Tentei ligar para o João várias vezes naquela noite. Infelizmente, não consegui falar com ele. Fui dormir com a mente confusa. Sentia-me leve e transbordando de felicidade, porém, ao mesmo tempo, não conseguia esquecer o tal do cheiro do mar, a quilômetros da orla. Eu continuava a senti-lo, mesmo dentro de meu quarto. E quando eu me concentrava em ouvir o silêncio da noite, lá no resto do que se pode escutar, estava aquele canto inesquecível que parecia não cessar jamais.
Pensei que tudo podia não passar de uma reação de minha mente frente ao acontecimento alucinante da noite. Preferi adormecer e deixar a dúvida sem solução. Às vezes, é melhor desistir do que enfrentar a angústia do eterno fracasso.
No dia seguinte, tentei novamente falar com o João Victor. Em vão. Mas pelo menos descobri que ele estava viajando. Assim, eu só poderia encontrá-lo uns dois ou três dias depois, conforme me disse o irmão dele. Tudo bem... Se era preciso esperar, então, eu esperaria.
Eu não tinha, naquela época, nenhum outro amigo em quem eu confiasse tanto quanto no João. Não era uma questão de caráter, mas de intimidade ou algo parecido. O João era um quase irmão para mim, apesar de estarmos um pouco separados naquela época.
Desde os meus dez anos de idade que eu conheço o João Victor. E foi em um momento muito difícil de minha vida que eu o encontrei. Ambos estávamos internados em um hospital, cada qual por um motivo diferente.
O João era um garoto inquieto e como o seu caso não era muito grave — uma pequena cirurgia no olho direito —, as enfermeiras deixavam que ele saísse de seu quarto e andasse pelos corredores. Aí, ele ficava espiando os quartos para ver quem estava em cada um deles. Assim, ele me encontrou. Como eu também era um garoto, da idade dele, ele puxou papo e eu o chamei para entrar. Conversamos durante horas. Depois disso, tornamo-nos grandes companheiros.
O João sempre me ouviu mais do que falou, apesar de ser ele o extrovertido da dupla. Ele sempre foi muito misterioso também. E muitas vezes, incompreensível. Ele realmente nunca foi uma pessoa fácil de entender. Enfim... Cada um com seus mistérios.
Estava lembrando agora do meu desmaio quando meu pai morreu. Não sei por que. Acho que sei... Quando acordei, Eliza estava do meu lado. E mais uma vez, Clara estava do outro. Quero dizer, Marisa estava do meu lado. Não. Maria Eliza mesmo. Mas uma não via a outra. Ou via? Acho que só Eliza não via Clara. Clara via Eliza, sim.
E eu era um menino perdido. E Clara procurava me acalmar. E Eliza dizia: "Conta tudo pra mamãe. Não a deixe ficar pensando essas coisas do papai. Coitado... Ele não fez nada." Eu não entendia direito. Mas acenava positivamente com a cabeça. Pelo menos foi isso que Maria Eliza me contou.
Algum tempo depois, mamãe entrou no quarto. Não havia outra coisa em sua cabeça, a não ser aquela mesma indagação: "Quem é Clara? Diga de uma vez por todas." Mamãe estava cega de ciúme. Nem se dava conta de que seu filho estava hospitalizado, sem um diagnóstico definitivo e que poderia, portanto, estar muito doente. Ela nem se importava. Acho que não pensei nisso naquele dia. Pensei agora mesmo. Isso não importa. Ou você acha que importa? Deixemos isso para os psicólogos resolverem, tudo bem?
O fato é que eu respondi. "Clara é essa menina que está do meu lado direito, mamãe. A senhora não consegue vê-la também? Pensei que fosse só Eliza. Achei que Eliza estivesse doente, igual o Juninho, meu amigo lá da escola. Ele tem miopia. E tem que usar óculos, senão não enxerga direito."
Era mentira. Eu não pensava nada disso. Mas Clara estava do meu lado. Eu só não sabia como explicar isso. Nem tinha ideia do que significava. Não sabia o que ela era ou o que eu era. Ou todos nós. Ou ninguém...
Ok. As coisas se complicaram de novo, eu sei... Mas a culpa não é minha: é do Quem ou do nosso protagonista "invadido". O mistério continua! O que você está achando disso tudo? Deixe o seu comentário e o seu voto, por favor!Se puder, dê uma olhada no meu novo livro aqui no Wattpad: Kurz - Poemas de dor e angústia.
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Memórias de Quem
Mystery / ThrillerEle só conseguia se lembrar dos olhos de Clara. E, ainda assim, não podia afirmar que eram mesmo suas lembranças e nem se Clara de fato existia. Quem havia misturado informações em sua mente, a ponto de apagar o nome de seu melhor amigo e criar novo...