POSFÁCIO

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Certa tarde, no verão de 2013, estávamos sentadas num café da Dieffenbachstraße, em
Kreuzberg. Christiane estava junto à parede com seu chow-chow Leon esticado ao lado. De
costas para a rua e a calçada, não vi uma mulher se aproximar com seu terrier.
Não sei como Christiane os percebeu, pois que eu me lembre em nenhum momento ela
tirou os olhos do sanduíche de queijo que havia aguardado com impaciência. De repente,
ergueu a cabeça, olhou à minha direita, fechou a cara e disse com voz suave à pessoa que
acabava de parar a meu lado:
— Se eu fosse você não faria isso. Se o seu cachorro ficar cheirando o meu, Leon vai se
sentir acuado. Atrás dele tem uma parede; em volta, mesas e cadeiras. Ele não terá para onde
fugir e atacará o seu cachorro para se proteger.
O seu terrier é jovem e não é capaz ainda de pressentir o perigo. E é uma raça que tem
personalidade. É preciso adestrá-los para controlar sua agressividade natural.
Desconcertada, a mulher olhou para mim por um instante e depois para Christiane.
Puxou enfim a coleira do seu cachorro, que já estava perto demais de Leon, e seguiu seu
caminho sem responder.
Christiane deu uma dentada no sanduíche e perguntou, mastigando:
— E a viagem a Paris, é para quando, afinal?
Preciso procurar quem tome conta de Leon.
Por um momento, continuei boquiaberta.
Não pela maneira como Christiane falou com a desconhecida, mas por me espantar
sinceramente com sua avaliação de toda uma situação em pouquíssimos segundos, falando de
um assunto completamente diferente.
Christiane percebe com uma intensidade singular tudo que se passa ao seu redor, às
vezes com a velocidade de um raio. E com a mesma intensidade capta várias emoções que a
deixam com os nervos à flor da pele: é um dos seus traços essenciais, assim como o amor que
tem pelos animais. Uma particularidade no interior da qual se dissimulam diversas questões
e respostas que a concernem e que claramente mostram tanto seu lado sensível e sentimental
quanto suas falhas, sua impressionante força e sua dedicação apaixonante. Quem puder
observar Christiane como ela observa o mundo em volta, talvez a compreenda.
Alice Miller, uma psicanalista suíça morta em 2010, descrevia essa capacidade
exacerbada de observação como uma “mistureba de emoções”, que em Christiane podem ter
se originado na infância, de tanto que se viu dividida entre o amor e o ódio paterno. Pois
aceitava sem nada dizer as violências e descasos do pai, respeitado e amado apesar de todo
sofrimento e humilhação.
Em seu livro No princípio era a educação, Miller procurou demonstrar que o prazer que a
jovem Christiane F. tinha com a droga podia ser uma espécie de terapia a que ela se submetia
para domar aquele caos emocional. Em vez de se entregar à raiva pelo pai, teria optado por
acalmar a dor.

