4 - ANNA

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Eu estava completamente vazia e apática quando Anna Kell entrou na minha vida como
um anjo da guarda. Tinha uma bolsa de artista e trabalhava no Kurfürstendamm —
justamente com Markus Lüpertz, o artista que hoje tem seu ateliê bem em frente ao meu
velho apartamento de Teltow. Agora que somos vizinhos, um dia, passando na rua, me
apresentei a ele, que publica uma revista chamada Frau und Hund:
— Olá, somos Christiane e Leon, eu e meu chow-chow. Mulher e cão.
Perguntei se ele se lembrava de mim, mas a história com Anna fora há 25 anos. Markus e
os que estavam com ele não pareceram achar tão engraçado. Descobri mais tarde que me
enganei com o título da revista. Frau und Hund é uma publicação de arte e literatura.
Poderiam ter dito, em vez de me deixar plantada ali como se tivesse uma doença contagiosa.
Mas voltando à Anna: era artista e casada com Daniel Keel, um editor suíço já bem
conhecido na época. Grande literatura e romances policiais faziam o sucesso da Diogenes, a
sua editora. Os Keel frequentavam um círculo completamente diferente do meu, moravam
num bairro chique de Zurique.
Gostaria de ter passado uma melhor impressão de mim. Heiko Gebhardt, um colega de
Horst e Kai na Stern e que escrevera, cinco anos antes, um happy end para a minha história —
Christiane F. se retira da cena pública, a princípio desintoxicada — dera meu número de
telefone para Anna, mas bem no momento em que eu mergulhava de novo nas drogas.
Anna entrava na casa dos 40. Telefonou e disse que conhecia os jornalistas da Stern, que
era alemã, mulher de um editor suíço, e que meu livro era o único que os seus filhos Jakob e
Philipp tinham lido.
Eu ri. É claro, os pais sempre fazem besteira. Anna achava que seria bom conhecer a
mulher que tanto encantara os seus filhos a ponto de fazê-los ler e me convidou para ir a seu
apartamento, quase vazio, num bairro da zona oeste da cidade.
Lembro que peguei um táxi em Lehniner Platz. Podia, na época, me dar a esse luxo.
Repassava as notas fiscais ao contador, como autora independente, e podia abater dos
meus impostos. Só andava de táxi ou bicicleta, nunca tomava o metrô imundo, em que
sempre se cai no mundo das drogas.
Assim que entrei no apartamento, me entusiasmei. Adoro cômodos vazios, sempre tive
poucos móveis nos lugares em que morei.
No de Anna, quase não tinha nada: uma cama, uma mesa e um balcão de cozinha — tudo
muito elegante e caro. A única marca pessoal eram as roupas, espalhadas por todo canto,
como fazemos em geral nos hotéis.
De alguma maneira, acho que a criatividade precisa de espaço. O apartamento era de dois
cômodos bastante pequenos e um banheiro.
Nada de flores nem fotos, mas havia num canto, perto da janela, um sublime desenho a
carvão num cavalete. Era uma pomba, em diferentes tons de cinza. Falamos do trabalho dela
de artista, do meu livro, de mil coisas e a conversa foi animada desde o início. Acabei

perguntando:
— O que você tem na geladeira?
Sem esperar resposta, abri e o que vi? Uma pomba morta. Adorei, mas Anna ficou
vermelha e sem graça. Explicou que na hora estava sem a câmera polaroide e precisou então
do cadáver para desenhar.
— Por favor, não vá pensar que sou doida — quis se justificar.
— Penso, sim! — respondi.
Anna era meiga e boa. Uma bela mulher, loura e com muito charme. Nada burguesinha.
O que gostava nela era que sempre era elegante, mas descontraída. Os cabelos eram
cortados em camadas e se precisasse se preparar para um evento mais solene, uns poucos
bobes bastavam.
Em vinte minutos estava perfeitamente apresentável.
Tinha realmente muita presença. Ainda bem, pois como todo homem de personalidade
forte, Daniel não era fácil. Homens assim precisam de uma companheira ainda mais firme. E
Anna era desse tipo, não cedia aos caprichos e angústias do marido, mas estava sempre
presente. Não se incomodava que ele se dedicasse tanto ao trabalho, pois tinha o seu.
Pintava naturezas-mortas, nus e fazia fotos incríveis. Naquele período, trabalhava com
retratos fotográficos como louca, imagens impressionantes que contavam vidas inteiras.
Dei força para que publicasse as polaroides.
Tem também uma foto minha no livro. Foi tirada no dia em que nos conhecemos. Eu
pesava 53 quilos e tinha um dogue enorme comigo: Beate, uma bullmastiff.
Na foto, eu segurava a cadela com uma das mãos e um café com a outra. Estava com
roupas esquisitas à americana, com listras e franjas. Tinha comprado durante a viagem de
divulgação do filme nos Estados Unidos.
Uns meses depois, fui à Suíça visitar os Keel, que naturalmente me hospedaram.
