Meu pai teve alta há uma hora, estamos em casa, eu no meu antigo quarto, e ele lá no dele. Encaro o diário de Anne, respiro fundo e abro a primeira pagina.
" Bem-vindo à minha vida diário, sei que tenho você há alguns meses, mas sendo sincera, somente agora é que eu precisei de você.
Sabe que dia é hoje? É o dia que completa uma semana que minha mãe morreu. É, ela se foi, me deixou aqui. Sabe, parece que tem um buraco negro aqui dentro do meu coração sugando todo tipo de matéria e, nesse caso, a matéria sou eu mesma. Estou vivendo como um zumbi, voltei às aulas ontem, acordei, tomei banho, tomei o café da manhã, (meu pai não saiu do quarto), fui para a escola e, quando cheguei lá, me deu vontade de correr. Quando entrei, todos pararam para me olhar. Muitas pessoas vieram até mim, me dando seus pêsames e dizendo o quão jovem sou e que a dor diminuirá com o tempo e que pelo menos ela está viva em meu coração. Ah, diário! Se você soubesse como cada uma daquelas palavras me machucaram, sei que é normal quando alguém que amamos acaba morrendo, as pessoas a sua volta vem te dar solidariedade, tudo bem, é bom saber que tem gente que se comove, mas eu não queria aquilo, queria ficar quieta em meu canto, passei uma semana trancada no quarto chorando e pensando em um jeito de me matar. Mórbido, não é? Mas a dor faz isso, nos deixa doente internamente até que ela vá consumindo nossa alma. Eu queria sentar em uma cadeira e prestar atenção na aula, com o professor explicando que a vida é a lei de Muff, que tudo de ruim que tem para acontecer acontecerá, independente do que fazemos para mudar as coisas. Na verdade, acho que naquele momento ele aplicou a lei a mim porque seu olhar grudou em mim. A minha vontade era de tacar a mesa nele, mas mamãe não ficaria orgulhosa disso, então engoli os palavrões engasgados e prestei atenção na aula.
Chegando em casa, foi pior, a casa estava silenciosa, a mesa do almoço estava posta, mas não tinha ninguém nela. Então fui até o quarto do meu pai e bati na porta, nada dele abrir, então eu mesma a abri, e la estava ele, acariciando a foto do casamento dele com a mamãe.
— Papai, o almoço está pronto.
— Estou sem fome, Anne.
— O senhor não tomou café da manhã, precisa comer.
— Já disse que estou sem fome.
Seu tom é rude, suspiro e fecho a porta, desço correndo a escada e vou para a cozinha poder comer. Me perguntou quem fez a comida.
Passei o dia em casa sem fazer nada produtivo, tentei tocar piano, mas o som não estava harmonioso, tentei estudar, mas as palavras não entravam em minha cabeça. Então fiquei parada por cerca de duas horas encarando a parede para ver se o tédio me consumia, mas essa foi a pior ideia que tive. Acabei lembrando do dia em que mamãe mandou papai pintar essa parede da cor de vinho. Meu pai se matou para achar essa tinta, mas mesmo assim ele teve que misturar com outra para sair o tom que ela queria.
Então comecei a chorar, aquele choro silencioso que te rasga de dentro para fora, e ele estava me rasgando.
— Mamãe!.
Murmúrio.
Levantei e saí correndo para meu quarto. Eu não queria mais me esconder em um canto e chorar por horas, mas parece que esse era meu destino agora. Abraço meus joelhos e choro, fico olhando para a porta para ver se ela entrará, mas ela não entra. Mamãe sempre soube quando eu estava mal, eu podia não falar nada, podia estar em outro lugar, mas ela sempre soube. Então vinha atrás de mim e acariciava meu cabelo e falava que ia ficar tudo bem. Começava a cantar Awake me da Rosie, eu amava essa música, um dia eu a ouvi no rádio e me apaixonei por ela, minha mãe aprendeu a cantar por minha causa, me acalmava, então ela me abraçava até que eu parasse de chorar. Pergunto-me agora como pararei de chorar sem sua voz melódica, seus abraços quentes e seu amor incondicional.
Por isso estou aqui diário, porque preciso de algo para me ajudar a seguir em frente, por tudo para fora, minha mãe sempre dizia. Quer gritar e não pode? Quer falar, mas sem que as pessoas realmente te ouça? Escreva! As palavras te libertam e são ótimas ouvintes. Acho que ela falava isso porque era professora.
