3. Anchorage

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"Anchorage: O desejo de segurar o tempo enquanto ele passa, como tentar se segurar em uma pedra no meio de um rio com muita correnteza."

– Catraca Livre

Eu me vi sozinho mais uma vez, mas papai e mamãe estavam no mesmo cômodo que eu.

Na mesa de jantar, eu mantinha meu olhar baixo porque eu sentia que qualquer coisa que eu fizesse irritaria meu pai. Pelo jeito, minha mãe também pensava o mesmo. Ele era o monstro que eu sempre fazia nos desenhos da escola e ele não era tão diferente da realidade, era isso que deixava as minhas professoras preocupadas. No entanto, eu sempre apanhava quando elas tentavam fazer alguma coisa, por isso a frequência dos meus desenhos diminuíra.

O jantar terminou e a minha mãe e eu cuidamos das louças. E era sempre assim. Um silêncio absurdo que me enlouquecia, como um tique-taque diabólico que me acusava constantemente de estar perdendo tempo.

Após fazer o que eu tinha que fazer, corri para o quarto para estudar. Ouvir tantas vezes a palavra "imprestável" direcionada a mim pelo meu pai, me fez ter forças para querer ser totalmente o oposto. No entanto, após comprar o meu primeiro celular com o meu próprio esforço, ele me roubou e me deixou sem um dos meios que me fariam agilizar todo esse processo de independência. Mas, por bondade da vida, ele não queimara meus livros de séries avançadas e eu ainda podia estudar por eles.

Sempre tive facilidade com os números, mas física ainda soava como algo muito confuso para mim, então, era por ela que eu começava e nela que eu focava. Apesar de ainda estar no ensino fundamental, eu queria me adiantar para ter que focar em cursos que pudessem me garantir algum emprego e não só diplomas da educação básica que me autorizassem ingressar na faculdade.

Passado as dez horas da noite, saí para ir ao banheiro e percebi que meus pais já haviam ido dormir. Segui sorrateiro para que eles não soubessem que eu ainda estava acordado, porém, ouvi ruídos vindo do quarto deles e aquilo me atiçou a curiosidade. Será que minha mãe amava ele quando eu não estava por perto? Ela também tinha vergonha de mim?

Cheguei próximo a porta e ouvi uma voz grave que sussurrava coisas nojentas para a minha mãe, que tinha a voz abafada, mas o som que tentava lhe escapar os lábios era de choro.

Minha mãe estava sendo abusada. E eu não sabia o que fazer.

O turbilhão de pensamentos invadiu minha mente e eu fiquei sem chão e sem rumo. Respirei e tentei voltar com cuidado para não fazer barulho algum. Quando cheguei em meu quarto, corri para a janela e escapei por lá. Por morar no interior do Maranhão, a grande maioria das casas, se não todas, possuíam apenas um andar e isso me foi útil naquele momento. Eu precisava de ar. Porém, o lado ruim de habitar essas comunidades sempre foi a intromissão das pessoas. Com medo, segui em direção ao matagal que havia em frente à minha casa para evitar ser visto por algum vizinho e espancado amanhã pela manhã por um monstro que dividia o teto comigo porque algum desavisado achou que estava fazendo o certo ao ajudar o capeta.

O tempo passava e a necessidade de livrar a mim e a minha mãe me consumia, mas também era o que me impulsionava. Eu só precisava me planejar.

Eu ouvi um barulho, que parecia ser de passos, a minha frente e o meu corpo congelou.

Meu Deus!

O ser se aproximou um pouco mais e eu comecei a rezar pela minha alma e pela libertação da minha mãe. Eu poderia morrer, mas a mulher da minha vida tinha que ter sua integridade de volta. Deus não é mal. Fechei os olhos e me encolhi, falhando ao tentar não chorar.

— Juliano? – reconheci a voz e o meu espírito e corpo se aliviaram.

— Lucas? – ele sorriu e eu, sem controlar o impulso, abracei-o. Ele, sem motivos, retribuiu. E eu chorei nos braços do garoto que me deu o primeiro beijo.


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Como superar o EX [EM PAUSA]Onde histórias criam vida. Descubra agora