Alugavam ainda uma casa antiga, de madeira, na Eleonorenstraße, de três andares e
escadas de degraus altos. Nada pomposa, sem roseiras nem jardineiro, somente muitas obras
de arte, livros e pilhas de papel por todo lugar.
Ouvia-se o apito dos trens, os sininhos das vacas e a velha senhora do andar de cima que
reclamava:
— Não façam tanto barulho!
Era a proprietária, uma mal-humorada que não lia os romances da Diogenes, e sim a
Bíblia.
Irritava-se porque à noite, durante o jantar, eu contava minhas histórias, empolgada, e
todos dávamos gargalhadas. A família gostava muito de mim.
— Christiane, fale mais de Berlim.
As pessoas ricas muitas vezes ficam entediadas mortalmente.
— Conte alguma coisa bem louca.

Não era a primeira vez que tinham um convidado vivendo com eles como se estivesse em
casa. Nos anos da primavera de Praga, o caçula, Philipp, ainda bem pequeno, tinha que dormir
na banheira porque os pais recebiam um monte de refugiados tchecos. Autores dissidentes.
Jakob, o mais velho, cujo apelido era Köbi, acabava de fazer 18 anos e tinha deixado a casa
dos pais: herdei o quarto dele.
Além de nós, havia também a empregada da casa, Carmelina, italiana e melhor como
pessoa do que como cozinheira. Tinha mais ou menos 45 anos e, de fato, não cozinhava bem,
mas era alegre e tinha bom coração. Praticamente fazia parte da família.
Anna tinha nascido em Chemnitz. Casou-se com Daniel nos anos 1960 e deixou a cidade
antes de se formar na RDA. Havia fotos dela com cerca de 20 anos no seu Fusca, cheio de
esboços de desenhos no banco traseiro.
Radiante, era realmente muito bonitinha.
Quando me mostrou as fotos, contou que, depois de uma briga com Daniel, tinha pegado
o Fusca e ido embora. Só voltaram a se encontrar graças ao amor comum pela pintura.
Como artista, ele não era brilhante, e por isso acabou se consagrando aos que lhe
pareciam mais favorecidos. Mas era imbatível em se tratando de descobrir talentos. Anna,
pelo contrário, tinha grande competência, mas sabia que precisava manter isto em segredo se
quisesse continuar com Daniel. No início, tiveram brigas violentas, a ponto de um dia ter feito
as malas e pegado a estrada para Milão com seu Fusca, para se dedicar à pintura. Mas ele foi
buscá-la, jurou amor e respeito por sua vocação. Foi quando se casaram.
As brigas chegavam a ser comoventes. Um dia vi Daniel, furioso, retalhar um vestido de
Anna. Ele estava sentado na cama, de tesoura em punho e cortando em pedaços a roupa,
resfolegante e resmungando.
Era uma maneira de exprimir a raiva se mantendo calmo. Pois no fundo era um sujeito
tranquilo. Um homem curioso, que preferia ouvir a falar. Um homem a quem se pode contar
uma história por horas. Para mim, era perfeito! Quando começo… Falar, falar, falar é minha
melhor terapia.
Muitas vezes ele ficava sentado e ouvia, fumando um charuto. De certa maneira, se
identificava um pouco comigo: tinha fracassado como pintor e escritor, e eu como cantora e
atriz. Havia abandonado a escola e seguido uma formação em livraria, exatamente como eu.
Logo na primeira vez que nos encontramos, ele disse:
— Uma livreira que largou os estudos tem o direito de dormir na minha casa. Fiz o
mesmo.
Tínhamos um bom entendimento. Sentia-me mais próxima de Anna, mas respeitava
muito Daniel. Por exemplo, não o abraçava nem o beijava quando ia me deitar. Achava não
ser apropriado. Foi o primeiro pai de verdade que tive.
No fim de semana, geralmente, ele se retirava com montanhas de livros na residência
que tinham alugado, além da casa da velha senhora. Era onde passava mais tempo quando
queria ter calma.
Eu frequentemente via um amigo da família, um homem que estava então muito doente
e tomava uma enorme quantidade de remédios para dor. Falo dele porque o olhava muitas
vezes com inveja: se tivesse acesso à sua farmácia, não conseguiria me controlar. Isso não

parece lá muito cristão, mas, na época, tinha inveja por causa de todos aqueles analgésicos
que tornavam para ele a dor suportável.
Anna, que possuía como refúgio um ateliê na Hottingerstraße, com quarto e banheiro, se
tornou para mim, ao mesmo tempo, a melhor amiga e uma mãe substituta. Era quem me
abraçava e consolava quando eu tinha desilusões amorosas, se esforçava para que me
alimentasse de maneira saudável e praticasse esportes. Ensinou-me a cozinhar e trocávamos
roupas, com ela me emprestando seus escarpins caríssimos. Zurique é ótima para compras.
No mais, é uma bela cidade, mas bem entediante.
