Este livro se baseia em recordações. Trinta e cinco anos depois, algumas permanecem
vivas, e outras se diluíram ou apresentam lacunas.
As memórias de Christiane F. envolvem pessoas e encontros. Dentre aquelas, nem todas
querem se lembrar do que passou nem do assunto a que se referem estas páginas. Por isso
alguns nomes próprios foram modificados, e outros mantidos no anonimato.
“Ela vive nesse mundo como Ariadne, a repudiada, na ilha deserta de Naxos, entregue ao
pranto e à oração. Baco, o deus resplandecente da embriaguez, a abandonou. O delírio do
amor se foi, e ela só espera agora um único visitante: a Morte. Já pode ouvir sua chegada e
abre-lhe os braços, para passar deste mundo à sombra eterna.
Mas quem se aproxima com passadas aladas — sem que ela saiba — é Teseu, seu
libertador, para levá-la de volta à vida.”
Stefan Zweig, Marceline Desbordes-Valmore.
Sua obra.
O mito Christiane F.
Já é tarde para a menina. O dia foi longo e a noite cai. Molhado de chuva, o asfalto
berlinense cintila. Não tem mais tanta gente na rua e ninguém presta atenção na garota, cujo
rosto deixa claro que sequer tem 14 anos, apesar dos cabelos vermelho-escuros e saltos altos.
— Me dá 1 marco? — pede a cada pessoa que passa.
Tem a aparência frágil de uma eguinha: seca, com o pescoço comprido e a crina longa. Dá
a impressão de ser uma esfolada viva e é rápida nas respostas.
— Punheteiro! — reclama, xingando o sujeito que não deu a mínima ao pedido de
dinheiro.
A menina leva uma bofetada e grita: — Merda!
Logo depois, um Ford antigo passa bem diante dela e para. A garota estufa o lábio
inferior com um trejeito de birra. Ela mede 1,75m, tem as pernas compridas e finas. Dentro
do carro, um sujeito meio gordo, de uns 45 anos. Sem uma palavra, ele abre a porta do carona
e a garota entra. O carro é cinzento, como todos parecem ser naquela noite.
Ela avisa ao homem:
— Eu não faço sexo.
— Por quê? — pergunta ele.
— Tenho um cara, só faço com ele.
— Então pelo menos me chupa.
— Eu vou vomitar.
— Bom, uma punheta, então? Só sobrou isso.
— São 100 paus.
— Ok.
Mais tarde ela disse ao namorado que foi por ele que fez aquilo. Ainda havia tentado
estendendo a mão, sem conseguir nada. De um jeito ou de outro, precisava conseguir uma
grana. Só por isso entrara no carro do cliente. O rapaz não acreditou numa palavra da história
e acusou: — Você teria feito, mesmo que eu nem existisse. Toda essa merda é porque a gente
se pica.
Eles sonharam, então, com uma vida sem ter que correr atrás de heroína, e a garota
prometeu nunca mais ir para a cama com um cliente.
Quando gozou no Ford, o homem agarrou a nuca da menina com a mão direita,
segurando o sexo com a esquerda. Ele gemeu como se fosse vomitar. Por muito tempo.
Depois, silêncio. Ela saltou rápido do carro, que se foi, e andou debaixo da chuva para
encontrar o namorado, com a nota de 100 marcos na bolsa de pano.
O rapaz, que tinha a mesma idade que ela, se contorceu de dor na plataforma da estação
de metrô do Jardim Zoológico.
— Tenho um pouco aqui, já deve dar — disse ela em voz baixa ao adolescente agachado,
segurando a barriga e as pernas.
Ela ajudou-o e os dois saíram dali e foram se esconder no banheiro da estação. Ele se
chamava Detlev, era moreno, magrelo e estava encharcado de suor. Ela era Christiane F.
Depois de aplicarem uma picada na dobra do braço, Christiane contou como conseguiu o
dinheiro da droga. Detlev ficou chateado e teve uma crise de raiva até a morfina começar a
agir, fazendo a dor desaparecer e deixando-o mais relaxado.
Tudo bem, um dia não vai ser mais assim.
Essa cena de filme foi tirada de uma das histórias mais célebres dos últimos quarenta
anos.
Um sucesso comparável aos de Winnetou, de Karl May, e Harry Potter, de Joanne K.
Rowling. Só que essa é uma história real: a história de Christiane F., aliás Christiane Vera
Felscherinow.
Antes do filme, houve o livro, publicado em 1978 na Alemanha com o título: Christiane F.
— Wir Kinder vom Bahnhof Zoo (“Christiane F. — Nós, crianças da estação do Zoo”, traduzido
no Brasil como: Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída…). Foram vendidos mais de
quatro milhões de exemplares desde então. Traduzido em inúmeras línguas, é ainda um dos
livros de não ficção mais lidos no mercado alemão.