Para muitas crianças, compreender os erros dos pais seria mais fácil do que deixar de
acreditar neles. Mas a confiança original fica duradouramente perturbada, até a idade adulta.
Pelo ponto de vista da psicanálise, a “confiança original” permite que as pessoas
percebam e julguem o mundo que as envolve de maneira nuançada e desenvolvam certas
qualidades, como a segurança nas suas relações com os outros e consigo mesmo.
Felicidade e infelicidade ainda hoje andam bem próximas na vida de Christiane. Ela às
vezes tem dificuldade de confiar nas pessoas, inclusive nela mesma. Há bastante tempo
Christiane Felscherinow não lê na mídia algo positivo a seu respeito. Em 2006, o Frankfurter
Rundschau falava de “sombras do passado”, e dez anos antes o Hamburger Abendblatt
anunciava “A vida perdida da jovem drogada Christiane F.”. Na Park Avenue, em 2008, lia-se
“O combate de Christiane Felscherinow contra Christiane F.” e, no mesmo ano, o suplemento
de fim de semana do Berliner Zeitung citava como título de uma reportagem dedicada a ela a
letra de uma música que Christiane gravou aos 20 anos: “Sou tão viciada”.
Segundo o Bild, ela nunca conseguiu escapar das “sombras do passado”. Em janeiro de
2011, o jornal noticiou que Christiane F. tinha novamente sido “vista entre junkies”.
“Christiane F. revistada durante investida contra as drogas” foi o destaque do Berliner
Zeitung no dia anterior. Os dois tabloides apenas de passagem mencionavam o fato de que, ao
revistarem a bolsa de Christiane, nenhum vestígio de droga foi encontrado.
Ainda está viva? Continua drogada? Em geral, essas eram as primeiras perguntas que me
faziam ao saberem do trabalho que estávamos realizando juntas. Sem dúvida, é lógico e até
legítimo perguntarem se Christiane se manteve uma junkie ou não. E a resposta se resume
em poucas palavras: sim, as drogas sempre fizeram e continuam fazendo parte de sua vida.
Mas, justamente, são apenas parte de sua vida.
Trabalhando com ela e me informando com especialistas no apoio a toxicômanos e no
tratamento das dependências, tomei consciência da complexidade do tema.
Sobretudo pelas diversas maneiras de ser um dependente de drogas. É evidente que
existem toxicômanos que sofrem de exclusão nos planos sanitário e social, pessoas que
passaram por múltiplos diagnósticos psiquiátricos, que desistiram de si mesmas e de todo
tipo de relação com a sociedade tradicional. Mas um bom número deles nada tem a ver com o
reduto que o grande público conhece graças a Eu, Christiane F., 13 anos, drogada,
prostituída…
Há professores, policiais, banqueiros que consomem heroína regularmente. Há usuários
de droga que têm família e se mantêm mais ou menos em boa saúde. Há drogados que não
imaginamos que sejam.
Graças ao apoio aos toxicômanos e ao tratamento da dependência, hoje em dia é possível
levar uma vida decente apesar do vício.
E inclusive envelhecer com isso. Como disse Christiane: “Quem poderia imaginar que
um dia eu chegaria aos 51 anos?”
Compreendi durante minhas pesquisas que observar o vício é observar as relações. E é
exatamente isso que se esconde por trás dessa autobiografia.
Christiane e eu nos aproximamos muito uma da outra — tanto que agora me meto
também a falar de cães. Às vezes chegamos a bater de frente. Discutimos, brigamos e

frequentemente nos exaurimos.
Por termos ideias diferentes com relação ao nosso planejamento, aconteceu de quase
chegarmos às vias de fato e, inclusive, uma vez berramos uma com a outra em plena
Alexanderplatz. Na frente de todo mundo. Eu comecei a chorar e, em seguida, ela também.
Mas depois das lágrimas vieram as desculpas: — Por favor, me desculpe, Sonja. Quando
me sinto encurralada, sou má e agressiva. É o que muita gente faz comigo. Não estou
acostumada a lidar com a possibilidade de funcionar de outra forma — explicou ela.
Fiquei desarmada, acabamos nos abraçando e, alguns meses depois, quando houve a
cena com Leon e o pequeno terrier no café da Dieffenbachstraβe, não pude deixar de sorrir
pensando: “Pelo visto a lenda de que o cachorro e o seu dono acabam se parecendo após
alguns anos de vida em comum não é completamente equivocada.”
A etapa mais difícil se deu com o confronto de nossas visões de mundo, nossos valores e
hábitos. Mas foi também a mais essencial no caminho que nos levou juntas à execução e
publicação deste livro. Não foi, contudo, complicada apenas por questões de proximidade,
confiança e compreensão, mas também por razões práticas.
Os problemas de saúde de Christiane e suas condições de vida descritas no livro
raramente permitem que se organize um ritmo regular de trabalho. Mobilidade para viajar,
por exemplo, é quase impossível para ela, não só por causa de Leon, mas sobretudo tendo em
vista o tratamento de substituição que ela segue. Os substitutos da heroína devem ser
ingeridos diariamente e só podem ser entregues pelo médico do paciente.
Tivemos a sorte de um antigo médico especialista em substituição ter aceitado dar a
Christiane duas doses diárias de metadona para que pudéssemos partir com Leon às margens
do Havel, para três dias intensos de trabalho.
Quando entrei em contato com ela pela primeira vez, estava convencida de ser também a
última em que ouviria sua voz. Colegas que a conheciam tinham me prevenido: “Ela nota
quando estão embromando e se protege imediatamente!” Então fui honesta: — Bom-dia, me
chamo Sonja Vukovic. Sou jornalista do Die Welt e gostaria de escrever uma reportagem
contando como está você, trinta anos após o lançamento do seu filme — expliquei quando
Christiane Felscherinow atendeu ao chamado pelo interfone do seu edifício em Teltow, com
um “alô” hesitante e vagamente sonolento.
Era mais ou menos meio-dia, num dia bem frio, no fim de novembro de 2010, e houve
apenas uma ligeira inverdade na minha apresentação: faltava ainda um mês para eu
realmente ser jornalista.
Eu era estagiária e estava no segundo ano de formação no curso de jornalismo da Axel
Springer Akademie, mas já tinha comigo o contrato com o Die Welt — e também uma
passagem de avião para Nova York, onde todos os formandos da minha turma iriam no início
de dezembro do ano seguinte receber seus diplomas. Teríamos dez dias de aulas na
Universidade de Columbia e apresentaríamos uma pesquisa de pauta sobre o que seria
publicado em seguida num dos veículos da Springer. Esse era o previsto.
Desde os 14 anos trabalhei para diferentes órgãos da imprensa em nível regional e
nacional. Fui por exemplo repórter freelancer para o Rheinische Post, estagiária no Der
Spiegel e colaboradora do Berliner Morgenpost. Meu interesse claramente sempre se

