Após mais de três horas de gravação, Charles parecia lutar contra o sono e seus bocejos falhavam boa parte das melodias. Adriano deu um salto como se esse fosse o aviso de Charles para partirem. Aproveitou para tentar fazê-lo comer e finalmente teve sucesso: Charles devorou o sanduiche!
-Amanhã vocês vêm também? –Perguntou Natã.
-Sim! Charles sempre ficou... Você sabe, olhando as coisas... Mas desde ontem ele tá muito mais estranho. Acho que ele passa o dia pensando em tocar esse troço!
Natã ficou satisfeito. Iria entrar em contato com Alexandre e ver como o processo estava correndo, se algum assistente social estava a caminho e claro, perguntaria sobre a guarda de Adriano. Talvez se um juiz ouvisse que ele preferia ir com o irmão, isso pudesse pesar na decisão de alguma forma e os dois não precisariam ser separados. Mas agora, enquanto ele assistia os garotos voltarem para a chalé do outro lado da rua, que ele evitava chamar de "a casa dos meninos", só pensava em uma coisa: dormir!
Ele caiu no sofá e desmaiou com um imenso sorriso no rosto.
Eram quase duas da tarde quando telefone tocou e Natã foi atende-lo meio que se rastejando.
-Oi! É o Alexandre
-Fala Alê! –Respondeu despertando de súbito, -Eaê, que você conta sobre o caso?
-Então, tinha conseguido uma assistente social para hoje. Quer dizer, ontem ela disse que ia hoje, mas hoje ela ligou e disse que só pode ir amanhã de manhã.
-Putz... Bom cara, vou mandar uma amostra do som que o moleque faz. Você vai pirar!!
-Como assim "faz" no presente? Você tá se encontrando escondido com o menino pra gravar Natã?? Tá maluco cara??? O pai dele quer te matar e...
-Ele veio até minha casa de noite. –interrompeu, -O irmão disse que ele estava sem comer o dia inteiro por que só pensava em tocar flauta! –Disse Natã unindo peças rapidamente em sua defesa. A linha ficou muda por alguns segundos. Em seguida Alexandre prosseguiu:
-Olha lá heim cara! Não vai arranjar mais encrenca... Agora me diz uma coisa: você flagrou mais alguma cena de agressão do canalha do pai? –Natã congelou! "A câmera!", lembrou-se ,dando um tapa na testa, de que o aparelho passara o resto da madrugada, manhã e começo da tarde em seu quintal, virada descaradamente em direção ao chalé do outro lado da rua. Alexandre desligou, pensando "o cara é todo atrapalhado...", assim que ouviu o telefone se chocar contra alguma coisa dura, talvez o chão, e Natã sair correndo, dizendo apenas "Nossa cara! Viajei... Espera aí!!".
Lá fora, a câmera estava desligada e úmida em baixo. "Se tiver queimado...", pensou ele e começou a secar o aparelho, deitando o tripé no chão. Utilizou-se, como costumava chamar, de "uma técnica milenar", e sem ligar o aparelho, retirou sua bateria e abriu a câmera com uma chave estrelada que tinha no furgão, espalhando suas peças sobre um pedaço de papelão forrado com papel alumínio, tudo sob o sol forte da tarde de Piltor. "Umas duas horas devem bastar", concluiu e entrou novamente. Tinha que editar as cenas dos documentários para a próxima noite, para não haver tanta perda de tempo como havia sido na noite anterior.
Depois de quase três horas, a sala estava organizada, com os vídeos dispostos em ordem e bom tempo de duração. Essa noite gravariam com auroras boreais, o Sol e a Terra, rios, pântanos, vulcões e animais marinhos. Natã resolveu focar em natureza terráquea dessa vez, pois as constelações mais famosas estavam cobertas. O projetor estava ligado e exibindo um show do The Cure, que inclusive, era o único propósito do aparelho antes de ele conhecer Charles. Havia deixado lanches e salgadinhos prontos para serem aquecidos quando os garotos chegassem. Se teriam de esperar mais um dia até a assistente social aparecer, que produzissem e se divertissem enquanto isso. Voltou ao quintal para ver como estava sua câmera.
Assim que saiu pela porta, antes mesmo de olhar para as peças no chão, fez uma longa análise no chalé do outro lado. As coisas estavam muito tranquilas. Talvez, como bom covarde, Sebastião cessasse qualquer ato de violência enquanto Natã estivesse por ali.
Com esse pensamento meio tranquilizante, Natã encaminhou-se até a câmera desmontada e conferiu suas peças, que já estavam bem secas. Passou mais uma flanela para garantir e sentado na grama começou a montar o aparelho novamente.
Aparentemente estava perfeito, mas Natã cruzou os dedos quando apertou o botão power e esperou. A luzinha verde piscou e na tela surgiu o logo do fabricante. "Está viva!!!", pensou alegre e se levantou. Testou a gravação e virou a câmera para o próprio rosto, escancarando a boca, filmando seu interior e arregalando o olho direito na lente, filmando sua íris. Ele parou de gravar e assistiu os segundos de teste gravados. Viu o próprio rosto, garganta e olho. Foi assim que teve a ideia: "Será que Charles pode compor uma música inspirada no desenho de uma íris? Não deixa de ser um fenômeno natural..." pensou ele admirando sua íris, que como a de qualquer olho, possui desenhos incríveis e complexos, por vezes cavernosos, outras vezes lembrando corais no fundo do mar ou mesmo nebulosas. A íris de Natã era castanha e se assemelhava às paredes de uma caverna. A de Adriano era um azul escuro celeste, como o céu no início da noite, e os de Charles eram de um azul claro incrivelmente brilhante e chamativo, tanto quanto o próprio céu ao meio dia.