Christiane F. foi leitura obrigatória em muitas escolas alemãs e, três anos depois da
publicação, o filme foi um sucesso, inclusive nos Estados Unidos. Se você digitar “Christiane
F.” no Twitter ou no Facebook, verá páginas e mais páginas de fãs, sempre atualizadas, fóruns
e publicações do mundo inteiro.
No entanto, Christiane F. é uma personagem trágica — uma anti-heroína para quem a
própria empatia foi fatal e que prefere gostar a odiar o pai que a espancava. A partir dessa
experiência, conseguiu desenvolver um fascínio devastador por pessoas que a assustam ou
que a obrigam a chegar aos limites físicos. É também uma menina a quem a mãe, uma
mulher aparentemente submissa e fraca, encorajou a nunca se imaginar vítima das
circunstâncias, e sim “durona”. E que afogou todos esses sentimentos controversos no álcool,
na droga, na permanente busca por alguma dependência.
Christiane tinha apenas 14 anos e estava profundamente mergulhada no círculo vicioso
da heroína, da criminalidade, do desregramento emocional e da prostituição. Sabia que
existiam raras saídas para essa situação mortalmente perigosa, mas não conseguia se fixar
nelas, talvez justamente por esse combate contra a dependência ter se tornado, há muito
tempo, sua mais forte motivação existencial. As consequências do vício preenchiam a vida,
enquanto as causas produziam apenas uma sensação de vazio.
Christiane Felscherinow foi ao fundo — física, social e moralmente. Mas a acuidade com
que a jovem berlinense observou a própria queda e a consciência com que encarou o seu
destino sem acusar ninguém além de si mesma explicam a simpatia com que a opinião
pública a recebeu.
Escrevendo histórias de sua infância no conjunto habitacional Gropius, no subúrbio,
Christiane Felscherinow, a jovem viciada em heroína que se prostituía na Kurfürstenstraße e
na estação do Jardim Zoológico (comumente chamada estação do Zoo) teve tanta repercussão
quanto, muito antes dela, Goethe, com Os sofrimentos do jovem Werther. O grande escritor
alemão acreditava estar dando um alerta contra a autopiedade e o caos dos sentimentos, mas
foi criticado por ter, com a hipersensibilidade do texto, levado rapazes e moças ao suicídio.
Os sofrimentos da jovem Christiane F. foram celebrados como uma luz lançada sobre
uma parte da sociedade alemã que tinha sua existência até então negada. A adolescente
protagonista se tornou a comovente encarnação da inquietude e da revolta juvenil. A junkie
teve imitadores e se tornou uma estrela, com o vício autodestrutivo escandalizando a opinião
pública. Horst Rieck, redator da revista Stern, conheceu Christiane Felscherinow no início de
1978, por causa do processo de um pedófilo no tribunal de Berlim-Moabit. Christiane tinha 15
anos e vivia na casa da avó paterna em Kaltenkirchen, no norte da Alemanha. O acusado
pagava jovens prostitutas com heroína e tinha sido um de seus clientes.
Horst Rieck fez o levantamento do processo, falou com as vítimas e ficou perturbado
com o depoimento de Christiane:
— O que ela contava estava quase pronto para ser impresso. Ela parecia ter sido
espremida como uma esponja.
Em 2012, Christiane relembrou:
— Logo no primeiro encontro, disse a Horst que tinha vários diários escritos com minhas
histórias. Foi o que deu a ele a ideia do livro.
A entrevista inicialmente prevista com a testemunha Christiane Felscherinow se tornou
então um trabalho de três meses, no verão de 1978, ao qual Rieck associou Kai Hermann, seu
colega na Stern.
Em 1968, os pais de Christiane tinham deixado Nützen, no Schleswig-Holstein para ir
morar em Berlim. Ela acabara de completar 6 anos. Na excitação da mudança para as margens
do Spree e na esperança da família Felscherinow em aproveitar o bom contexto berlinense
para abrir uma agência profissional de casamentos é que se inicia Eu, Christiane F. Muito
rapidamente, no entanto, veio um balde de água fria e o negócio não funcionou como
esperado. A família teve novamente que se mudar, deixar o apartamento grande e antigo que
acabara de ser pintado, na Paul-Lincke-Ufer, em Kreuzberg, e ir para o conjunto residencial
Gropius. O pai afogou a frustração no álcool e descarregou a raiva batendo em Christiane e na
irmã um ano mais nova. A mãe observava, sem fazer nada.