orientou para reportagens biográficas e de crítica social: personalidades extremas e destinos
originais me fascinavam.
Voltando ao mês de novembro de 2010 e ao projeto com Christiane Felscherinow, eu
havia pedido ajuda a Michael Behrendt, chefe de reportagem do Berliner Morgenpost e
cronista judicial experiente. Michael já escreveu livros apaixonantes sobre fases complicadas
de vida e possui contatos junto a todos os órgãos competentes. Foi a ele que perguntei se não
podia me ajudar a descobrir onde morava Christiane. E também se me assistiria, como
acompanhante masculino e especialista no assunto, caso eu tivesse que me aventurar pelo
reduto da droga berlinense para fazer minhas pesquisas. Apenas duas semanas depois,
Michael e eu estávamos então diante do edifício em que Christiane Felscherinow aluga um
apartamento desde 2005.
Estava surpresa de ver a que ponto o lugar que ela havia escolhido era pouco animado,
com prédios em tijolos aparentes de estilo recente, cercas vivas bem-aparadas, árvores, ruas
amplas e bem limpas. Jovens casais se abraçavam em bancos ao redor de um lago. O
apartamento de Christiane era em cima de uma loja chamada Casa das Belas Coisas.
Quando ela atendeu o interfone era mais ou menos meio-dia. Depois de me apresentar e
dizer o que queria, houve uma pequena pausa e Christiane disse:
— Não é um bom momento, a campainha me acordou. Deixe seu cartão na caixa do
correio.
E desligou.
Droga! Tinha escolhido um dia ruim.
Minha ideia era tentar passar o máximo possível a imagem de uma pessoa confiável e
seria obrigada a deixar meu cartão de estagiária, contradizendo a forma como me apresentara.
Ouviu-se um zumbido, um clique e a porta de vidro do edifício se abriu. Entrei no hall
bem limpo com cerâmica cinza, paredes pintadas de branco e uma escada escura.
Procurei entre os oito escaninhos brancos qual tinha o nome Felscherinow. Pronto.
Deduzi que morava no terceiro andar. Joguei meu cartão na fenda da caixa e fui embora.
Ainda hoje, Christiane conta essa história sempre que me apresenta a alguém,
acrescentando:
— Sonja foi a primeira jornalista a não se aproveitar da oportunidade e correr até a minha
porta. Não tentou olhar pelas frestas nem ficou perguntando aos vizinhos: como é viver sob o
mesmo teto que Christiane F.?
Respeitando a vontade de Christiane de estar tranquila, havia ganhado o seu respeito.
Já bem tarde no final do dia, depois das oito da noite, meu celular tocou. Número
desconhecido.
— Alô, é Christiane — disse uma voz de fumante, mas mais relaxada agora, do outro lado
da linha.
Fiquei confusa e ela percebeu.
— Eu disse que ligaria — continuou, como se o fato de cumprir o que disse fosse
absolutamente óbvio.