As pessoas são gentis e frequentemente esnobes. Ai de você se fizer sinal para um táxi
comendo um bürli (um pãozinho suíço): nenhum vai parar. Após três semanas em Zurique,
me sentia como em Kaltenkirchen: não aguentava mais a cidade. Não tinha o que fazer, à
meia-noite tudo estava fechado. Não se pode nem mesmo improvisar uma ida a um
restaurante, ninguém é aceito sem ter feito reserva. E é uma coisa que não consigo fazer, não
sei com dois dias de antecedência se vou ter fome no sábado às sete e meia da noite.
Prefiro comprar camarões na feira e preparar em casa quando me der vontade.
Por causa de tudo isso me distraía trabalhando para os Keel. Era uma espécie de
assistente. Por exemplo, controlava as fichas para saber qual autor estava aniversariando,
encomendava flores e mandava entregar.
Regularmente comprava coisas também para a editora, para o escritório de Daniel em
casa, para o ateliê de Anna e para os jantares que eles davam.
Duas ou três vezes por semana havia jantares, aos quais eram convidados autores e
pintores. Conheci Federico Fellini, Georges Simenon, Patrick Süskind, Patricia Highsmith.
Ao lado da esposa loura e bonita, Daniel parecia velho, mesmo que muitas vezes fosse
mais moço do que os convidados — com exceção de Süskind, é claro. Na época em que morei
com os Keel, O perfume era um enorme sucesso.
Podia-se até achar que era um romance feito para mim. Meu livro começava com o
cheiro de urina de Gropiusstadt. De maneira geral há muitos odores na minha vida. Mas não
gostei nem um pouco de O perfume. Achava Jean-Baptiste Grenouille repugnante e não
entendia o seu universo. Se tem uma coisa que não suporto são os cheiros corporais. Alguém
que mata as pessoas para conservar seu cheiro, realmente não deve ser bom da cabeça. Esse
tipo de coisa está além do meu entendimento.
É como a violência e a vontade de matar.
Mas isso não incomodou Süskind. Era um sujeito mais reservado. E minha opinião não
tinha a menor importância. Milhões de leitores pensavam de outra forma.
Os pratos costumavam ser simples nos Keel: espaguete à bolonhesa ou peixe, por
exemplo.
O único luxo eram as boas garrafas de Bordeaux na mesa — e tinham recebido-as de
presente, brincava Daniel. Não estavam ali representando um papel, mesmo que as noitadas
fossem frequentemente bem teatrais.
São boas lembranças, mesmo que nós, “as crianças”, Philipp, Jakob e eu, não
gostássemos muito daqueles jantares. Como bastava que um de nós estivesse presente, a

gente se revezava na maioria das vezes. E se não resolvíamos quem se sacrificaria, decidia-se
no palitinho. Uma noite em que fui sorteada, acabei sentada à esquerda de Friedrich
Dürrenmat. Sua segunda mulher, mais nova que ele, estava à direita. O homem sentado à
esquerda de uma mulher é o seu cavalheiro, segundo a regra. Anna que me ensinou. Gostava
muito de Dürrenmatt, mas não de seus livros.
Talvez porque na escola nos obrigavam a analisar e comentar, para ver se tínhamos
entendido “da maneira certa”, e eu achava isso muito chato. Por que as pessoas não podem
dizer espontaneamente o que pensam? É evidente que não fiz diretamente a pergunta a
Dürrenmatt, mas observei que a literatura, como tantas coisas, é uma questão de gosto.
Lembro-me da fala de uma editora num filme: “Você pode criticar a personalidade de um
escritor, e ele dirá que é capaz de mudar. Mas não se meta com o trabalho dele.”
O célebre Dürrenmatt não estava habituado a tais insolências. Quando me ouviu dizer
que O juiz e seu carrasco tinha sido tedioso para mim, ele mordeu os lábios, limpou a
garganta e ajeitou os pesados óculos no nariz.
Anna e Daniel sorriram, eu vi. Algum tempo depois eles deixaram em cima do meu
travesseiro Minotaurus, como faziam toda vez com as novas publicações de seus autores.
Nesse livro, o monstro com cabeça de touro e devorador de crianças era um pobre
coitado, completamente sem rumo. Na época eu não tinha ainda ido à Grécia, nada sabia
sobre Ariadne e Naxos. Mas o minotauro de Dürrenmatt não me interessou muito.
Os meninos Keel e eu o chamávamos “vovô Dürrenmatt”, porque tinha os cabelos
brancos, nariz e barriga grandes, além de muitas outras histórias para contar, e elas
animavam aquelas noites e nos faziam rir.
Por outro lado, não suportava a mulher dele. Achava ter compreendido por que ela estava
com ele. Não sei se finalmente ela herdou tudo. Mas quem não for tão imbecil, vai até o fim.
Se não me engano, ela própria escreveu um livro sobre a sua vida com Dürrenmatt. Suas
maneiras claramente irritavam Patricia Highsmith, que também tinha contrato com a
Diogenes. Como escritora, tivera um sucesso mundial com Pacto sinistro e O talentoso
Mr. Ripley, a história de um arrivista que toma a identidade alheia e se introduz na alta
sociedade, avançando por cima de cadáveres.
