Descobri os inconvenientes da fama pouco depois da publicação do livro. “Christiane F.,
que legal! Pode me dar um autógrafo? Posso tirar uma foto com você? Mas, por favor, não
chegue perto do meu filho e nem venha ser nossa vizinha.” Tudo bem, fique à vontade!
Smile! Obrigada.
E quando se trata de amizade? De hospitalidade? De beber na mesma xícara? Não tem
hepatite C? Tenho, é verdade. Mas pelo menos ponho a mão na boca quando tusso ou espirro.
Meu Deus, eu sou e vou continuar sendo uma junkie-star. Um animal de feira. Um bicho
raro, da espécie “criança da estação do Zoo”.
Bem que gostaria de me distanciar de toda essa história de Christiane F.. Ninguém pode
imaginar tudo que continuo passando, ainda hoje, simplesmente por ser quem sou. Há vinte
anos voltei a morar em Berlim, desde que vim da Grécia. Mesmo assim, não tem um dia em
que alguém não venha perguntar: — Você é Christiane F., não é?
Visivelmente sabem a resposta, seja porque alguém disse ou por terem me reconhecido.
Por terem visto meu rosto no jornal ou na televisão. Cheguei até a ver uma foto minha
na Berliner Zeitung com uma matéria completamente absurda: “O cachorro de Christiane F.
me mordeu”, em letras garrafais na tela do metrô, estando sentada no vagão.
Ninguém olhou para mim e meu chow-chow Leon, mas imediatamente começaram a
cochichar: “Olha, é ela sentada ali.” Ouço muito bem esse tipo de coisa.
Outros querem uma foto comigo, às vezes com toda a família. Como se fossem pendurá-
la na sala! Nós e Christiane F., um sorriso, por favor! É completamente idiota! Querem só
mostrar às pessoas como recordação e se gabar com os amigos e colegas: estive com
Christiane F.! E, para tornar a coisa mais excitante, adicionam um tempero dizendo que eu
estava completamente drogada. Ou que meu cachorro avançou neles ou alguma babaquice
desse tipo.
Mas os que me deixam realmente agressiva são os que me enchem com os próprios
sofrimentos, como se eu já não tivesse os meus: “Estou pior do que você”, dizem. Garantem
ser “mais dependentes” do que eu e que teriam uma história “bem pior” que a minha. Como
se fosse um concurso: “Em busca do melhor viciado da Alemanha!”
Respondo que não basta ter vivido coisas horríveis para arrancar lágrimas das pessoas.
Não estou querendo dizer que fiz algo especial ou que seja alguém especial. Mas muitos
dos que leram meu livro, quando foi publicado, se identificaram comigo ou com meus
problemas.
Outros me leram com carinho. Provavelmente também graças ao trabalho dos dois
coautores.
À maneira como me descreveram.
De modo geral, não quero que isso mude.
O que me faz tentar sempre ser agradável quando alguém vem falar comigo. Ou vão logo
dizer: “Christiane F. é uma rabugenta que trata mal seus fãs.” Mas basta que eu pare na
Hermannplatz para falar com alguém enquanto estou indo ao médico para que a polícia
apareça. Controle de rotina, eles alegam.
Normalmente em menos de um minuto chega também um repórter do Berliner Zeitung
e pronto! Sou uma velha rabugenta que, afinal de contas, voltou às drogas. É o que acontece.
Há jornalistas que inclusive dão dinheiro a
drogados de Kottbusser Tor ou da Hermannplatz para que liguem assim que eu aparecer por
lá. Outros continuam a perguntar seriamente por onde anda Detlev, meu amigo em Eu,
Christiane F., 13 anos, drogada, prostituída… Tenho 51 anos, diabos! Quem na minha idade
sabe onde se meteu o primeiro namorado?
Assim que ponho os pés em Kotti ou na Hermannplatz, mesmo que seja só para tomar
um chocolate quente, toda a imprensa fala de “recaída”. E quando leio: “Christiane F. está de
volta ao reduto”, eu mesma sei que nunca me afastei. Ainda hoje, tenho amigos no reduto
berlinense e, quando quero vê-los, sei que é lá que os encontro. Mas evito ao máximo esses
locais porque um número assustador de pessoas me reconhece e isso me irrita. Em
determinado momento a gente passa da idade de fazer tudo que os outros fazem. Quem
quiser comprar ou consumir droga pode fazer isso em qualquer lugar e não só em Kottbusser
Tor ou Hemannplatz. São locais marcados demais, aliás, com blitz o tempo todo.