Desde a primeira página da narrativa de Christiane, o destino dos Felscherinow é
interessante, pela maneira como ela via em sua intimidade as estruturas psíquicas dos
membros da família e as suas relações mútuas. São raros os escritores profissionais a terem
conseguido dar conta, de maneira tão tangível, como fez Christiane através do exemplo de seu
pai, da ação devastadora dos fantasmas frustrados do sucesso e do prestígio.
Em seguida, entra em cena outro homem, que seria para a mãe de Christiane a porta de
entrada para uma nova vida sem violência. Ela se tornou amante de Klaus — companheiro de
bebedeiras do marido e mais jovem que ela —, criando coragem para enfim abandonar o
marido agressivo. Para as filhas, porém, o novo companheiro da mãe era um estranho que
elas não levavam muito a sério e de quem não gostavam muito, cultivando o sentimento de
que ele lhes roubava a presença materna. A irmã caçula de Christiane resolveu agir: “Ela fez o
que eu não podia imaginar: voltou para a casa de nosso pai. Abandonou minha mãe e a mim,
que fiquei ainda mais só”, pode-se ler no livro.
Quando Klaus fez com que a mãe de Christiane se desfizesse dos dois cachorros a que ela
era muito apegada, a injustiça pareceu tamanha que a revolta e a fuga se apresentaram como
as únicas saídas possíveis: “Eu me sentia como se quisessem me expulsar de casa, mas
achava formidável a liberdade que ia descobrindo.”
Christiane tinha 12 anos e canalizou o afeto em outro rumo: na admiração por Kessi,
uma amiga de escola que às vezes se embriagava, tinha seios já desenvolvidos e um
namorado. Christiane bem que gostaria de fazer o mesmo sucesso com os meninos e
procurou se tornar sua melhor amiga.
Juntas, elas iam à “Casa do Meio”, um centro para jovens ligado à Igreja protestante. Os
adolescentes do grupo eram mais velhos, fumavam haxixe já pela manhã e matavam aula. E,
como Christiane queria se enturmar, começou a fazer as mesmas coisas.
A droga como um produto de uso comum era
algo completamente novo na Alemanha Ocidental. O movimento hippie dos anos 1960 e 1970
havia trazido algo bem diferente disso: um protesto comunitário contra a sociedade de
consumo e a propagação de certa visão de mundo.
Seus simpatizantes tomavam LSD e fumavam maconha coletivamente, com o objetivo de
expandir a mente. Christiane e seus amigos, pelo contrário, buscavam a inconsciência. O total
vazio interior. Tratava-se apenas de se sentir bem. Ou seria, mesmo assim, uma revolta?
Contra o quê?
O reduto a que pertencia Christiane Felscherinow quis interpretar como rebelião a
fulgurante notoriedade da jovem junkie-star. Mas isso não funcionou. No final, restou apenas
um gélido pavor associado ao seu nome. Descobriu-se haver adolescentes que pareciam ter na
vida uma única motivação, sem finalidade nem perspectiva, uma motivação aparentemente
sem sentido: a vertigem dos entorpecentes.
Logo em seguida, Christiane aderiu também ao ecstasy e a remédios como efedrina,
Valium e Mandrax. No fim de semana, ia regularmente à Sound, uma boate berlinense. Foi
onde conheceu Detlev que, com 16 anos, injetava heroína. De início, ela recusou. Mas quando
foi a um show do ídolo David Bowie com outro amigo, também viciado, e que entrou em
crise, ela o ajudou a conseguir dinheiro para a droga. Seu corpo, ainda jovem, já se
acostumara há tempos com os comprimidos engolidos. Tomava-os como se fossem
caramelos, sem nem notar, e eles começaram a não surtir mais efeito nem afastar a
depressão.
Então, por que não experimentar heroína?
— Não tinha me dado conta de que nos últimos meses eu havia amadurecido para a
heroína […]. Sem pensar nisso, sem má consciência. Quis experimentar, para voltar a ter um
bom barato — contou ela aos jornalistas Hermann e Rieck.
A seringa ainda dava medo, então, ela cheirou o pó marrom:
— Tive que controlar a vontade de vomitar e cuspi de volta boa parte. Mas depois foi tudo
muito rápido. Os membros ficaram incrivelmente pesados e, ao mesmo tempo, superleves.
Estava abestalhada, e era ótimo. Tudo de ruim tinha ido embora de uma só vez. Nunca havia
me sentido melhor.
Christiane tinha 13 anos.
Era fácil imaginar o destino familiar dos Felscherinow como um encadeamento de
causas pessoais e sociais que permitiram que, no mínimo, se concebesse a afinidade de
Christiane com as drogas. Mas, depois do livro, observou-se que isso não bastava como
explicação. Christiane não era apenas uma simples vítima de seu meio. A tristeza da vida no
conjunto Gropius dos anos 1970 e a família problemática não levariam obrigatoriamente
alguém à toxicomania.