Patricia vinha do Texas, fumava como uma chaminé, e eu gostava de suas maneiras meio
rudes. Mas não era recíproco. No entanto, ela apreciava menos ainda a mulher de Dürrenmatt
e jogava coisas na cara dela — verbalmente, é claro — cada vez que a outra falava dela: tudo
que fazia, tudo que sabia fazer, que era atriz, que estava em plena crise de inspiração. E que
também esquiava maravilhosamente.
Mais tardeAnna me contou que Dürrenmatt havia conhecido a segunda esposa logo
depois da morte da primeira, com quem vivera por quarenta anos. Quando os vi, estavam
juntos há apenas um ano. Talvez ela o ajudasse a superar o luto. Anos mais tarde, um amigo a
quem falei desses encontros me mostrou um artigo do jornal Zeit cujo título era: “As viúvas
de escritor, a salmonela do mundo literário.” Mas vamos deixar isso para lá.
Com minha cara de pau berlinense, os outros gostavam de mim:
— Ei! Tenho seis garfos à minha frente! O que faço com isso?
Riam de dar gosto, sem acreditar que eu estava falando sério.

Um dia, estávamos no Kronenhalle, o restaurante mais caro e, segundo os Keel, o mais
chique de Zurique.
Era um ponto de encontro de atores, artistas e escritores. Yves Saint Laurent, Oscar
Kokoschka, Andy Warhol, Max Frisch e outros, todo mundo aparecia por lá.
Eu tinha, em todo caso, um prato vazio à minha frente e, acima, um original de Picasso.
Picasso, simplesmente.
— Picasso, tudo bem, mas e o rango, cadê?
— reclamei.
E aquela burguesada de Zurique ria discretamente, mas sou assim mesmo: primeiro falo,
depois penso.
Aquele ambiente, porém, de fato não era o meu. Ficou claro para todos nós. Artistas,
escritores, banqueiros e relojeiros, havia um mútuo respeito, é claro, mas, ao contrário de
muita gente, encontrar pessoas ricas nunca fez a minha cabeça. Não gosto desse lado polido e
distante com que tratam os outros. Como se aproximar quando se perde tempo com
tratamentos cerimoniosos, apertos de mão e nunca um abraço?
Óbvio que não eram amigos, e sim sócios, empregados, pessoas entre as quais há sempre
um contrato a se negociar. Respeito muito, era bem engraçado e sou grata por ter podido
viver tudo aquilo. Mas era a vida de Anna e Daniel, não a minha.
Loriot era bastante amigo de Daniel Keel.
Tinha pouca paciência com aquela gente de Zurique, exatamente como eu. Não que não
gostássemos, mas nós, alemães, somos mais rápidos pensando, ou pelo menos mais rápidos
falando do que os suíços. Durante um passeio organizado para os escritores a Sils-Maria,
também fomos mais rápidos andando.
Lá, Anna, Daniel, os dois filhos e eu encontramos o escritor Urs Widmer. Andamos 1,5
quilômetro até a casa dele e comemos salsichas e rosti à frente da lareira. Caloroso e
agradável. De dar sono. Minha cabeça tinha rodado o dia inteiro por causa da altitude, estava
morta de frio e achando tudo meio chato. Não queria sair dali e voltar para o hotel.
Então, Loriot chegou e fizemos juntos o caminho de volta. Já tínhamos nos visto uma
vez, na ópera de Zurique, mas ele estava totalmente concentrado na música, e eu, bebendo
champanhe demais, ou seja, tínhamos conversado muito pouco.
Mas ali caminhávamos diante dos outros com a neve empilhada a 3 ou 4 metros de altura
à direita e à esquerda. E mergulhamos numa conversa, esquecendo dores de cabeça e frio. O
mais engraçado é que não se via, na expressão do rosto, que estava brincando. Gosto muito
desse tipo de humor malicioso, e Loriot tinha maneiras divertidas e, ao mesmo tempo,
tocantes. Seu senso de observação e humor despiam sem dó nem piedade o lado mais feio das
pessoas, mas sem nunca ferir.
Naquele dia, nas montanhas de Sils-Maria, seu estado de espírito nem estava tanto para
brincadeiras. Falamos do mundo das edições, mas também do tragicômico da existência.
Confessei estar mais interessada nos analgésicos de um amigo dos Keel do que em seu
sofrimento. E acho que Loriot podia compreender isso.

Não julgava, apenas pensava em voz alta, dizendo que as pessoas só conseguem criar
laços com as coisas fazendo-o com o seu contrário. Que é mais fácil se confrontar com os
assuntos graves e negativos brincando do que falando sério. E também que nos sentimos
mais vivos na presença de coisas mortalmente perigosas. Quando disse isso, me lembrei de
Hector Coggins.
Loriot me disse também o quanto era difícil para ele ser criticado sem o menor escrúpulo
pela crônica mundana. Berliner Zeitung e Bild só apontavam defeitos nele.
— Sabe, Christiane, você não pode levar muito a sério o que a imprensa escreve a seu
respeito. Deve colocar uma distância entre o seu trabalho e a sua vida.