Para a opinião pública, entretanto, sou e continuarei sendo a pequena usuária de
heroína, drogada, que se prostituía com outras crianças.
Ter um filho foi a única coisa boa que fiz na vida. Realmente é o que acho. Tenho muito
orgulho dele, é um bom menino e tem atitude.
Do alto dos seus 17 anos, não se deixa enrolar.
Agora quer entrar para a faculdade, estudar informática. Já trabalha por conta própria
nessa área. Ajuda idosos a instalar e utilizar computadores. Phillip é como o pai, que trabalha
com grafismo: tem um fraco por computadores, smartphones e internet.
Se ainda morasse comigo, certamente se alimentaria melhor. Quando estava em casa,
sempre fizemos as refeições em horários regulares. Agora só come pizza e hambúrguer a
qualquer hora do dia ou da noite. Quando era pequeno, não gostava de legumes, como muitas
crianças, mas eu fazia que os comesse, amassados com um pouco de manteiga.
Gostávamos muito de sopas, em que eu colocava inclusive aipo e cenoura. Ele dizia: —
Mamãe, prefiro não saber o que tem dentro, só faça com que fique bom.
Precisava crescer e ficar forte e, com a ajuda do Popeye, eu conseguia que comesse
espinafre com um pouco de cebola e creme de leite.
Agora tem quase 1,85m e mal chego aos seus ombros.
Eu mesma quase não sinto fome. No entanto, peso 65 quilos e tenho 1,72m. Quatro
quilos em excesso, pelo menos para mim. Mas meu corpo não se importa de passar fome, tem
boa experiência nesse sentido. Não emagreço mais porque desde os 13 anos não parei de
seguir regimes nos quais não comia nada. Com isso, entendi que o corpo acaba se adaptando.
Gasta menos energia. A consequência é que engordo mais rapidamente do que pessoas
que fizeram menos regime.
Sei que o álcool tem muita caloria. Regimes não fazem o menor sentido para alguém que
bebe, sobretudo o tipo de bebida de que gosto: licor! É como se fosse açúcar em pó. Mas
vodca e uísque são um veneno para o meu fígado.
Acabariam comigo rapidinho, principalmente se combinados com a metadona.
Atualmente, voltei a doses de 8 mililitros de metadona por dia. Há metadona líquida e
sob forma de pílula. Ambas agem da mesma maneira, evitando que se sinta a abstinência,
fazendo efeito sobre os órgãos receptores. Mas não dá barato e não combate absolutamente o
vício. Pelo contrário. É muito mais duro se livrar da metadona do que da heroína. Os
sintomas são semelhantes: diarreia, vômito, dores no corpo e ondas de suor. E o
desligamento total leva muito mais tempo que o da heroína. Com a heroína, em uma semana
você pode estar livre; com a metadona isso pode durar um mês.
Gostaria de voltar a tomar menos metadona. Nos últimos anos, me mantinha quase
sempre em 5 mililitros, mas minha saúde vai cada vez pior e, como não consigo ir ao médico
todos os dias, quero evitar me sentir mal. Preferiria estar em subdosagem, mas
frequentemente isso gera náuseas e insônia.
Fico muito atenta ao que Phillip diz. Conto a ele meus problemas e angústias e também
falo das alegrias. Sempre peço seu conselho para me vestir. Podem achar que é uma pressão
que imponho, mas, como tenho confiança nele e levo-o a sério, isso significa também que o
acho capaz de enfrentar a realidade. A respeito dos homens, da mesma forma, sempre
perguntei sua opinião. Quando encontro alguém, pergunto a Phillip:
— Tudo bem com ele?
Se me disser que não, não fico enrolando: — Sinto muito, meu filho não te suporta, cai
fora!
Mas com relação ao alcoolismo, ele não pode me ajudar. Não teria como, aliás.
É obrigado a aceitar. Quando está em casa, tento beber o menos possível.
Compro às vezes uma ou duas cervejas para ele. Ofereci uma pela primeira vez quando
fez 15 anos, para que experimentasse sob vigilância. À noite, Phillip se deitava sempre no
colchão da sala, em frente à nova TV de tela plana que temos, porque adorava jogar
Playstation em alta resolução. Comíamos bifes de carne moída com queijo e molho de
tomate, é o que ele prefere. Depois víamos Schlag den Raab, um programa de competições
que ele adora. Eu me sentava perto, na minúscula mesa da cozinha, fazia as unhas com
esmalte verde-brilhante e bebia uma cerveja. Com o ar mais convidativo possível, eu
perguntava baixinho: — Quer uma?