É difícil julgar se Christiane, além da própria inteligência, dispunha de uma capacidade
de escolha suficiente para tomar as próprias decisões.
A vontade de escapar do núcleo familiar e da solidão abriu a porta para a dependência?
Ou seria a sensação de exaltação suscitada pelos entorpecentes e pela nova comunidade? Os
debates na Alemanha em torno dessa questão aumentaram.
A partir daquele momento, Christiane passou a querer apenas uma coisa: voltar àquele
estado de espírito obtido sob o efeito da heroína. E como o dinheiro levantado nas ruas não
era suficiente para financiar, cometiam-se pequenos delitos.
Aos 14 anos, com a ajuda de um junkie, ela experimentou a seringa. Tanto para Detlev
quanto para ela, já completamente dependentes, conseguir heroína se tornou uma
necessidade permanente. No caso dele, o meio para arranjar dinheiro era se prostituindo na
estação do Zoo.
— O que Detlev fazia não me incomodava tanto. Não era tão grave se tivesse que tocar
nos clientes. Apenas um trabalho sujo, sem o qual não teríamos a droga. Mas não queria que
os caras tocassem nele; ele era só meu — explicou Christiane naquela época.
Christiane e Detlev em geral passavam os fins de semana num apartamento caindo aos
pedaços, com os amigos Bernd e Axel, como uma família.
Os rapazes diariamente preparavam a cama para ela, com lençóis brancos bem limpos.
Mas havia mofo por toda parte. O sangue que refluía da seringa era ejetado no carpete e
guimbas amassadas ficavam em restos de comida estragada.
Foi nesse lugar que Christiane transou pela primeira vez, com Detlev.
Ela já sofria de icterícia. Tivera uma crise numa viagem com a escola, longe de Berlim, na
região de Bade-Wurtemberg, e precisou ser hospitalizada. A mãe não foi vê-la. Christiane
perdeu muito peso, mas a mãe pensou que isso se devia ao crescimento rápido e à puberdade.
A verdade não passou por sua cabeça. A filha frequentemente desmaiava e ela não percebia,
pois Christiane quase nunca estava em casa. Dizendo que iria dormir na casa de amigas, ela
passava a maior parte do tempo andando pela rua com os companheiros de droga.
No livro, a mãe de Christiane reconheceu que, por muito tempo, não quis ver o que se
passava com a filha e que, por causa do trabalho, não deu atenção suficiente, ignorando os
avisos do homem com quem vivia e os sinais apresentados: — Estava convencida de que, com
as pessoas da igreja, ela estava em boas mãos.
Cada vez mais, Christiane se sentia culpada, pois Detlev tinha que se vender para pagar o
vício.
Uma noite em que pedia dinheiro aos passantes para socorrer o namorado em crise de
abstinência, foi abordada pelo homem já mencionado, ao volante do Ford antigo. A partir de
então, passou a se prostituir.
Axel não demorou a morrer de overdose de heroína. Christiane e Detlev resolveram, com
Babsi e Stella, se juntar a um bando de jovens viciados que se prostituía. Mas Babsi logo
viraria manchete de jornal: era a pessoa mais jovem a morrer pelas drogas na Alemanha.
Detlev e Christiane tinham apenas um ao outro no mundo. Fizeram planos para se
desintoxicar, prometendo que cada picada seria a última. Passaram a procurar clientes juntos.
Entre muitos, um certo Stotter-Max, como chamaram os autores, que com frequência
procurava o casal adolescente.
— Ele era ajudante de pedreiro, tinha 30 e tantos anos e vinha de Hamburgo. A mãe era
prostituta e ele fora absurdamente surrado durante a infância: pela mãe, pelos cafetões e nos
centros para onde foi mandado. Isso o destruiu.
Tinha tanto medo que nunca aprendeu a falar direito e precisava que batessem nele para
se satisfazer sexualmente.
Christiane o chicoteava até ele sangrar e poder gozar. Quando o homem deixava o
apartamento, ela vomitava. Com os 150 euros recebidos, comprava drogas para ela e para o
namorado.
— Um dia supertranquilo.
Afastando-se de qualquer vínculo com a vida normal, carregada pelo vício e pelo medo de
ficar sem droga, Christiane deixou de lado os escrúpulos. Picava-se também no apartamento
da mãe, que afinal se deu conta, tarde demais, da vida dupla da filha. Obrigou que ela e Detlev
(cujos pais também eram divorciados e o deixaram largado) se trancassem em casa, numa
dolorosa desintoxicação a dois.
