12 - MINHAS SOMBRAS

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Ninguém acredita em mim e posso entender. Se me contassem uma história dessas há
vinte ou trinta anos, veria nisso apenas uma tentativa desesperada de chamar atenção. Como
fazem algumas crianças que vêm de um meio social difícil e querem que se ocupem delas.
Hoje em dia, até os psicólogos de quinta categoria sabem perfeitamente que as crianças
que mais se arrastam nas aulas e inventam as mentiras mais malucas no fundo só querem
um carinho e alguém que realmente se interesse pelo que acontece com elas. Infelizmente, a
maioria dos professores não compreende isso.
Há também adultos que imaginam histórias completamente loucas e estão o tempo todo
contando as dificuldades que precisaram superar e todas as desgraças que se abateram sobre
eles. Como se realmente o universo não tivesse mais o que fazer além de persegui-los.
E pessoas assim dão tanta importância a si mesmas apenas porque ninguém dá atenção a
elas.
Causam pena, pois na maioria das vezes se sentem sozinhas, e então cuido delas e as
ouço, pois infelizmente sei muito bem a diferença que faz poder confiar em alguém ou ser
mandado às favas. Um ouvido amigo às vezes vale mais do que todo o ouro do mundo.
A mim não faltam dinheiro nem atenção.
Mas perdi um monte de amigos que me acham louca, por ter falado dos meus problemas.
E o pior nisto tudo é sentir que estou marcada dessa maneira, não a junkie-star, mas a louca
de plantão. Às vezes isso me deprime e não consigo parar de chorar o dia inteiro, de tanto que
machuca.
Gostaria apenas que os que não acreditam me deixem em paz. Todos os jornais disseram
que tenho alucinações. E acreditem: um monte de vezes torci para que estivessem certos, que
tudo só se passasse na minha cabeça. Que um médico ou um tratamento pudesse me tirar
dessa.
Talvez seja verdade, talvez seja somente o problema que tenho com a fama. Não sei. De
qualquer forma, porém, para mim tudo isso é bem real — e não desejo a ninguém, nem a meu
pior inimigo, ter que viver coisa semelhante.
Isso dura há mais de 25 anos.
No período de prisão em Plötzensee, aprendi a ver se alguém tinha entrado na minha cela
enquanto eu não estava. As guardas diariamente visitavam pelo menos três ao acaso e muito
frequentemente tudo era vasculhado.
Chamávamos nossas celas de quartinhos — à noite, na hora de fechar as trancas, nos
diziam: “Voltem para os seus quartinhos.” As buscas não eram dadas na presença das
prisioneiras, e sim durante o dia, quando estávamos executando as tarefas. Nada disso era
segredo, todas sabiam dos controles. Mas não devíamos ver como nem onde eram feitos, para
que não pudéssemos nos preparar.
Por exemplo, quando meu pacote de tabaco não estava fechado do jeito a que me
habituei, eu notava: na época, eu arrancava aquelas linguetas autocolantes idiotas, que de

qualquer maneira não grudam nada, e passava a parte de cima para dentro do pacote, como se
fosse um envelope. Depois dobrava o volume mais uma vez e deixava o pacote sempre com a
parte mais fina para baixo.
Fazia a mesma coisa com a pasta de dente.
Sempre apertei o tubo de baixo para cima. Na época, via às vezes que estava no copo da
pia, de qualquer maneira. Nas roupas, notava imediatamente qualquer amassado que tivesse
aparecido. Sempre tive mania de roupas bem-dobradas, simplesmente por não gostar de
passar a ferro. Além disso, minhas coisas estavam todas arrumadas numa prateleira que
ficava à mostra, então qualquer mudança saltava às vistas.
De vez em quando as guardas deixavam também as marcas dos pés. O piso era de
concreto escuro. Facilmente se viam sujeiras trazidas de fora nos sapatos, sobretudo quando
o sol atravessava a janela.
Se considerarmos o fato de que desrespeitei a lei contra entorpecentes, nada fiz de grave
na vida. Tudo bem, quando era menina uma vez roubei uma barrinha de amendoim Mr. Tom.