Na época, entretanto, pensei: comigo é sempre da minha pessoa que se trata, de
Christiane F., não tenho trabalho algum.
Felizmente não tenho mais. Não tenho mais o “trabalho” que me tornou famosa anos
antes.
Daniel Keel muitas vezes convidava seus autores a excursões como aquela para falar de
trabalho. Entendi ali que as pessoas do mundo literário gostam e cultuam o lado prazeroso
das coisas. Não só a imaginação, mas também a boa comida, os vinhos raros e os charutos.
Em Sils-Maria, ficamos num hotel de outra era.
Escolhê-lo era típico dos Keel. Não quiseram nenhum palácio chamativo, mas um hotel
de elegância discreta, em que David Bowie já tinha se hospedado.
À primeira vista, o Waldhaus parecia bem simples. Mas era enganosa essa primeira
impressão. Havia alguns candelabros no hall e em alguns cômodos. O “luxo” não estava em
suítes com jacuzzi nem em pequenas colheres de ouro. Serviço excelente, amável e,
principalmente, a lentidão do tempo, era o maior luxo que se podia encontrar nos dias de
hoje.
No Waldhaus, os móveis eram bem simples, em madeira escura, bancos compridos
estofados de cinza, azul-escuro e marrom.
Muitos cômodos decorados com madeira e havia uma biblioteca com uma mesa para
jogar xadrez. Os homens a usavam para tomar chá e fumar charutos. No geral, as formas e as
cores eram sóbrias. Achei ser estilo Biedermeier, mas Loriot explicou que era a belle époque
típica da nova fortuna industrial da grande burguesia por volta de 1900.
No subsolo do hotel havia uma piscina, onde Philipp e eu nadamos uma vez, sozinhos.
Oficialmente eu era a babá da família Keel.
Só que Philipp tinha somente seis anos a menos que eu, e Jakob já estava crescidinho.
Quem precisava de uma babá nesse caso?
Na verdade, cuidava dos convidados mais do que dos meninos. Organizava as chegadas,
as partidas, os transportes. Quem estava precisando de alguma coisa? Descanso, flores,
remédios? Fui um office boy para a editora e organizei as viagens como secretária. Gostei
muito disso, pois não podia passar o dia sentada, só de conversa. Precisava me ocupar!
Com o tempo, acho que, como pais, os Keel esperavam também que eu mostrasse aos
meninos a sorte que tinham.

Eles detestavam o lado decadente da sociedade e comigo se sentiam um pouco mais com
os pés no chão. Deu mais certo com Jakob. Espero que Philipp não se chateie comigo se eu
disser que já era um loser com tendências consumistas. Seu maior interesse era o fliperama.
Posso ter todos os defeitos, mas não a cobiça. Nunca tive problema em minha relação
com o dinheiro. A melhor prova é que vivo até hoje dos direitos autorais ganhos há 35 anos
com meu livro. É claro, houve entradas regulares de dinheiro, com o filme, por exemplo:
quando saiu em Blu-Ray, ganhei de novo uma boa soma. Mas sempre apliquei o dinheiro em
seguros e em planos de poupança habitacional. E até estar familiarizada com isso, procurei
agentes financeiros.
Sempre fui assim, e os Keel notaram.
Quando íamos juntos ao museu ou ao teatro, eu frequentemente usava roupas ou joias
de Anna. Ela que oferecia, nunca pedi nem quis ostentar. Não é importante para mim, queria
apenas me adaptar um pouco, nada mais.
Quando saíamos com Loriot ou Fellini, eu também não podia chegar de jeans e cinto com
pregos. Mas ninguém pode dizer que me pegou em flagrante delito de estupidez, em época
alguma.
É claro que os Keel bem que gostariam que eu publicasse outro livro pela editora deles,
mas não era a única coisa que esperavam de mim.
Uma vez, Kai Hermann foi me visitar na Suíça, e Heiko Gebhardt, seu colega na Stern,
também.
Kai esteve comigo por uns dias. Deve ter notado que eu voltara seriamente ao consumo
de heroína. Os dois perderam toda a vontade de trabalhar comigo. Estavam cheios. Mas para
os Keel não era tão importante que o livro não tivesse continuação. Nunca me deram a
sensação de que eu deixava de interessá-los por isso. Eu não seria autora da Diogenes e,
mesmo assim, continuaram a me hospedar em casa.
Voltei à heroína. O problema não eram os Keel, era eu mesma. Não sei por quê, mas
sempre fui imbecil o bastante para voltar a mergulhar de cabeça. Pelo menos uma vez poderia
ter aproveitado a sorte que tinha, mas aquela merda sempre estragou tudo.
Köbi não fumava maconha, mas um amigo dele tinha haxixe dos bons. Era garçom no
Kronhalle e nos lançava olhares cúmplices quando estávamos à mesa com os Keel, pai e mãe.
O que unia os dois rapazes era a história mais ou menos similar que tinham. O amigo de Köbi
vinha de uma tradição de relojoeiros, mas o negócio familiar não o interessava.