Mas, afinal, a guerra declarada à dependência física era pouca coisa se comparada à
dependência psíquica, frequentemente subestimada.
Quando os dois adolescentes voltaram a encontrar os antigos amigos, tudo retomou seu
ritmo muito rapidamente. Ainda mais porque, sem a droga, Christiane e Detlev descobriram
não restar qualquer sentimento romântico entre os dois.
— Tinha horror à ideia de voltar à dependência da heroína, mas quando Detlev estava
picado, e eu, não, toda a atração desaparecia. Éramos como dois estranhos.
Christiane não demorou a se sentir uma junkie-star. Tinha atitude e todos gostavam
dela.
Na euforia de então, passou inclusive a aceitar relações sexuais completas com os
clientes.
Várias vezes foi presa por porte de drogas, e um dia acabou sendo agredida por um
funcionário da Sound. Era uma ameaça clara e quase de rotina, que significava: se for presa
mais uma vez, não diga que circula droga na boate nem que proxenetas incentivam
adolescentes a se prostituírem.
— Depois disso, todos ficavam com tanto medo que não diziam mais nada à polícia.
Física e moralmente esgotada, Christiane procurou por conta própria uma casa de saúde
para tratamento. A clínica em que queria se internar, e da qual ouvira falar por outros
viciados, chamava-se Narconon. Era ligada à rede da Cientologia.
*
Tinha a impressão de ser tratada como louca.
Fugira várias vezes, mas sempre voltava.
Finalmente, o pai decidiu tirá-la à força da Narconon. Sua primeira visita terminou com a
polícia sendo chamada, pois os médicos e a própria Christiane se opuseram. No final, a mãe,
que era a responsável legal, assinou um papel dando ao pai autoridade para tirar a filha da
instituição e levá-la para casa.
Christiane escondeu do pai que voltara a se drogar, mas não de si mesma.
Tentou aplicar em si mesma a última picada, o golpe de misericórdia para acabar com
tudo, mas a dose que tinha não foi suficiente. Pouco depois, foi morar com Detlev na casa de
um cliente, e os dois tentaram financiar o vício fazendo tráfico.
Em pouco tempo foi presa. Chamada à delegacia, a mãe logo em seguida resolveu que os
dois tomariam o primeiro avião para o norte da Alemanha. Christiane foi deixada com a avó,
em Kaltenkirchen.
Eu, Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída… terminou com a família Felscherinow
no auge do desespero e com a filha mais velha mergulhada no abismo da dependência.
Como em muitos bons livros, o texto concluía com uma nota de esperança: no último
capítulo, Christiane explicou o quanto era difícil se habituar ao dia a dia interiorano de
Kaltenkirchen, mas que, após o período de desintoxicação, pouco a pouco conseguia retomar
o rumo da sua vida. A distância física separando-a das pessoas e dos lugares que alimentavam
seu vício pareceu encaminhá-la a uma solução para deixar a dependência psíquica. Ela,
inclusive, terminou a escola com notas boas e fez novos amigos.
Afirmou nunca mais querer ouvir falar de heroína.
Mas acrescentou:
— Por um momento, me droguei com Valium.
Além disso, com os novos amigos, bebia vinho tinto e fumava haxixe. Não parecia tão
longe de voltar para a sua antiga vida. Se conseguiria ou não escapar, só o tempo iria dizer.
Essa expectativa final e o fato da continuação daquela história poder ser comentada pela
mídia ajudaram o sucesso da série de reportagens da revista Stern, no outono de 1978: como
ela estaria agora, teria conseguido? A história de Christiane F. fascinava e, ao mesmo tempo,
horrorizava.
Eram exatamente os adolescentes que se sentiam mais atraídos pela anti-heroína e —
como temiam os críticos — era possível que quisessem imitá-la. A revista Stern gastou 200
mil marcos para se blindar contra esses críticos e publicou um caderno pedagógico com
tiragem de sessenta mil exemplares distribuídos gratuitamente, sobretudo nas escolas.
O livro estava tendo um sucesso incrível, inesperado por todos. Mas, ao mesmo tempo,
nenhuma das grandes casas editoriais alemãs quis publicá-lo, com seus responsáveis
julgando a prostituição infantil e a dependência das drogas como temas marginais.
— Batemos de porta em porta com o manuscrito debaixo do braço. Um grande editor o
recusou dizendo ser invendável. Outro nos aconselhou a fazer do material um estudo de caso,
uma obra especializada, com anexos científicos — recordou Kai Hermann.
Essas recusas motivaram Christiane Felscherinow, então com 16 anos, a não querer mais
colaborar com Kai Hermann e Horst Rieck: — Estava hiperdeprimida e achei que os dois só
estavam me fazendo perder tempo. Ninguém queria ouvir falar disso e menos ainda ler.