Estava entrando em seu chalé, todo empolgado. Ia iluminar seus olhos para assim poder gravar suas íris com riqueza de detalhes, mas foi arrancado de sua fantasia quando ouviu um grito desesperado, que só podia ser de Adriano, ecoar de longe. Natã virou-se para o chalé do outro lado da rua. Não viu nada no quintal nem pela grande vidraça da sala. Ele voou com a câmera em mãos: era sua chance de flagrar Sebastião, além da chance de saciar seu desejo de conseguir bater mais em um ser tão imundo e covarde quanto os líderes de uma falsa democracia.
"PARA!!PAAARA!!", era o que Adriano gritava de dentro do chalé. Como da outra vez, Natã saltou o baixo muro do quintal e meteu o ombro na porta. Quase caiu, pois ela ainda estava quebrada e não era preciso tanta força para arrombar. Após cambalear um pouco, ele se equilibrou e empunhando a câmera, correu pela casa, seguindo os gritos de Adriano. Seu coração batia forte, não fazia ideia do que veria em sua frente e de fato petrificou quando, após atravessar o corredor seguindo os gritos desesperados, chegou à cozinha.
Adriano estava com o rosto vermelho e encharcado de lágrimas, enquanto se sacudia inteiro e puxava os próprios cabelos, gritando incessantemente "PARA! PARA! PARA! PAAAARA!!!", pois seu irmão estava preso por uma corda em uma cadeira, enquanto Sebastião puxava sua cabeça para trás pelos cabelos com uma mão e com a outra empurrava violentamente pedaços de pão dentro da boca do garoto, que se contorcia e tinha visíveis espasmos de ânsias de vômito. Os grandes olhos azuis de Charles, agora contornados por vermelho e lágrimas se viraram para Natã, que os viu através da filmagem. Ele gravou não mais do que seis segundos da cena, esticou a perna direita para trás, pois era destro, pegou todo o impulso que pôde e em seguida, desferiu o chute mais forte que já deu em sua vida na parte de trás das pernas do grande homem branco, e foi com um estrondo que Sebastião caiu, batendo as costas e cabeça com violência. Parecia ter perdido a consciência, mas ainda resmungava. Natã estava com a adrenalina a mil: voou para cima de Charles e com uma faca de corte liso, que estava sobre a mesa, ele cortou a corda que prendia o prendia. Retirou rapidamente os pedaços de pão presos em sua boca, pois o garoto sequer conseguia fechá-la. Ao mesmo tempo, gritou para Adriano correr para fora de casa e ele obedeceu, mas parou na sala. Natã colocou Charles no ombro, apanhou a câmera do chão e deu uma última olhada para Sebastião, que se levantava com dificuldade, já urrando ameaças de morte.
Natã correu para a saída, e seguido por Adriano, atravessou o quintal e a rua, até chegar à sua garagem. Ele pôs os meninos no furgão e se odiou por não saber onde estava a chave. Revirou o painel, o lugar onde costumava sentar na grama, os bolsos, sua jaqueta caída no banco do passageiro...E nada. Teria de entrar em casa para procura-la. Na hora, não estava raciocinando direito, não percebeu que judicialmente falando, estava planejando sequestrar duas crianças, mas a verdade é que num caso como esses, mesmo que tivesse se lembrado disso, seria da índole de Natã não dar a mínima.
-Vou bater a porta e você aperta esse pino pra baixo! Eu já volto!! –Combinou rápido e entregou a câmera para Adriano, que a colocou sobre o painel, trancou as portas e em seguida ficou abraçado ao irmão, que como sempre não expressava mais nenhuma dor aparentemente, mas Adriano sentia como se Charles fosse parte dele. E as dores, tanto físicas quanto emocionais, eram imensas.
Natã não viu sinal de Sebastião, mas com certeza devia estar vindo em seu encalço. "Cadê a DROGA das chaves!! Que inferno!!", urrava entre dentes enquanto levantava panos e móveis para procurar. A todo o momento, olhava pela janela e não via nenhum sinal de Sebastião, até que na quarta vez que olhou, ele avistou o grande homem branco sair. Estava com um saco que devia ter gelo dentro, sendo segurado na parte de trás da cabeça e, o que Natã achou muito estranho, não veio na direção de seu chalé. Recostou-se na parede ao lado da porta, como se pudesse explodir Natã, apenas com o poder da mente.
Não demorou muito para entender o porquê daquela tranquilidade: a polícia local chegou e embicou sua viatura na calçada de Natã. Ele parou tudo o que estava fazendo.
Olhando o desenrolar da situação, preparou sua mente para mais indignação. Assim como Sebastião, saiu, recostou-se agoniado na parede e olhando Adriano e Charles abraçados dentro do Furgão, ele aguardou alguma ordem.
A adrenalina agora fazia seu estômago e cabeça revirarem. Desejava profundamente matar todo mundo!!
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Charles Mártir E O Segredo Do Universo
RandomO Universo é uma caixa de música, pois está construído em proporções equivalentes aos intervalos de oitavas. Néstor Eidler