Estava com fome e não tinha o suficiente para comprar o que queria com o dinheiro que
havia ganhado devolvendo nossas garrafas vazias. Dava mais ou menos 2 marcos, que eu
tinha ainda que dividir com minha irmã. Não conseguia me decidir entre um pãozinho ou
alguma coisa doce. De repente, roubei a barrinha de Mr. Tom, mas na hora estava com tanto
medo que fui pega.
Hoje em dia nem como mais isso, pois volto a ter a mesma vergonha que senti naquele
dia. Até hoje imediatamente notam se estiver escondendo alguma coisa ou mentindo. Tenho
tanto medo de ser flagrada e ter problemas que a expressão do meu rosto muda e começo a
me comportar e falar de forma completamente diferente da normal. A consciência pesada fica
estampada na minha cara.
Afinal, não sou nenhuma delinquente perigosa. Não trafico. Pra quê? Tenho dinheiro.
Por que então me meteria a vender drogas?
Pelo gosto do risco? Não, minha vida já é excitante demais sem isso! Não preciso pensar
em fazer receptação e menos ainda me interesso por política.
Não sou terrorista nem membro da maçonaria ou dos illuminati. Nem da cientologia e
sequer fui escoteira. Por isso é que não entendo o que “eles” querem comigo.
Talvez achem que sou importante, só por conhecer um monte de gente que é. Não sei.
Não tenho a menor ideia de quem sejam. Mas sabem tudo a meu respeito. Sabem quanto
tenho no banco e contabilizam cada centavo que gasto. Sei disso porque percebi que roubam
exatamente as coisas que acabo de comprar.
Sobretudo roupas, mas também discos e objetos do cotidiano, como fumo, isqueiro e até
pilhas. Já comida não roubam, isso não.
Mas gostam especialmente do que é pessoal, como cartas e álbuns fotográficos.
Em todo caso, ficam de olho na minha correspondência. Nas cartas do imposto de renda,
por exemplo, ou nos pareceres da administração penitenciária — papelada que pode me pôr
em maus lençóis se eu não responder a tempo. Em um ano, precisei trocar cinco vezes de

telefone celular, pois foram todos clonados. Não sei o que querem comigo, já que não me
prenderam nem me sequestraram. E não procuram também obter informações a meu
respeito com meus amigos ou conhecidos. Por isso é que ninguém acredita em mim.
Obviamente o único objetivo dessas pessoas é me fazer passar por louca aos olhos de todo
mundo.
E não estão longe de conseguir me enlouquecer. Toda vez que entro em casa vejo que
vieram. A televisão está de novo ligada na parede, enquanto a última coisa que fiz saindo do
apartamento foi tirar o fio da tomada.
Detesto desperdiçar eletricidade. Tiro tudo da tomada antes de sair.
Querem que eu saiba que vieram. Depois dessas invasões, o apartamento não fica
revirado de cabeça para baixo como nos filmes.
Não! Apenas deixam pequenos sinais que somente eu percebo — como antes, na prisão,
quando os quartinhos eram revistados.
Não sei se isto de ser vigiada tem a ver com a estadia em Plötzensee. Desconfio, mas não
posso provar, que minha mãe é quem está por trás disso tudo.
No início dos anos 1980, ela tentou fazer com que eu fosse posta sob tutela. Logo depois
de eu ter voltado a usar drogas. Isso pode talvez fazer com que se compreenda o que minha
mãe tentou. Acho que, à maneira dela, quis salvar minha vida. Foi por isso que chamou a
polícia.
Em todo caso, é o que prefiro acreditar que quis fazer. Sempre se esforçou para me
afastar das drogas. Procurou o Synanon, o Release, todos os órgãos de apoio que existiam
quando eu era adolescente. Tirou licenças de trabalho só para verificar se eu não estava
escapulindo durante a cura de desintoxicação.
Mais tarde, depois da publicação do livro e de ele ter se tornado um imenso best-seller,
minha mãe achou que eu era idiota o bastante para conviver com más pessoas, gastar meu
dinheiro em coisas suspeitas e pagar por banheiras cheias de heroína. No entanto, não fiz
nada disso.
