Mamãe me olhava com um olhar minguante, mais surpresa do que assustada. Parecia acreditar no que eu dizia, mas fingia não acreditar. Ela sempre fazia isso. Eu quase podia adivinhar seus pensamentos, só interpretando suas expressões faciais.
Ela me olhava com firmeza, procurando evitar que eu tentasse esconder a verdade. E sempre analisava minhas reações de modo a ter certeza de que eu não a estava enganando.
Mamãe deve ter sido agente de algum tipo de serviço secreto. Eram impressionantes as técnicas que ela usava para descobrir as coisas. Talvez ela tenha mesmo sido agente da ditadura militar. Quem sabe até uma torturadora. Não duvido nada disso, porque quando a ditadura acabou, ninguém saiu por aí dizendo que tinha praticado tortura. Nem mesmo tentou-se descobrir quem eram essas pessoas. Mas isso não vem ao caso.
Sabe de uma coisa? Eu tenho uma fortíssima impressão de que estive fora do ar por alguns dias e que acordei há poucos minutos. E, por isso, uma estranha sensação de felicidade me invade. Ou seria um sentimento de conquista? Como se eu tivesse conseguido vencer uma batalha, uma luta contra algo que tenta me dominar.
Sim, claro! É isso mesmo. O invasor... Ele roubou minha consciência. Tomou posse da minha vida nos últimos dias. Agora que estou me dando conta. Ele simplesmente me aprisionou em um canto escuro de minha própria existência e me deixou por lá, enquanto assumiu o domínio da minha vida como se fosse a dele.
Isso foi demais! Não tem mais cabimento uma situação dessas. Preciso tomar uma atitude drástica. Mas o duro é que eu não sei qual. Se pelo menos minha mãe ainda estivesse viva, ela saberia o que fazer. Ainda mais se ela realmente tiver sido uma torturadora.
Talvez mamãe me sugerisse alguns choques elétricos como forma de espantar o tal espírito da minha cabeça. Quero dizer, o tal do Quem. Cruz credo! Fui chamá-lo de espírito de novo e me deu um arrepio na espinha. Não gosto nem de imaginar isso.
O culpado de tudo é o João, que ficou me colocando essas besteiras na cabeça. Talvez fosse melhor eu não ter escrito nada sobre esse doido. Essas memórias invasoras só estão me embaralhando a razão. Ou entortando o meu juízo. Nem sei mais se ainda tenho juízo. Nem sei se existe um juízo. Uma amiga minha disse que tem um e que o leva dentro da bolsa, bem guardado. Mas é claro que isso é só uma piada dela, não é?
Na verdade, eu realmente não sei como agir para acabar de vez com essa loucura. Então, enquanto não penso em uma solução, vou continuar a contar o que eu estava contando.
Eu falava da reação de mamãe, quando eu expliquei sobre Clara. Ela realmente acreditou no que eu disse. Só não acreditou na parte em que eu me fiz de ingênuo. Mamãe sempre foi muito prática e direta. Falava as coisas sem medir as palavras. Não tinha medo de nada.
Assim, ela foi logo me repreendendo por tentar camuflar a verdade. Estava claro que eu sabia que Eliza não via Clara, assim como estava claro que Clara não existia. Era uma invenção da minha cabeça. Não uma invenção consciente, mas algo que surgiu por conta do estresse e da ansiedade que me dominavam.
Bem, isso foi o que mamãe disse. Se isso era verdade ou não, já é outra história. Porém, fiquei muito satisfeito com a racionalidade da interpretação e concordei com ela sem hesitar. Foi melhor assim. Mas Clara disse que não.
Ela esperou mamãe e Eliza saírem do quarto para me falar algumas coisas. Geralmente, Clara só falava mesmo quando estávamos sozinhos. Então, cumpriu-se a regra. Ela olhou-me fixamente por alguns instantes. E, de repente, senti uma estranha sensação.
Era como se estivéssemos sendo levados por uma onda. E o verde se desmanchava no branco. E Clara cantava. E a luz se apagava. E o vento soprava gritos insensatos. Clara chorava. E a baía se enchia com o pranto que tempestuosamente caía. E o branco tornava-se rubro.
Clara soluçava e dizia: "Por que você me deixou?". Eu não entendia. "Por que preferiu voltar? Você não pode acreditar no que ela disse. Isso não é verdade. Você bem sabe que não é. A verdade é muito mais difícil de se aceitar. O que você prefere? Diga? Uma ilusão ou a realidade?".
Eu tinha apenas 10 anos. E ela prosseguia: "Responda. Você pode. Não se esconda atrás de si mesmo. Você sabe quem você é. Quem realmente você é! Não finja não entender. Não fuja mais". Minha cabeça girava. Meus olhos ardiam.
O cheiro do mar invadia meus pulmões. Não só o cheiro, mas também a fria, salgada, e trágica água. Eu me afogava com as palavras de Clara e o pranto que ela desaguava sobre mim: "Responda! É a sua última chance". Eu não respondi.
E você? O que prefere? Viver em ilusão ou enfrentar a realidade? Mas espera. O nosso narrador não vive na realidade? O que você acha? Deixe o seu comentário e o seu voto!A história continua na semana que vem. Enquanto você aguarda, dê uma olhada no meu novo livro aqui no Wattpad (Kurz - Poemas de dor e angústia), que conquistou o #5 em Poesia no dia de hoje (04/05/18).
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Memórias de Quem
Mystery / ThrillerEle só conseguia se lembrar dos olhos de Clara. E, ainda assim, não podia afirmar que eram mesmo suas lembranças e nem se Clara de fato existia. Quem havia misturado informações em sua mente, a ponto de apagar o nome de seu melhor amigo e criar novo...