Mas quando foi publicada a série de reportagens da Stern, tudo mudou. Para começar,
uma parte maior da opinião pública tomou conhecimento da realidade do mundo das drogas.
A repercussão midiática foi enorme e a Stern resolveu publicar por conta própria
Christiane F., sob a direção de Henri Nannen, com uma tiragem inicial de cinco mil
exemplares.
Em pouco tempo, o editor responsável não conseguiu mais acompanhar o ritmo das
reimpressões.
— Por semanas a fio houve problemas de entrega. A tiragem tinha sido pequena e era
preciso que fosse muito maior para responder à demanda — recorda Christiane hoje em dia.
Naquele mesmo ano, Bernd Eichinger montava um plano radical de reconstrução da
Constantin Film, uma produtora que havia falido em 1977. Tinha 29 anos na época, acabava
de se formar na Hochschule für Film und Fernsehen (HFF) de Munique e se achava um
gênio do cinema que não chegaria aos 40 anos, morrendo jovem e com um destino trágico,
como acontece com muitos grandes artistas.
Já nessa época, Eichinger não dava mais importância alguma a festivais de cinema como
o de Cannes, por exemplo. Achava os profissionais que participavam do festival uma
comunidade de representantes do comércio pequeno-burguês, sem charme nem criatividade,
além de ver o cinema alemão particularmente afundado numa crise profunda: faltavam
inventividade e liberdade intelectual. Na corrida por financiamento e por produção, só se
procurava a aprovação de comissões e de críticos, sem se preocupar com a opinião dos
espectadores.
Para Bernd Eichinger, a única saída para a crise estava na criação de uma indústria
cinematográfica autárquica, fechada em si mesma e, para tanto, bastante independente. Ou
seja, uma empresa que fosse ao mesmo tempo distribuidora e produtora. A Constantin,
fundada em 1950 pelo produtor alemão Waldfried Barthel, era a única instituição que poderia
pôr em prática aquele conceito.
Ludwig Eckes, um ex-fabricante de aguardentes e proprietário da empresa, não tinha
muito mais a perder. Vendeu então, em 1978, por 1,5 milhão de marcos, 25 por cento da Neue
Constantin e tornou o jovem diplomado da HFF seu sócio.
Eichinger queria levar às telonas filmes que polarizassem e provocassem o público,
histórias que refletissem a visão de vida que a nova geração tinha e que oferecessem um
cinema de qualidade.
E eis que surge Christiane F.
Naquela biografia, Eichinger identificou um relato profundamente comovente e, junto
com Roland Klick, começou a escrever o roteiro. Para além do script, porém, as concepções
dos dois homens divergiam amplamente. Bernd Eichinger procurou inicialmente o roteirista
e produtor Herman Weigel, que tinha sido seu colega na HFF, para que fizesse a dramaturgia,
mas os três acabaram brigando porque Klick, segundo o que Weigel e Eichinger contaram
mais tarde, queria dar os papéis a atores mais velhos, de mais ou menos 25 anos.
Porém, o mais fascinante na história de Christiane era justamente o fato de se tratar de
adolescentes. Isso foi o fim não só da colaboração, mas também da amizade entre Eichinger e
Klick — abalando igualmente a verba do projeto, pois o contrato com Roland Klick previa que
os financiamentos obtidos até então não poderiam se aplicar ao filme. Com isso, o longa-
metragem começava sua fase de produção com um déficit de 1 milhão de marcos.
Ulrich Edel, o diretor que substituiu Klick, era também ex-colega de Eichinger. Apesar de
os três profissionais formarem uma equipe entrosada desde a época universitária, a produção
do filme de Christiane F. não estava indo nada bem.
Primeiro houve uma queda de braço com o administrador da produtora, Karl-
Heinz Böllinghaus, que previa um retorno de apenas 200 mil marcos, enquanto Eichinger
imaginava no mínimo 800 mil. Em seguida, Eckes, o sócio majoritário, quis se retirar. Eckes
e Böllinghaus eram homens de outra geração e não acreditavam, assim como as editoras
tradicionais, que a história de uma criança prostituída e viciada em heroína pudesse
interessar ao grande público. O suíço Bernd Schaefers foi quem comprou a parte de Eckes.
No mais, a realização do filme encontrou problemas puramente práticos, como a questão
da distribuição dos papéis, que permaneceu por muito tempo sem resposta. Eichinger estava
tão pouco de acordo com Edel quanto anteriormente estivera com Klick — até que o acaso
trouxe aos testes Natja Brunckhorst, uma adolescente de Berlim, que tinha aproveitado o
intervalo de almoço na escola para tentar conseguir o papel da irmã de Christiane. Quando
Eichinger a viu, imediatamente percebeu: ela era Christiane!