Quem pode se gabar de ter sido capaz de viver por mais de 35 anos graças às vendas de
um livro? Ainda mais considerando que a soma é dividida por três, Horst Rieck, Kai Hermann
e eu!
Se tenho dinheiro ainda hoje é porque sempre tomei cuidado e apliquei, por exemplo em
seguros de vida. E isso foi graças aos conselheiros do meu banco em Colônia.
Francamente, quem venderia um seguro de vida a uma dependente de heroína? Foi o que
fizeram, no entanto. E não só uma, mas duas vezes. E depois recuperei o dinheiro dos dois
seguros com juros.
A maior parte do dinheiro na verdade se foi com a minha família. Quando, aos 18 anos,
pude enfim ter acesso às poupanças e contas bancárias em que tinham sido depositados o
adiantamento e os percentuais de vendagem do livro, já faltavam 100 mil marcos. Eu sabia
que minha tia havia dado uma parte ao marido, quando o deixou. Mas onde estava o resto? E,
quando voltei da Grécia, encontrei nas minhas contas exatamente a mesma soma que havia
antes de partir. Os juros que deveria ter recebido naqueles sete anos não foram depositados.

As pessoas que me perseguem hoje me vigiaram mesmo quando estava na Grécia. Um
deles era um ruivo, um ginger. Não sabia que eram chamados assim. Aparentemente é um
insulto tirado de ginger gen, o gene que deu origem à pele branca, cabelos ruivos e sardas.
Foi com Panagiotis que ouvi essa palavra pela primeira vez, e o homem em questão era
alemão.
Um sujeito enorme, sempre encharcado de suor.
Usava sandálias Birkenstock e shorts apertados demais, panturrilhas grandes e pelos
louros nas pernas.
Foi em 1989, ano em que provavelmente peguei hepatite porque nossa seringa estava
rombuda demais e um desconhecido nos emprestou a dele.
Antes de ter visto o ginger pela primeira vez, tínhamos ido a Berlim comprar material e
instrumentos para nossa loja de tatuagem. Mas, na noite anterior à viagem de volta a Creta,
por um voo charter que encontramos a 180 marcos, com escala em Bucareste, meu
passaporte desapareceu. Eles é que o tinham roubado, eu sabia, porque queriam partir ao
mesmo tempo e eu tinha sido rápida demais. Não imaginavam que eu fosse embora tão cedo.
Reviramos o apartamento de cima a baixo sem encontrar o passaporte. Acabei tendo que
pedir a Panagiotis que fosse sozinho antes de mim.
Ele ficou furioso, achando que eu tinha armado aquilo para poder me aplicar um pouco
de heroína a mais, estando sozinha, pois havíamos programado largar tudo aquilo assim que
voltássemos. Era o que Panagiotis queria.
Acho que, se ainda estiver vivo, hoje em dia deve estar limpo. Tinha horror a ser junkie,
porque a libido diminui, a virilidade fica abalada, tudo se desmonta e um cara jovem em
menos de dois anos se torna um verdadeiro vovô. Ele não queria ser junkie.
Achei meu passaporte no mesmo dia da partida de Panagiotis, mas depois de o avião ter
decolado. No bolso traseiro de uma calça jeans em que nunca o coloco, com medo de perdê-lo.
Tínhamos olhado três vezes aquela calça sem encontrar. Cheguei então em Creta dois
dias depois de Panagiotis e começamos a cura de desintoxicação. Normalmente, com duas ou
três semanas, a gente começa a sentir menos mal-estar e se entusiasma, volta à tona.
Mas não conseguíamos subir a ladeira, ficávamos mal assim que bebíamos — era na
verdade por causa da hepatite, contra a qual nosso organismo lutava. Decidimos então mudar
de lugar e fomos para um vilarejo, 6 quilômetros mais ao sul. Uma noite, Panagiotis me disse:
— Tem um casal alemão no vilarejo.
E respondi:
— E daí? Não tenho a menor vontade de falar com alemães, é por isso que estou na
Grécia!
Bom, estava em plena crise de abstinência, o que sempre causa bastante irritação.