Nenhum dos dois queria seguir os passos de seus pais.
Foi Philipp quem afinal assumiu esse papel.
É escritor, escultor e pintor, além de dono da empresa. Li recentemente que, desde que
foi fundada, a editora lançou no mercado mais de duzentos milhões de exemplares!
Köbi permanece afastado dos negócios no dia a dia, mas tem cadeira no conselho
administrativo. Acabou também seguindo um pouco os passos do pai.
Daquele amigo que era garçom eu gostava muito. Às vezes nos víamos sem que os outros
soubessem, fumávamos, experimentávamos vestidos e escarpins. Realmente nos divertimos
muito!

Na verdade, nunca parei com a heroína.
Quer dizer, no início sim. Nos três primeiros meses em Zurique. Uma vez, Philipp me
surpreendeu na cozinha devorando quilos de queijo appenzeller: era minha compensação,
apenas transferia a fissura.
Mas, assim que voltei a Berlim, o queijo já não parecia tão bom, e a heroína, sim. Nos
três anos que passei na Suíça, entre 1982 e 1985, voltei regularmente para cuidar do meu
apartamento em Neukölln e pôr em dia a correspondência que chegava. Além disso, estava a
fim de um cara que funcionava à base de speed no “reduto” berlinense. Era um inglês, Greg,
que eu tinha conhecido uns seis meses depois do final da relação com Alex.
Não sei mais o que tanto via nele, mas estava louca pelo cara. Chegara a Berlim com o
pai, um músico que já era drogado, e ele seguiu os seus passos. Que eu saiba, a família está
limpa hoje em dia. Diga-se que o speed não é como a heroína. Prende como a cocaína, mas é
fácil largar.
Cheguei até a convidar Greg a Zurique.
Anna pagou tudo, para que eu me sentisse melhor. No seu lugar, teria feito o mesmo. Os
Keel preferiam me ter por perto a me deixar andando sem saber por onde, com um estranho,
às voltas com drogas desconhecidas.
Como pais de verdade. Eu era a filha pródiga.
Felizmente, Daniel nunca soube dessas coisas. Não sabia que eu frequentava o reduto de
Zurique. Mas, para mim, não podia ser de outra forma: Zurique era uma cidade pequena e
nela, no entanto, circulava muita droga. E um junkie percebe isso de imediato. Então, é claro,
precisei ver isso de perto. Em qualquer cidade, é na estação que se encontram os viciados.
Não foi difícil achar o parque Platzspitz, perto da estação. Um lugar inacreditável.
Nunca tinha visto coisa assim: no Platzspitz tudo se passava às claras. Bem no meio do
parque, havia um pavilhão em que as pessoas acampavam o ano inteiro. Tinham armado
mesas com colheres em cima e vendiam o bagulho.
— Tenho da escura, quem quer juntar um pouco da branca?
Tudo isso em suíço-alemão, é claro.
Não sei se ainda é assim, conto a lembrança que guardei: as pessoas se serviam em
público, como se fosse um estande de salsichas.
Picavam-se ali mesmo, com centenas de pessoas rolando no chão. Muitas tinham o corpo
coberto de feridas, outras pareciam mortas.
Eram milhões de seringas jogadas fora de qualquer jeito. Parecia um lixão. Fazer tudo
isso sem ameaça de ser preso eu nunca tinha visto. Às vezes, Anna nem sabia se eu estava ou
não em Zurique. Dormia num lugar ou noutro, na casa de pessoas. Depois, no segundo ano,
ela começou a querer se informar melhor: — O que você tanto faz no Platzspitz?
— Venha comigo que irá saber — respondi.
— Zurique também tem sua estação do Zoo.
Pegamos o carrinho dela, um pequeno Honda Civic, e fomos. Estacionamos longe do
parque, para que uma multa pudesse eventualmente banir a nossa vida. Mas, assim que

paramos, uns guardas vieram, querendo revistar nossas bolsas e ver carteiras de identidade.
Com quase dois mil junkies no pedaço, a polícia circulava em volta, limitando-se a controles
de rotina. Anna ficou com medo: — Se Daniel souber disso!
E acabou nunca indo ver o Platzspitz, mas contei tudo que perdeu. Ficou chocada, fez um
monte de perguntas, inclusive sobre o meu passado. De repente, vi que estava chorando.
Tudo aquilo mexia muito com ela. A partir daí comecei a ser mais prudente com relação
ao que contava.
Um dia, Anna leu alguma coisa numa revista sobre certa senhora Miller e achou que
poderia ser a solução para os meus problemas.
A pessoa em questão praticava hipnotismo, e o artigo dizia que graças a isso um cliente
fizera uma operação no joelho sem anestesia. A terapia da senhora Miller liquidava qualquer
sofrimento, inclusive psíquico.
— Veja só, não acha que pode ajudar? — perguntou Anna, marcando consulta para dez
sessões.
Cada uma custava 500 francos suíços. Um assalto, pois a senhora Miller apenas me
deixou sentada em diferentes cadeiras de massagem
eletrônica, repetindo como um disco arranhado:
— Você agora está muito calma. Seu corpo e espírito estão relaxando.