Natja Brunckhorst era uma Christiane como a do livro: pernas longas e finas, cabelos
castanhos compridos; em tudo se assemelhava muito à verdadeira. Pelo que a atriz contou
depois, as biografias também apresentavam coincidências: — Fui uma criança realmente
solitária. De repente, surgiu essa situação em que passei a ter a impressão de valer alguma
coisa. A receber elogios.
A ter alguém sempre por perto para ajudar. Tinha inclusive um assistente social que me
seguia, e eu sempre pedia que fosse buscar chocolate com creme para mim, em plena noite,
na estação do Zoo.
Adorei ter gente cuidando de mim — explicou Natja à viúva de Eichinger, Katja Eichinger,
para a biografia do marido, publicada em 2012 e intitulada BE.
O diretor e produtor morreu em 5 de janeiro de 2011. Tinha 62 anos e sofreu um infarto
durante um jantar com a família e amigos, em Los Angeles. Dentre seus maiores sucessos,
figuram A história sem fim (1984), O nome da rosa (1986), A queda (2004, assinando
também o roteiro), Perfume (2006, assinando também o roteiro), O grupo Baader Meinhof
(2008).
Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída foi o início dessa grande carreira — que,
em 1980, caiu no circuito cinematográfico como um raio, sem que ninguém esperasse.
Mas voltemos à filmagem: o cameraman trabalhava com muita precisão, mas
lentamente.
A filmagem se prolongava, as férias de outono acabaram e os atores adolescentes tiveram
que voltar à escola. Com isso, só era possível filmar entre a saída das aulas e o cair da noite,
que se dava cada dia mais cedo. Além do mais, para muitos lugares citados no livro não se
conseguiu autorização para filmar, como por exemplo as cenas que se passam na estação do
Zoo. Foi numa cadeira de rodas e com a câmera disfarçada numa caixa de papelão que o
operador fez as tomadas locais.
Pouco tempo depois, encontraram o primeiro cadáver da filmagem. Quando a equipe foi
preparar a estação de S-Bahn Bülowbogen para rodar algumas cenas, encontrou uma pessoa
morta por overdose. A polícia retirou o corpo antes da chegada dos atores ao local. Em outro
momento, o diretor Uli Edel subiu numa escada de pedreiro, procurando onde fixar a câmera,
e encontrou um embrulhinho preso com fita adesiva. Abriu-o e descobriu ser heroína. No
mesmo instante, um viciado apareceu na frente dele, agitado e segurando um canivete. Tinha
conseguido passar pelos cordões de isolamento, arrancou a droga das mãos de Edel e saiu
correndo.
A morte de John Lennon foi a segunda a prejudicar a filmagem. A verdadeira Christiane
havia cheirado sua primeira heroína, sem se picar, após um show de David Bowie no
Internationales Congress Centrum de Berlim-Charlottenburgo. Foi um momento que mudou
sua vida para sempre, como Bernd Eichinger procurava ao máximo manter a autenticidade,
resolveu pedir a David Bowie — conhecido por ter problemas com heroína — que participasse
da cena. Bowie aceitou, mas estava naquele momento fazendo uma peça na Broadway.
Eichinger gastou então seus últimos marcos para comprar uma passagem Berlim-Nova York e
pagar uma equipe americana.
Em 9 de dezembro, que seria o dia da filmagem, John Lennon foi assassinado em frente
ao Dakota Building.
David Bowie não quis mais subir ao palco.
Achou que podia se tratar de um serial killer ou que outros o imitassem. Somente depois
de Bernd Eichinger contratar uma quantidade de guarda-costas para que vigiassem o local
durante a filmagem da cena, Bowie juntou coragem e “salvou” a obra.
Já no ano seguinte, o longa-metragem se tornou um enorme sucesso internacional. Além
dos seus cinco milhões de espectadores na Alemanha, estourou a bilheteria na Holanda,
Bélgica, Grécia e Espanha. A mesma coisa na França e a obra se tornou o filme alemão mais
conhecido da década. Na adaptação inglesa, o filme teve quatro minutos cortados, mas a
versão integral existe em DVD nos Estados Unidos, reservada a maiores de 18 anos.
— Estar na Calçada da Fama do Chinese Cinema foi como uma pré-estreia — recorda
Christiane, que tomou um avião para uma estadia de três semanas em Los Angeles com Uli
Edel, para a divulgação do filme prestes a ser lançado.
A menina de olheiras escuras e muito arredia se tornara uma jovem bonita e sensual:
ainda bem esguia, mas ao mesmo tempo forte, segura de si.