Por isso estou aqui, espero que você me liberte diário, você será meu abraço quentinho, de hoje por diante você ouvirá até os detalhes mais íntimos de minha vida, detalhes de coisas que nem se quer contarei a Bethâny."E a primeira folha acaba aqui. Observo o pequeno caderno com a letra de Anne. Aqui está sua história, suas dores, seus medos. Uma parte de mim se sente mal por estar invadindo a privacidade dela desse jeito, mas outra parte minha quer conhecê-la, quer saber sobre sua vida.
Abro a segunda pagina, mas sou interrompido pelo meu pai.
— Jamie, venha cá!.
Me levanto da cama e guardo o diário de Anne na minha mochila, desço até a sala e sinto um cheiro delicioso, vou até a cozinha e vejo que na mesa há duas pizzas.
— O senhor pediu pizza?.
— E refrigerante.
— Refrigerante é ácido e o senhor não pode beber, está cicatrizando o joelho.
— Um gole não vai matar ninguém.
— Mas irar ferrar seu joelho, espera, você desceu a escada sozinho pai!.
— Não ia te chamar para descer alguns degraus, não sou inválido.
— Está pensando em voltar para o hospital novamente? Porque isso só irá acontecer se continuar a subir e descer escada sem ajuda.
— Jamie, sente-se e coma a pizza, não fazemos nisso há algum tempo. Comemoraremos que continuo vivo.
Reviro os olhos e faço uma careta. As palavras dele são boas o bastante para me fazer amolecer, porque passamos por um susto e tanto. Corto um pedaço de pizza e encho meu copo com coca, faço o mesmo para ele.
— O que estava fazendo em silêncio lá no quarto?
Encaro seus olhos verdes, assim como o meu.
— Lendo, apenas lendo.
Falo a verdade.
— Livro da faculdade?.
— Sim, um livro muito importante.
— Gosto que você leia, quem lê tem asas.
— Mamãe sempre diz isso.
— Então, a ouça, sua mãe, às vezes é muito sábia.
— Às vezes?
— Sim, às vezes porque na maioria do tempo o sábio sou eu.
Rimos do que ele fala, então nossa conversa muda para futebol, para longe do diário, para longe de Anne.~∆~
— Você sabe que não pode ler meu diário, certo?
— Eu sei, mas eu precisava te conhecer.
Seu cabelo está voando contra seu rosto, ela tenta tirar, mas não consegue. Chego perto dela e tiro, deixo minha mão em seu rosto. Seus olhos castanhos estão olhando fixamente para mim. Ela coloca sua mão sobre a minha. Gelada, esse é o primeiro pensamento que tenho.
— Não faz sentido você conhecer minha história. Você não me conhece, Jamie. Você não sabe nem o som da minha voz.
— De alguma forma estranha, eu quero te conhecer.
— Jamie. — Em seus olhos há lágrimas. — Isso nunca vai acontecer. Eu nunca conseguirei segurar sua mão, não conseguirei te beijar em um banheiro de um bar, como pessoas normais fazem. Não conseguirei envelhecer. Eu não acordarei, Jamie.
A dor em seu olhar me mata.
Tento apertar sua mão, mas ela some. Não tem mais nada aqui. Está tudo cinza. Vazio. Sem vida.
— Acorde, Jamie!Acordo assustado. Me sento e esfrego meu rosto. Olho para o diário na mesinha ao lado da minha cama.
Me levanto e vou para o banheiro. Abro a torneira e jogo água gelada em meu rosto. Me encaro.
— Você deve estar louco, Jamie!
Meu coração não está conseguindo acompanhar meus pensamentos. Está tudo bagunçado aqui dentro.
Seco meu rosto e vou para o meu quarto. Sento-me na cama e fico encarando o diário que eu trouxe furtivamente.
Me jogo na cama e fico encarando o teto. A noite será longa.
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Não Me Deixe Ir
RomanceAnne sofreu um acidente de carro há um ano e meio atrás, entrou em coma e por algum motivo nunca acordou. Sua vida foi interrompida bruscamente após sofrer o terrível acidente. Abandonada em um leito hospitalar com apenas os médicos e pela equipe de...