Era legal, agradável e eu podia cochilar. Mas não adiantava muito. Pelo contrário: tentava
imaginar como seria aquilo sob o efeito da heroína. O fato de os Keel se ocuparem de mim de
forma tão gentil devia ter a ver com os seus próprios conflitos. Nas minhas últimas visitas,
Anna não pôde mais me dar muita atenção.
Talvez não quisesse, talvez minha presença tivesse se tornado pesada demais para ela.
Fui morar no apartamento de uma conhecida de Anna, e Daniel nem sabia que eu estava
na Suíça. Depois de ter ido uma vez sem nem procurá-los, percebi que não queria voltar para
a casa deles. Tinham seus próprios problemas e não precisavam de uma Christiane F. a mais.
Anna jamais teria dito, mas eu me tornara um fardo.
Uma feira estranha
Com tábuas podres e carrinhos de bagagem roubados da estação ali perto, improvisavam-
se estandes de venda com colheres expostas, que serviam para ferver as misturas.
— Coca, coca, coca da boa!
Como se fosse a feira livre da semana. Outros vendedores alardeavam aos berros a
qualidade da sua “marrom”, ou ácidos, uísque, cerveja.
Centenas de drogados — Drögeler, como diziam os moradores de Zurique — se juntavam
nesse parque, que certos dias chegava a reunir três mil deles.
Estavam sentados num tapete de seringas, entre as flores e por trás de arbustos,
aplicando doses nos braços e nas pernas às vistas dos passantes curiosos. Alguns arrancavam
as roupas, procurando uma veia intacta no corpo infestado de feridas purulentas. Mesmo no
inverno.

Picavam-se na virilha ou no pescoço, com as outras veias já inflamadas. Corpos
semidespidos ficavam jogados no gramado — azuis de frio, alguns já mortos.
A apenas dez minutos a pé da movimentada rua da estação, no estreito passeio entre o
Museu Nacional Suíço e o ponto exato em que o Sihl desagua no Limmat, esse era o cenário
macabro do maior e mais escancarado ponto de droga da Europa. No final da década de 1980,
o parque do Platzspitz se tornou o ponto de encontro de viciados expulsos de outros lugares.
Por muito tempo tolerados pela polícia e pelos políticos, os drogados vinham de toda a Suíça e
do exterior. A maioria vivia na pobreza e financiava o vício com roubos ou prostituição. Na
margem dos rios, várias pequenas comunidades foram construídas com caixas e coisas
jogadas fora, pois a maior parte dos viciados não contava com abrigos na época.
As habitações provisórias eram regularmente derrubadas pela polícia, mas as autoridades
começaram a temer que o Platzspitz acabasse se tornando uma área marginal livre.
O reduto foi se tornando mais violento na medida em que a cocaína substituiu a heroína
no mercado.
Pedestres eram atacados e roubados, cadáveres de drogados desciam rio abaixo. Numa
briga entre drogados por um cobertor ou por um pedaço de chocolate, por exemplo, houve
quem fosse amarrado, amordaçado e afogado.
Na saída que levava ao cais do Sihl começava a “rua do Haxixe”, de venda de maconha.
Uns preparavam misturas, outros faziam a ponte com os fornecedores ou procuravam atrair a
clientela.
Bandos de traficantes vindos de países arrasados pela guerra civil organizavam e
controlavam com violência o comércio. No outro extremo da cadeia comercial, havia os
Filterlifixer — pessoas que tinham chegado ao ponto de trocar seringas, agulhas e outros
acessórios por filtros de cigarro anteriormente usados para filtrar a droga no momento de
encher a seringa.
Extraíam restos de substâncias para uso próprio — incluindo-se o HIV e a hepatite C.
A partir do final da tarde, o reduto se tornava palco para uma multidão de fantasmas ao
redor do Rondell, um pavilhão iluminado no meio do parque. Alguns drogados
perambulavam aos tropeções, outros jaziam alucinados no gramado ou vomitavam nas
moitas. Os gritos da feira eram ouvidos até o amanhecer. Em seguida, a polícia esvaziava o
pavilhão para que os jardineiros pudessem jogar o lixo à noite no Sihl.
No final dos anos 1980, essas tristes cenas foram manchete na imprensa internacional, e
o Platzspitz, no centro da rica Zurique, ganhou uma horrível reputação (era chamado Needle
Park). Foi então criado o Zipp, um projeto municipal de intervenção contra a AIDS. Nos
antigos banheiros do parque, médicos, atendentes, assistentes sociais e voluntários
distribuíam seringas limpas, compressas e pomadas cicatrizantes. Três ou quatro vezes por
dia Drögeler desacordados reanimavam, tratavam das feridas e aplicavam testes de HIV.
Trocavam num dia até quinze mil seringas usadas por novas, davam conselhos sobre
tratamentos com metadona, informavam sobre as ajudas sociais e programas de
desintoxicação.