Não falamos mais disso até que eu visse com meus próprios olhos o ginger na praia, pela
primeira vez. Usava imensos óculos escuros e um chapéu de couro. A mulher era tão branca
quanto ele, mas loura. Faziam piquenique na areia e, apesar de estarmos ainda no início do
mês de março, ou seja, não ser período de férias na Alemanha, não estranhei.

Uma vez recuperados, partimos para Mirtos e Terza, outros pequenos lugarejos. E
quando, certa noite, o ginger e a mulher se sentaram perto de nós no restaurante, acabou
caindo a ficha de que estavam ali por nossa causa. E de ouvido atento, escutando nossa
conversa. Mas sem nem por isso falar conosco.
Acho que a minha mãe é a mandante de tudo isso. Já havia me denunciado à polícia uma
vez em que fui a Berlim sem autorização, entre a estadia na GeSa e a prisão em Plötzensee.
Anna Keel havia prometido à justiça me manter sob sua vigilância em Zurique. Mesmo assim,
fui uma vez a Berlim.
Infelizmente estava apaixonada pelo britânico viciado em speed e fiz a viagem só para
estar com ele.
Minha mãe era a única a saber e deve ter me entregado à polícia, do contrário os caras
não estariam me esperando na porta do avião de volta para Zurique, para ser presa em
Berlim.
Não fazem coisas assim sem ter um bom motivo. Para mim, foi o que se passou. Mas não
posso provar.
No início, eram apenas objetos que desapareciam, um de cada vez, como joias antigas,
que tinham sido da minha avó.
Primeiro desconfiei de amigos, pois nem todos eram amigos mesmo, e sim conhecidos
do reduto. Depois me dei conta de haver alguma
coisa estranha quando encontrei meus peixinhos de aquário mortos, no carpete do
apartamento da Reuterstraβe. Comprei outros.
E a coisa voltou a acontecer. Da segunda vez, foram deixados no chão bem em ordem, um
ao lado do outro. Comecei a realmente achar aquilo esquisito. Depois houve a história com o
meu rottweiler, e foi aí então que tive certeza de que nada daquilo era normal.
Por 2 mil marcos eu tinha comprado Bronko, um rottweiler de 4 anos, amestrado como
cão de guarda. Levei cinco dias até ter coragem de deixá-lo sozinho no apartamento pela
primeira vez, com medo de que não me deixasse entrar. Esses animais protegem o território e
o desconhecido que tenta entrar obviamente fica em má situação. Eu havia comprado o
apartamento da Reuterstraβe em 1982. Tinha três quartos e um deles era de uso exclusivo
dos cachorros. As pessoas piravam quando vinham em casa: tinha quinze cães, coleiras por
tudo que é lugar e toneladas de ração. Sempre gostei dos cachorros dos squats e levei muitos
para casa.
Estava em contato com esse meio por causa da minha irmã Anette que, justamente, vivia
num squat. Eles deixavam os animais cruzar à vontade e tinha sempre um monte de filhotes
precisando de cuidado. Foi como acabei montando
um verdadeiro canil no apartamento, construído pelo então companheiro de Anette e
amigos dele.
Um dia, entrando em casa, percebi que alguém tinha tido problemas e saíra às pressas.
Via-se claramente que cadeiras tinham sido usadas para se proteger de Bronko. Os
rottweilers são grandes, e aparentemente o intruso não sabia que eu tinha um.
Nessa época, havia também Donna e Igor, além de muitos outros cães. Mas todos

ficavam no quarto deles, exceto Bronko, que era bem-comportado e continuava sentado no
mesmo lugar até eu voltar. Só que tudo em volta acabava sendo completamente revirado.
Junte-se a isto os vizinhos que começaram a se dar conta do que faziam comigo e
começaram a ficar cada vez mais frios. Pouco a pouco percebi que claramente mantinham
distância. Ao mesmo tempo, notei que faziam obras no prédio, inclusive à noite e nos finais
de semana.
Achei que talvez estivessem colocando microfones e câmeras de vigilância. Realmente
havia alguma coisa estranha no ar. Vultos desconhecidos atravessavam o tempo todo o hall
do prédio. Gente que apenas ia e vinha sem bater em porta nenhuma, sem entregar nem
receber qualquer encomenda.
