente para não tentar me matar outra vez. Agora ele vem pedir perdão, arrependimento não vai trazer tudo o que perdi de volta.

"Por que ele tinha que aparecer? Será que não fui castigada o suficiente? Minha mãe vive falando que Deus sabe de todas as coisas e que é tudo no tempo Dele. Mas enquanto a mim? Não importa o meu tempo? Será mesmo que tudo isso estava premeditado a acontecer para que eu tirasse uma lição".

- Beatriz, o que houve? - Larissa, minha melhor e única amiga, pergunta com uma expressão preocupada. Estava sentada no chão do banheiro, ela se senta ao meu lado. Conto para ela tudo o que aconteceu e ela me olha com cara de pena.

- Talvez você devesse perdoá-lo.

- Como pode dizer isso?

- Bia, eu sei que você sofreu muito com tudo, mas você precisa seguir em frente. O Daniel não ia gostar que você parasse de viver. Talvez essa seja o modo de você aceitar que eles se foram. Se você não perdoar vai ter que viver com o peso na consciência de ter negado perdão a uma pessoa que vai morrer. E ele deve ter sofrido também, acredite, sentimento de culpa é uma coisa que te destrói.


"A culpa é um sentimento terrível. Viver com ela é ir morrendo aos poucos. Porque é algo que você não pode apagar com a borracha e escrever de novo. Você tem que aprender a conviver com aquilo que fez".

- Devo sentir pena dele?

- Não. Pense que não está fazendo isso por ele, mas sim por você. Esse perdão é o seu recomeço. Um capítulo ruim da sua vida termina. E você vai partir para outro onde grandes alegrias te esperam.

"Perdão? É fácil dizer que é preciso perdoar, mas fazer aí é outros quinhentos. Como perdoar alguém que te tirou a pessoas que você amava. Você conseguiria perdoar? Porque isso seria livrá-lo da culpa e eu não posso fazer isso".

- Eu não sei se consigo. - Eu falo com a voz fraca por conta do choro.

- Pensa nisso, está bem?

Assinto com a cabeça e ela sai do banheiro.

"Será que esse é meu recomeço? O Daniel sempre me disse que nossos caminhos tinham sido traçados pelo destino. É irônico... Ele une as pessoas e depois as separa. Mas talvez saber recomeçar a vida seja tão importante quanto saber viver".

"Talvez ela tenha razão, ele vai morrer não adianta eu ficar guardando essa raiva dentro de mim. Eu não posso mudar o que aconteceu, mas eu posso começar a agir diferente. Não vou me perder na raiva e no medo de seguir em frente. Eu preciso fazer isso, quem sabe assim eu tenha um pouco de paz".

Levanto do chão, vou até a pia e lavo o meu rosto. Olho-me no espelho e estou horrível meus olhos estão inchados do choro. Caminho até o quarto do homem e entro. Ficamos nos encarando e ele tem um olhar carregado de arrependimento e culpa. Entendi o que a Larissa quis dizer quando disse que a culpa pode destruir.

- Eu te perdoo

Ele sorri e o aparelho começa a apitar, os enfermeiros entram e eu chamo a Larissa. Não tenho condições de fazer nada. Eles tentam salvá-lo, mas ele não resiste.

- Hora da morte 14:45. - A Larissa diz e me olha.

Ele morreu.

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