Outras organizações forneciam refeições quentes e bebidas. Foi como aqueles homens e
mulheres tentaram conter o vício e as doenças.

Overdoses, infecções, aids e hepatites: o consumo de drogas se tornou a primeira causa
de mortes para pessoas de certa faixa etária. Zurique tinha o percentual de portadores de HIV
mais elevado da Europa. Para resolver o problema, alguns políticos pediram a legalização
controlada da heroína, outros exigiam a internação e desintoxicação forçada dos Drögeler.
Especialistas e pessoas que trabalhavam no local eram contra a coerção e a repressão em
Platzspitz. Para eles, é justamente tendo um ponto central que se pode controlar melhor e
ajudar os toxicômanos.
Mas o prefeito via de forma diferente o problema e, em 5 de fevereiro de 1992, ordenou
uma blitz e a limpeza do parque. Com cassetetes, jatos de água e tiros de borracha, a polícia
lavou Platzspitz dos seus lixos, fedores e cadáveres — espalhando toda a sua fauna desvairada
pelo centro da cidade.
A expulsão dos viciados do parque teve como resultado a concentração deles na estação
desativada de Letten. A miséria ali se alastrou a tal ponto que mesmo a população não
drogada entrou em desespero — em pouco tempo os moradores daquela área, voltando para
casa, passavam por seringas e excrementos, lixo e urina.
As mulheres eram assediadas por clientes das prostitutas e as crianças foram
transformadas em “avião” para o transporte da droga.
No verão de 1994, a área da estação de Letten estava tão deteriorada que o serviço de
higiene pública precisou ser acionado para eliminar ratos, vespas e lixo. A situação parecia
escapar do controle da polícia: em um ano, houve interrupção no acesso às celas de detenção
por falta de espaço. E, no entanto, essas celas eram famosas pela superlotação, recebendo às
vezes o dobro do número previsto de presos. Traficantes e usuários desafiavam os políticos e
a polícia. A violência cresceu: no maior reduto europeu de drogas, uma guerra de gangues
explodiu entre libaneses, albaneses do Kosovo e norte-africanos em disputa pelo mercado.
Zurique precisou pedir ajuda à cidade de Berna. Moradores e empresas reforçaram portas e
janelas. Chegou-se inclusive a debater seriamente sobre uma possível intervenção do
exército.
O governo suíço declarou ser problema nacional a situação da área de Letten e aplicou
fortes medidas preventivas no país inteiro, devolvendo consumidores a seus locais de origem
e abrindo centros de consumo de droga.
Repressão, prevenção, terapia e primeiros socorros foram as quatro bases da política que
se estabeleceu e que amplamente contribuiu para o fechamento da área de Letten, em
fevereiro de 1995. Isso representou uma reviravolta na situação da droga e uma melhoria da
qualidade de vida em Zurique.
Apenas em junho de 1993 o Platzspitz foi reaberto ao público. Controles policiais e
fechamento dos locais às nove da noite deveriam impedir o renascimento do reduto da droga.
A situação em Zurique desde então mudou muito.
Não há mais reduto aberto, a criminalidade ligada às drogas diminuiu e os viciados têm
condições menos miseráveis.
Dez anos depois do fechamento de Letten, Zurique fez um balanço: as iniciativas
restritivas haviam passado no teste, mas era preciso dar continuidade às melhorias da política
antidroga.

Ela se concentrara tanto na luta contra o reduto
aberto que as demais evoluções foram praticamente deixadas de lado. A cidade hesitara
demais no concernente à prevenção de eventos em que circulavam drogas. E tinha quase que
abandonado nas mãos da justiça o tratamento da utilização de maconha.
A partir de 1995, o consumo de heroína recuou muito. A frequência em cada um dos
quatro centros da cidade atingiu uma média que oscilava entre cinquenta e cem toxicômanos
por dia. Os 1.500 lugares oferecidos pelos programas abordando a heroína e a metadona
foram todos ocupados e o número de seringas distribuídas por dia caiu de quinze mil para
1.500.
Mas a queda do consumo de heroína não significou uma menor quantidade de droga
circulando. Nesse meio-tempo, a circulação de cocaína se tornou a mais importante dentre as
drogas pesadas, inclusive ultrapassando o álcool e a cânabis.
Zurique não sonha com uma sociedade ideal sem drogas, mas com um reduto que seja
tolerável pela cidade.
Em comparação com a época da liquidação do Platzspitz, hoje não há menos
consumidores de droga. Mas o comportamento dos usuários, o acesso facilitado e a natureza
das drogas, em contrapartida, mudou muito.
A polícia estima em cinco mil o número de viciados em drogas pesadas na cidade. Muitos
dos usuários de heroína se integraram e não chamam mais atenção. A miséria característica
do reduto aberto praticamente desapareceu.
Os programas de substituição, os centros de consumo e a assistência social de apoio aos
toxicômanos idosos melhorou consideravelmente a situação sanitária e a integração das
pessoas envolvidas.
S.V.

Eu, Christiane F., A vida apesar de tudoOnde histórias criam vida. Descubra agora