Eu morava no terceiro andar e havia, tanto acima quanto abaixo, mais dois andares.
Estava a par de tudo, via tudo, aquelas pessoas usavam roupas escuras e maletas, às vezes
chapéu. De tanto observá-los, acabei notando ser a mim que observavam. Meus vizinhos
provavelmente haviam percebido. Por isso ninguém mais queria nem falar comigo.
Demonstrando alguma relação, estariam também na mira daquela gente. E isso era algo que
ninguém queria.
Quando o convívio com a vizinhança se tornou impossível, vendi o apartamento por
quase nada. Não me importava, queria apenas sair dali o mais rápido possível. Através de
amigos de amigos, acabei chegando ao apartamento da Pflügerstraβe, que tinha o famoso
mezanino. E por alguns anos realmente tive sossego. Comecei até a achar que tinha
imaginado coisas na Reuterstraβe.
Só que, quando Phillip tinha 4 anos, eles recomeçaram. Talvez tenham querido poupá-lo
quando ele era muito pequeno, talvez tenham se mantido quietos por Phillip ser ainda bebê.
Mas assim que entrou na creche, tudo voltou a se repetir. O mesmo enredo: os vizinhos
que eram muito simpáticos de início acabaram vendo que havia alguma coisa errada.
Começaram a cochichar a nosso respeito e pararam de nos cumprimentar — todos,
menos uma, Jule.
Que também começou então a ter problemas. Tinha um filho da mesma idade que Phillip
e os dois gostavam de brincar juntos. Uma tarde, notei que alguém remexia em alguma coisa
no andar. Phillip estava fazendo o dever de casa e ouvi um barulho do outro lado da porta.
Pelo olho mágico vi um homem com roupas escuras mexendo na fechadura em frente. Nunca
o tinha visto na casa de Jule, não sabia quem era. Quando ela voltou à tarde, contei o que
havia visto. Ela disse já ter notado duas vezes que a tranca não estava funcionando
normalmente e ter tido a impressão de que alguém havia estado em sua casa. Mas achou que
podia ser o pai, que tinha a chave. Meses depois, Jule infelizmente partiu para a Baviera.
Em Spandau foi ainda pior. Tivemos que ir buscar duas vezes nosso gato Mickey no
sótão, porque o tinham trancado lá. Morávamos no segundo andar, Mickey certamente não
subiria sozinho. Phillip era ainda menino, com 6 ou 7
anos e, é claro, estava ao meu lado. Ainda hoje é um dos raros a sempre me dar apoio.
Nem sei dizer o quanto isso é importante para mim.
Cada criança é em si o tesouro mais precioso do mundo. Mas quando, além disso, ela nos
protege nas horas sombrias, sem nem por isso abrir mão de si mesma, essa criança é um

milagre.
Para mim, Phillip é um milagre, um milagre permanente e diário, desde que nasceu.
Nunca diz que sou louca e que imagino tudo isso. Uma vez, quando estava sentado no
chão do apartamento de Spandau, brincando com o Lego, colou o ouvido de repente no piso e
disse:
— Mamãe, eles estão aqui embaixo.
Pirei. Mas logo quis saber:
— O quê?
— Psiu! Não faz barulho.
— Terça-feira! Marcaram alguma coisa para terça-feira às três horas.
E, de fato, na terça-feira feira, por volta das quatro horas, houve abaixo de nós uma
barulheira dos infernos.
Talvez tudo aquilo ainda fosse para ele uma espécie de brincadeira. Até prefiro que veja
assim. É uma grande força. Posso aguentar tudo, mas não que ache que sou uma
desiquilibrada. Seria demais para mim.
Agora desconfio que estejam montando guarda e se revezando à noite. Em Teltow
também, às vezes ouço alguém entrar no prédio por volta das seis da manhã e andar no
apartamento acima do meu para, minutos depois, sair.
Quem são? Não tenho ideia. Não se dão ao trabalho de me fazer acreditar que são
vizinhos como os outros. Quando bato lá por causa do barulho que fazem andando e também
falando, não abrem. Sempre me deixam plantada diante da porta como se não estivessem,
mas posso muito bem ouvi-los.