Ele respondia, sem se mexer:
— Boa ideia!
Eu então abria uma.
— Na lata ou no copo?
— Lata.
Entregava uma Tuborg e, estando os dois com nossa cerveja na mão, eu avisava: — Sabe
que se beber essa cerveja toda vai dormir antes do final do programa!
O tal programa ia até as quatro da manhã e eram só nove da noite.
— Tudo bem, vou aguentar.
Como todo adolescente, ele se imaginava superforte e, evidentemente, dormia.
Quando era bem pequeno e pegava no sono na frente da televisão, eu o carregava até o
quarto dele. Até os 11 anos conseguia pendurá-lo nas costas e ir arrastando. Mas agora tenho
mesmo é que acordá-lo e, no máximo, dar um apoio com o braço. Ele está realmente grande,
inclusive mais alto que o pai. Dei aquela primeira cerveja porque não queria que passasse
pelos “testes de álcool” da escola. Sob vigilância, nas escolas do Brandeburgo, os alunos
devem tomar álcool e cumprir tarefas, para que se deem conta do quanto perdem seus
reflexos. Fazem isso por causa das bebedeiras dos adolescentes. Proibi isso também por não
querer que o acusem de beber. Não quero que desenvolva uma resistência ao álcool como a
minha. Posso tomar uma garrafa inteira de
Southern Comfort e continuar falando normalmente. Não desejo o mesmo para Phillip.
Mas que influência ainda posso ter? Algo se partiu quando nos separaram. Não só por
causa da distância ou por nos vermos apenas de quinze em quinze dias.
Isso se fez por nos tirarem o que tínhamos de melhor: nós.
Phillip tinha apenas a mim, e eu, a ele. Nada doentio, era cheio de amor, como acontece
entre mães e filhos. Poxa! Tinha só 11 anos! Era meu menino. Meu menino! Perder alguém
que a gente ama é a maior dor que pode haver.
Quem, de uma maneira ou de outra, já teve que abrir mão de alguém que amava, sabe.
E Phillip? Às vezes acho que ainda tem raiva de mim. Não consegue me perdoar pelas
coisas que o fiz passar quando foi tirado de mim. Nem eu consigo. Nunca vou conseguir.
Evidentemente eu poderia dar um fim a isso, esquecer o que fiz de errado e fazer as
pazes. Há quem consiga. No fundo, porém, faz parte da minha vida nunca largar o sentimento
de culpa.
Sempre tive muita consciência pesada, desde criança. E não consigo superar, posso
apenas afogá-la no álcool ou na droga. Com isso, por um curto espaço de tempo, me sinto
melhor.
Ultimamente, toda vez que analisam os resultados dos meus exames de sangue, os
médicos se preocupam. Dizem que a infecção está se agravando. E eu sempre respondo: —
Pare de me dizer! Não quero saber.
Não sei quanto tempo me resta de vida.
Não faço essa pergunta, me sinto incapaz e não quero ficar pensando na morte.
Frequentemente quis que ela viesse. E às vezes, é claro, ela me assusta. Mas, falando
sério: quem poderia imaginar que um dia eu chegaria aos 51 anos?
Quando a hora chegar, terá chegado e nada mais. Um dia, meu fígado vai parar de
funcionar, meu sangue não se renovará mais e eu acabarei completamente intoxicada.
E morrerei disso.
“Para abordar os enigmas ocultos na alegria proporcionada pela embriaguez, é preciso
outra vez pensar no fio de Ariadne. Quanto prazer no simples ato de desenrolar um novelo! E
esse prazer tem profundo vínculo tanto com o da embriaguez quanto com o da criação.
Seguimos em frente e, nesse percurso, não se descobrem apenas os cantos e recantos da
caverna em que nos aventuramos.
Nele, desfruta-se também da felicidade da descoberta, baseada tão somente no êxtase
rítmico que se experimenta ao desenrolar um novelo.”
Walter Benjamin, Fragmentos
VOCÊ ESTÁ LENDO
Eu, Christiane F., A vida apesar de tudo
Non-Fiction13 ANOS, DROGADA, PROSTITUíDA. MAS E DEPOIS, O QUE ACONTECEU? A história de Christiane F. deu a volta ao mundo. Milhões de pessoas cresceram com as confissões dilacerantes da adolescente alemã de 13 anos, drogada, prostituída. Mas e depois disso, o...