Capítulo 3

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Christie

São Francisco

(em um bar chamado Sioux)

O meu copo de uísque já estava vazio, e o queimar da garganta por sua vez estava acalantado, olhei para Dakota, os cabelos completamente brancos, que já foram, azuis, rosa, roxo, verde, metade branco metade preto, estavam trançados de uma forma que provavelmente nem em outra vida eu conseguiria imitar, a pele da cor que declarava sua ascendência indígena (caso o nome não fosse o suficiente para você presumir), os olhos brilhantes de sempre embaixo do delineador, as vezes eu pensava que talvez ela fosse um espirito indígena reencarnado, a beleza era completamente diferente do que se vê por ai, do outro lado do balcão, era o sonho de todos que ali estavam conseguir ao menos, um beijo dela, não posso dizer que já não foi também o meu um dia, mas isso foi, bom, há muito tempo.

- Dakota, por favor. – Chamei, enquanto deslizava o copo sobre o balcão em sua direção, a queimação na garganta era certamente a melhor opção para me fazer tentar ignorar o meu corpo inteiro que queimava como se eu ainda estivesse visitando o inferno.

- Christie, como você vai voltar para sua casa depois sem no mínimo destruir toda sua Harley? – essas foram suas palavras, mas os seus olhos disseram que os meus não podiam esconder a dor, por mais que meu rosto pudesse.

- Acho que esse é o menor dos meus problemas, talvez fosse até uma boa, acabar com essa porcaria de uma vez. – No caso a vida, não a moto.

Ela não me respondeu, apenas riu e colocou o copo já cheio na minha frente, e de bônus, também a garrafa, que eu sabia ser por conta da casa, ela não precisava dizer, eu não era muito de falar, e ela não era muito de falar comigo, nossa amizade era baseada em companhia, não em palavras.

****************

A garrafa vazia caiu na lixeira com um baque surdo, sai enquanto Dakota me esperava com a porta aberta e a chave já na fechadura, ela trancou o bar, e seguimos em frente, a pé pois nem a pau ela me deixaria dirigir agora, e eu por minha vez me poupei de argumentar, senti o ar gelado da rua e contrariando todas as expectativas tirei a jaqueta jeans, um pouco de ar frio cairia bem, eu estava meio saturada de calor, se bem me entende. Paramos na frente da sua casa, ela não me convida a ficar, pois sabe que eu recusaria de qualquer forma, um boa noite silencioso é dito, e sigo meu caminho até a minha própria casa.

O silencio das ruas vazias e da cidade adormecida me traz um sentimento que eu não estou muito acostumada a sentir, paz. Os únicos sons que eu podia escutar eram os das minhas botas batendo no chão úmido do sereno e da minha respiração que também era visível entre a nevoa comum na cidade durante a noite. Chegar em casa me deixou frustrada, ao menos a janela do meu quarto estava aberta, ou deveria estar, foi como deixei, entrei e subi o mais silenciosamente o possível a escada, a porta do quarto da minha mãe no segundo andar estava aberta, ela tinha me esperado, entrei e fui até a cama, tirei o cabelo do seu rosto.

- Boa noite – sussurrei

Fechei a porta ao sair, e me dirigi ao sótão, no caso, meu quarto, entrei e para meu alivio a janela estava sim aberta, tirei as roupas e as joguei no sofá, peguei meu caderno de desenhos e o lápis, e me atirei na cama, os lençóis queimaram minha pele, fechei os olhos e me permiti lembrar do que passei o dia tentando esquecer.

Quando abri os olhos desejei nunca ter acordado, todo meu corpo queimava, e eu me sentia tão esgotada que não sabia se poderia ao menos levantar da cama, minha visão estava turva, porém contra a luz do amanhecer que brilhava na janela pude reconhecer os longos cabelos loiros de Sifiel, mas ele não estava sozinho, cabelos negros e vestes brancas o acompanhavam, me lembro vagamente da figura mas agora não conseguia dizer ao certo quem era, as vozes estavam em um embate feroz, em uma língua que eu não conhecia, uma dor peculiarmente forte me atingiu e arfei, no tempo de um piscar Sifiel estava ao meu lado e eu já não podia mais saber se quem o acompanhava ainda estava ali, ele passou a mão por cima do meu corpo e o senti queimar, quando isso sessou, a dor que eu sentia já era menor, os seus olhos rubi me encaravam, e seu rosto feito o mármore mais bem esculpido que já existiu expressavam algo que eu não entendi, "você não deve lembrar, e vai ser melhor se não tentar, claro que se quiser sofrer será um prazer" um leve sorriso brilhou nos seus lábios e nos seus olhos a ironia e diversão dançaram, "mas acho que não lhe agradaria muito" sua voz perto do meu ouvido foi a ultima coisa que processei antes de apagar totalmente.

Agora abro os meus olhos e posso entender que algo deu profundamente errado na minha visita ao inferno, flashes ainda permeavam na minha mente, o que me fazia sentir medo de dormir, meus sonhos trariam as lembranças e o aviso de Sifiel me fez ter a certeza de que eu realmente não queria lembrar, meu corpo me dizia que eu só tinha sobrevivido porque estava possuída por Sifiel (e os dois dias que passei apagada também) e isso já era o suficiente pra mim, mais algumas cicatrizes para a coleção e com sorte eu não passaria por isso de novo, mas algo dentro de mim me dizia que sim, eu passaria.

Olho para o caderno em meu colo, minha salvação para impedir o sono de bater a minha porta, abro ele e pego o lápis, o desenho da garota que me xingou no estacionamento me encara, algo raro acontece, eu sorrio, e percebo algo mais raro ainda, gosto da irritadinha.

Chama NegraOnde histórias criam vida. Descubra agora