Preferiria realmente viver na prisão do que assim. Lá pelo menos a gente pode se
masturbar sem estar sendo vigiada e também não tem câmera ao lado do banheiro. Não faz
muito tempo, quando me pegaram com 4,8 gramas de haxixe e 2,16 gramas de heroína e fui
condenada a vinte dias de prisão ou 70 euros de multa pelo tribunal de Tiergarten, preferi ir
presa a ter que pagar.
Mas não foi possível. Quem pode pagar tem que pagar: acham melhor receber dinheiro
do que ter gastos com você, e daí não deixam escolha.
Por isso é que, em determinado momento, fui ficar com um dos meus conhecidos num
abrigo para sem-teto em Neukölln, apesar de não ter direito. Nunca teriam me deixado
dormir ali se soubessem quem sou e que tenho um apartamento em Teltow. É uma
instituição social chamada GeBeWo e não querem que as pessoas se sirvam dela como se
fosse um hotel, pois estão ali para ajudar a quem realmente precisa. E eu preciso, mas
ninguém acredita — exceto bons amigos, como Felix, que me recebe lá.
Ele acredita. Mas o que pode fazer? Felix foi um durão de verdade, um traficante que
também participou de vários assaltos a bancos.
Já esteve na prisão por agressão seguida de morte e roubo qualificado — coisa barra-
pesada, quero dizer. Hoje está com 60 anos e parece ter 90.

Por causa da droga.
Recentemente entrou para um programa de metadona, após quarenta anos de heroína.
Dormíamos na mesma cama. Era só um bom amigo, mas um amigo que divide comigo
tudo que tem.
Não é muito, mas é bem mais do que dão tantos outros que só se aproveitam de mim.
Todas as noites dormíamos com a cabeça de um nos pés do outro num colchão de
90 centímetros por 2 metros. Quando estava deitado de calção e eu olhava suas feias pernas,
com aquelas grandes cicatrizes bem profundas que os abcessos deixam nos drogados, e os
antebraços cobertos de tatuagens, me dava conta do quanto ele tivera que sobreviver na base
da porrada.
É um abrigo misto. A maioria ali recebe o seguro-desemprego, o Hartz IV, mas no dia
10 de cada mês já não tem mais um tostão. O jeito então é ir em cima de quem passar por
perto.
Mas não quero falar mal de ninguém, muitos ali são bem legais.
No total são quatro andares com oito quartos cada. À esquerda, ao lado da entrada, há
uma quitinete com um fogão elétrico de duas bocas, e o chão, avariado pelo mofo, é coberto
por um linóleo com muita marca de queimado e chicletes pisados. Infelizmente é imundo e
tudo fede um bocado naquele abrigo.
Eu levava uma pantufa porque não tinha coragem de pisar descalça naquele chão. Não
consigo realmente entender como vivem assim.
Derrubam cerveja e mijam em tudo que é canto, bêbados ou drogados demais para
chegar ao quarto ou ao banheiro do corredor. Não podem fazer de outro jeito, são pessoas
doentes. Mas não lhes dão condições decentes de vida. Cachorros andam às soltas na casa e
pulam com as patas sujas nos lençóis, porque os donos nada fazem. Alguns dos residentes
têm feridas tão profundas, de tanto se picar, que elas escorrem o tempo todo.
No primeiro dia, comecei a fazer uma grande faxina no dormitório de Felix, com luvas de
borracha e 1 litro de água sanitária.
Não deixei de fazer, mesmo sabendo que não adiantaria muito. Mas sem isso não teria
aguentado. Precisei lavar o chão três vezes seguidas e a cada uma o pano ficava negro de
sujeira, pronto para ir para o lixo. Quando vi que havia um sistema de evacuação no chão do
banheiro, fiquei felicíssima, pois só teria que empurrar para ali toda a imundície, sem ter que
recolher com a mão.
Mas naquela época estava disposta ao que fosse, só não queria voltar para Teltow.
Preferiria dormir do lado de fora e debaixo de chuva, passar a noite na estação ou
procurar uma associação, qualquer coisa seria melhor do que ir sozinha para casa. A solidão
me dá medo. Sei que não é normal ter preferido ficar ali a estar no meu apartamento. Sei que
não há muito na minha vida que seja normal, pela perspectiva das pessoas normais.