Andava com passadas firmes, postura ereta, um leve ar de ironia, maneiras joviais. Os
olhos grandes e verdes eram realçados por rímel escuro, e as unhas e os lábios carnudos
brilhavam às vezes em tons vermelhos, outras vezes em tons amarronzados. E Christiane
falava como vivia: freneticamente, com certo jeito camicase.
Tinha raspado parte dos cabelos compridos e mantinha o restante eriçado com gel, no
alto da cabeça. Juntando-se a isso as roupas escuras em estilo punk, ela parecia a irmã caçula
de Nina Hagen.
Era uma mulher misteriosa e extremamente atraente.
A busca de Christiane F. por uma identidade parecia ter encontrado uma solução
miraculosa.
A moça de rosto bonito e história horrível, que tinha sempre escolhido os caminhos mais
idiotas, mas filosofando com muita acuidade sobre a condição humana e as ciladas da vida, se
tornara o símbolo da inquietude e da revolta juvenil.
No canal franco-alemão de televisão Arte, ela debateu com o diretor de teatro Frank
Castorf sobre as virtudes femininas e esteve sentada ao lado de Jean-Paul Belmondo e Peter
Maffay em um programa de auditório. Sua réplica no cinema, Natja Brunckhorst, foi
manchete da Spiegel sob o título: “O mito Christiane F.”
Os canais Spiegel TV e Stern TV a convidavam todo ano para uma entrevista, a fim de
saber qual era a sua opinião sobre a juventude.
Por exemplo, por que grupos terroristas como o Fração do Exército Vermelho (RAF) se
revoltavam contra o sistema? Era possível, na República Federal, uma ascensão social como a
sua? Havia esperança para os filhos e filhas da Alemanha e, é claro, para a junkie mais
famosa do país?
Esperança havia, mas será que se realizaria?
Em todo caso, Christiane não aceitava se incluir no mundo perfeito de sua avó, o
“Stoltenberg-Country” do norte da Alemanha, como sugeria o final do livro e do filme.
Após seus quinze minutos de fama, ela tentou a sorte como cantora. Entre 1981 e 1983 se
apresentou ao lado de Alexander Hacke, guitarrista dos Einstürzende Neubauten, formando
uma dupla chamada Juventude Sentimental. Em 1982, gravou alguns discos solo em estilo
nouvelle vague alemã, atuou em alguns filmes independentes — Neonstadt (1981) e Decoder
(1983) — e todo ano passava alguns meses como au pair na Suíça.
Mas aonde quer que fosse ou o que quer que fizesse, a vida pregressa a perseguia.
Ela não conseguia sair das drogas.
Regularmente noticiavam-se suas recaídas. Mas nunca se soube em quais proporções,
pois não havia provas. Os “entendidos” diziam que a fama repentina e o dinheiro gerado pelo
sucesso do livro tinham agravado a dependência. Uns teorizavam afirmando que quem
consegue atenção e carinho graças à doença, se agarra a ela. Outros viam nas drogas o meio
para Christiane administrar a pressão da mídia — aliás, com o dinheiro que ganhava, tornara-
se muito fácil consegui-las.
Algum daqueles boatos seria verdadeiro? A imprensa incessantemente fazia novas
verificações para descobrir a quantidade de drogas que ela realmente tomava e por onde
andava naquele momento. Câmeras seguiram seus passos pelas ilhas gregas, onde viveu de
1987 a 1993.
Jornalistas foram procurá-la quando seu filho nasceu. Günther Jauch convidou-a para o
seu divã no programa da Stern TV, e Sandra Maischberger entrevistou-a em “Late Night Talk”.
A partir de 2008, Christiane F. deixou de atender os jornalistas, apesar das frequentes
tentativas, por ocasião de algum novo processo sobre drogas ou quando Bernd Eichinger
morreu.
Mas ela não confiava mais na imprensa — desde o dia em que o serviço de proteção à
infância tirou-lhe a guarda do filho e a crônica social explorou sua dor na mídia.
O jornal Berliner Zeitung convenceu a mãe de Christiane a dar uma série de entrevistas,
e outros órgãos da imprensa pagaram um de seus amigos para obter mais informações.
Christiane rompeu com os três: os jornalistas, o tal amigo e a mãe.
S.V.
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Eu, Christiane F., A vida apesar de tudo
Non-Fiction13 ANOS, DROGADA, PROSTITUíDA. MAS E DEPOIS, O QUE ACONTECEU? A história de Christiane F. deu a volta ao mundo. Milhões de pessoas cresceram com as confissões dilacerantes da adolescente alemã de 13 anos, drogada, prostituída. Mas e depois disso, o...