Marcamos de nos encontrar dois dias depois, às sete da noite, no Gaffelhaus do
Gendarmenmarkt. No dia marcado, uma hora depois do previsto, ela ainda não havia
chegado. Michael e eu já tínhamos pedido a conta quando, de repente, a porta se abriu. Ali
estavam os dois: Christiane e Leon.
Mal acreditamos. Era aquela mulher que os jornais antes haviam dito ter chegado ao
fundo do poço dois anos atrás? Que, mais de três décadas depois do sucesso que a sua
história havia alcançado no mundo inteiro, ainda era suspeita de consumir quantidades
enormes de heroína, álcool, remédios? A mulher que, na opinião pública e — até pelo que
diziam os jornais — da própria família, não tinha mais a menor chance de escapar? E que
supostamente havia perdido tudo — reputação, fortuna, saúde — a ponto de nem ter mais
contato com a família e a guarda do filho?
Christiane estava exuberante! Tinha os cabelos bem-tratados e tingidos de vermelho-
escuro, sadios, bem penteados, indo além dos ombros. A parca cinza que vestia poderia ser de
uma russa elegante de Grunewald. E estava acompanhada daquele pequeno chow-chow com
ar atrevido.
— Uau, está um calor de matar aqui! — exclamou antes até de nos cumprimentar e
amarrando Leon no aquecedor, diante do vidro que dava para fora.
Nevava, mas Christiane tinha a testa banhada de suor. Hoje sei que é um efeito
secundário da terapia de substituição e da hepatite. Sentando-se, arregaçou as mangas do
pulôver lilás de gola rulê, pediu um suco de maçã e fixou em nós seus grandes olhos verdes
que todo mundo conhece. Tinha-os realçado com rímel preto, os lábios e as unhas vermelhos.
Somente as cicatrizes no dorso das mãos, depois que tirou as luvas de lã preta, comprovavam
que aquela deslumbrante mulher de vulto esbelto, então com 49 anos, era a mais célebre
junkie da Alemanha.
Não foi preciso que nos apresentássemos nem que fizéssemos qualquer pergunta.
Christiane falava aos borbotões. De tudo que a interessava. Das inundações que vinham
afetando muitos alemães. “Ela parece saber em que altura está o nível da água hoje do Main,
do Oder e do Ems”, pensei. Passava sem parar de um assunto a outro, como se respondesse a
si mesma. Depois das fortes chuvas, passou a falar de Ich bin ein Star, holt mich hier raus, *
em que Sarah Knappik choramingava o tempo todo.
— Me chamaram para me juntar a eles na selva australiana — disse. — Nem morta! Ser
observada 24 horas por dia e filmada fazendo cocô e vomitando… Essa gente não dá a mínima
à própria intimidade?
Opinião à primeira vista surpreendente, vinda de alguém que contou ao mundo inteiro
ter se prostituído quando criança para poder comprar droga e que ainda hoje não via
problema algum nisso. Mas entendi o que causava tanta aversão, quando ela acrescentou: —
Provavelmente as pessoas que aceitam nunca foram perseguidas por câmeras invadindo toda
a sua vida privada, não foram filmadas e fotografadas nos momentos mais terríveis e
humilhantes, registradas dessa forma para a eternidade.
E Christiane Felscherinow começou a chorar.
— Até hoje não consigo entender que tenham tirado meu filho de mim — disse.
Lágrimas inundaram seus grandes olhos verdes. Breve pausa. Ela mesma passou a outra

coisa:
— Quando meu filho tinha seis semanas, ele quase morreu. — E continuou falando da
coqueluche do bebê.
Depois, sem explicar a relação, passou o foco para um amigo doente, evocou rapidamente
o reduto da droga de Kottbusser Tor e voltou em seguida aos jornais “que dão dinheiro a
junkies para que avisem aos jornalistas quando me virem por ali”.
No final daquele encontro, eu não tinha resposta nenhuma às minhas perguntas — pelo
contrário: dúzias a mais tinham se acrescentado. Tal situação se manteria por muitos
encontros e dura até hoje.
“Teria com que encher um jornal inteiro com as histórias que ela conta”, pensei em
determinado momento.
Depois disso, três anos se passaram e, como o projeto exigia muita disponibilidade e
flexibilidade, Michael Behrendt e eu combinamos que eu continuaria sozinha. Além disso, em
dezembro de 2011, meu contrato com o Die Welt expirava e isso me levou a tomar a seguinte
decisão: concentrar-me exclusivamente no trabalho com Christiane.
Recentemente, uma bela coincidência me tranquilizou com relação à escolha feita: uma
noite, já tarde, num McDonald’s, Christiane encontrou três garotas de 17 anos do
Brandeburgo --- eram então jovens demais para terem necessariamente ouvido falar da sua
história. Ainda mais se considerarmos que o livro não havia sido pubicado na Alemanha
Oriental até a queda do Muro e que Christiane não ficou "famosa" naquea parte da República
Federal com o mesmo entusiasmo que no restante do país. Enquanto as três moças
coonversavam com Christiane, tomando um sorvete, sua identidade acabou vindo à tona por
algum motivo --- e, nesse momento, uma delas desandou a chorar de tão emcianada.
Sonja Vukovic, julho de 2013

Eu, Christiane F., A vida apesar de tudoOnde histórias criam vida. Descubra agora