Frequentemente acho que gostaria que as coisas não fossem assim. No fundo, porém,
quem pagava por isso senão eu?
Às vezes, Felix e eu íamos de carro até Teltow para lavar roupa. Supergeneroso, ele nunca

aceitava que eu pagasse e tampouco me pedia. É muito diferente dos outros. Por isso não
somente deixava que viesse lavar suas coisas, como também de vez em quando permitia que
dormisse numa cama limpa.
Mesmo que eu mal conseguisse dormir ao lado dele, pois roncava o tempo todo e se
mexia muito. Eu era obrigada a dormir do lado da cama que dava para a parede, senão ele me
jogava no chão. Houve algum trauma, do qual nunca falava e também nunca me atrevi a fazer
perguntas a respeito. Mas a cada noite essa coisa voltava, algo que ele não conseguia digerir.
Fico chateada por ele.
Já que me deixavam morar no abrigo, eu cozinhava para todo mundo. Coisas simples,
como batatas na manteiga, macarrão ao molho de tomate. Ou preparava um gigantesco prato
de grelhados que havia comprado. A comida desaparecia num ritmo alucinante. A maioria
deles infelizmente não tem o menor senso de comedimento. Nunca foram ensinados a seguir
regras. Em geral, tiveram coisas demais ou de menos: pouca atenção da mãe, carinho físico
excessivo por parte do padrasto, distanciamento insuficiente com relação aos problemas dos
pais, vazio interno excessivo, muitos maus exemplos, poucas ocasiões de escapar deles,
dinheiro insuficiente para poder ir brincar no centro ao ar livre com outras crianças ou, pelo
contrário, dinheiro em excesso. São coisas que levam à rebeldia quem quer se livrar de tudo
isso.
É o caso de Bernd, meu bom amigo há vinte anos. Um sujeito bem comprido e magro.
Ninguém dá nada por ele, mas está sempre acompanhado de belas mulheres. Por quê?
Porque é esperto, tem charme; conhece as boas maneiras. E tem no peito um coração
afetuoso como o de uma moça. Um verdadeiro romântico. Tudo isso junto acaba dando uma
mistura que agrada às mulheres, mesmo que seja um drogado.
Um dia, no abrigo de Felix, vi Bernd lavar a seringa por cima da louça suja. Falta de
higiene é algo que não posso aceitar. Afinal, não somos crianças. Sangue é sangue e pode
transmitir doenças. Mesmo que seja “azul”.
Pois Bernd tem sangue nobre nas veias, mas nunca diz, já que isso traz más recordações.
Foi criado com uma colherzinha de prata na boca, mas preferiu trocá-la por uma de sopa, só
que cheia de heroína, por não ter autonomia suficiente, liberdade e amor. Todos entenderam
isso no dia em que gente da sua família veio de Cambridge a Berlim e revirou todos os abrigos
de sem-teto para encontrá-lo.
Achei no início que queriam ajudá-lo, mas depois o acusaram de ser a vergonha da
família, uma verdadeira desgraça, e prometeram tomar providência. Ele fugiu como pôde e o
ajudamos a se esconder. Ficou uns dias na minha casa em Teltow. Agora vive na rua ou fica
com Felix. Mesmo tendo estudado comunicação e trabalhado numa grande empresa alemã,
acabou não tendo interesse em mais nada além das drogas.
Fico preocupada com ele. Nem toma mais banho. No abrigo, deixa guimbas por todo
lugar, nos vasos de plantas vazios, em que a terra começa a mofar, ou em latas velhas de filé
de arenque, de lasanha pronta ou de frango ao curry. E tudo fica ali escancarado. No máximo
alguém joga um pouco de água em cima, se o cigarro ainda estiver fazendo fumaça.
Bernd não está nem aí, mas gosto dele mesmo assim. Nada disso me choca, nem o
relaxamento nem a sujeira. Não julgo os outros em função das condições em que vivem.

E gostaria muito que fizessem o mesmo comigo.

Eu, Christiane F., A vida apesar de tudoOnde histórias criam vida. Descubra agora